domingo, 19 de fevereiro de 2017

A honestidade no Brasil

A honestidade no Brasil

Se achasse uma carteira na rua, você a devolveria?
No meio deste ano, fizemos uma pesquisa a fim de descobrir a quantas anda a honestidade no Brasil. Para isso, realizamos um teste em seis cidades brasileiras – entre pequenas, médias e grandes: “perdemos” 12 carteiras em ruas, praças, praias, shopping centers, farmácias, feiras de livros, museus e outros pontos públicos. Cada carteira continha 100 reais em dinheiro (uma cédula de 50, duas de 20 e uma de 10), notas fiscais de supermercados, restaurantes, livrarias etc., um bilhete de metrô, uma foto de criança, cartões de lojas, além de um cartão de visita do suposto dono, com o número de um telefone fixo e um celular, mas nenhum documento.
Com um misto de expectativa e ansiedade, observamos a certa distância a reação de cada uma das pessoas que encontraram essas 72 carteiras e se viram diante do dilema moral de devolvê-la ou não, e procuramos entender a história por trás delas e suas motivações. Quer saber o que descobrimos nessa pesquisa empírica? Leia a seguir o artigo completo.
A Lei de Gérson
Num fim de tarde de abril, no movimentado Centro do Rio de Janeiro, uma mulher bem-vestida, perto dos 30 anos, encontra uma carteira no chão de uma drogaria, examina o conteúdo e a guarda na bolsa. Em seguida, paga pelos itens apanhados nas gôndolas e sai. Depois de se afastar alguns passos, olha o conteúdo da carteira novamente e, dali a alguns minutos, o celular cujo número estava impresso no cartão dentro da carteira toca. É a mulher ligando para combinar um local para a devolução. Elegemos uma banca de revistas ali perto, na calçada da Rua São José, onde recebemos a carteira de volta – para nosso espanto, subtraída dos 100 reais. Quando perguntamos sobre o dinheiro que havia ali dentro, a mulher, sem saber que havia sido observada, responde com toda calma que deve ter caído quando ela acidentalmente chutou a carteira.
Outros cariocas, porém, derrubaram o estereótipo do malandro típico da cidade. Na Tijuca, bairro classe média do Rio, perdemos uma carteira na esquina da Praça Afonso Pena, minutos depois recolhida por José Doum Antônio de Azevedo, 83 anos, aeroviário aposentado que trabalhou desde os 15 anos. Assim que viu o dinheiro na carteira, pensou na falta que poderia fazer ao dono. Então levou a carteira para casa, de onde nos ligou e marcou um encontro para devolver. “Quero apenas o que é meu de fato”, concluiu ele.
Na Garcia D’Ávila, em Ipanema, considerada a rua comercial mais sofisticada de Ipanema, Vanessa Ortega caminha para o trabalho, falando ao celular, quando vê nossa carteira. Vanessa a pega no chão e a entrega imediatamente – sem nem mesmo olhar o conteúdo – ao segurança da rua parado ali perto. Essa carioca de 39 anos, professora de inglês, casada e mãe de um menino de 10 anos, nos conta que não se trata de falta de curiosidade, mas da consciência de que o objeto não é seu. “Fui criada assim, e esse é um valor que quero passar para o meu filho. E digo para ele: achar e não devolver é roubo sim!”
A antropóloga e professora universitária Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros observa: “Há uma campanha massiva da TV, da escola etc. para que as pessoas percam vínculos com procedimentos corretos. Está muito disseminada a cultura de o sujeito ‘se dar bem’. Quem devolve uma carteira nessa situação está lutando para que não se comercialize a vida.”
Na manhã do primeiro dia de agosto, o sol forte antecipando a tarde quente e seca típica da região Centro-Oeste, um senhor de 60 e poucos anos olha, intrigado, para a carteira caída na Praça José Antônio, no centro comercial de Dourados (MS). Depois de alguns instantes, decide continuar seu caminho, mas volta, só para desistir uma última vez e seguir em frente. (Estaria enfrentando o dilema da tentação ou esquivando-se ao trabalho que daria devolver o objeto encontrado?) Poucos minutos depois, um homem bem-vestido de uns 35 anos, acompanhado de uma jovem, apanha a carteira, olha ao redor e a coloca no bolso. O casal continua andando, passa na frente do Centro de Atendimento ao Cidadão, e em alguns instantes desaparece. E com eles a carteira.
Ali perto, na Av. Joaquim Teixeira Alves, perdemos mais uma carteira. Uma mulher de 30 e poucos anos, vestindo calça jeans e camiseta lilás, avista a carteira caída na calçada, apanha e a guarda imediatamente na bolsa. No caminho, tira a carteira da bolsa, olha o que ela contém e torna a guardá-la. Passa por uma sapataria, segue adiante alguns passos, mas de repente parece mudar de ideia e volta. Entra na loja, escolhe uma sapatilha, prova e se dirige ao caixa. Na hora de pagar, tira o dinheiro da carteira que acaba de encontrar na rua e paga o calçado com ele! Essa foi a aplicação mais rápida da Lei de Gérson (princípio que preconiza que se leve vantagem em tudo) de toda a pesquisa. “O malandro é contextual – você pode virar um, dependendo da situação, que pode levá-lo a um comportamento ambíguo, no limite entre o certo e o errado”, diz o antropólogo Roberto DaMatta, autor do livroCarnavais, malandros e heróis. “No entanto, algumas sociedades são mais radicais”, completa ele.
No fim da manhã, perdemos outra carteira numa farmácia, no corredor de cosméticos. Apesar de a farmácia estar cheia de clientes, dessa vez temos mais sorte: cerca de 10 minutos se passam até que o paulista Daniel Santana, de 24 anos, funcionário da farmácia – que não dispõe de câmeras de monitoramento –, a encontre. Primeiro, ele pergunta aos presentes se alguém perdeu uma carteira. Diante das respostas negativas, Daniel telefona imediatamente para o número informado no cartão de visita que encontra na carteira e a devolve intacta.
“Ouvi a voz da minha mãe dizendo: isso não pertence a você!”, ele conta. “Ela era diarista em Santos (SP), trabalhava em casas de luxo, e às vezes nos levava com ela. Meus dois irmãos e eu tínhamos de ficar sentados, quietos, da hora que chegávamos até a hora de ir embora. Não podíamos mexer em nada.”
“Os valores fundamentais precisam ser passados pela família e pela escola. Quando a família aproveita os pequenos momentos e episódios do dia a dia, surgem as grandes oportunidades para trabalhar esses valores: ética, honestidade, respeito pelo outro, cooperação, compaixão, solidariedade. Desde cedo, as crianças estão muito ligadas”, diz Maria Tereza Maldonado, psicóloga e escritora, autora deComunicação entre pais e filhos. “A base de tudo é o respeito pelos outros.”
Nem bons nem maus
Numa manhã gelada de meados de agosto, seguindo-se à noite em que extraordinariamente nevou na Serra Gaúcha, diante do prédio da Justiça Federal de Bento Gonçalves uma mulher de 30 e poucos anos vê a carteira no banco verde da Praça Walter Galassi, para por instantes, mas segue adiante sem pegá-la. Em seguida, um grupo de adolescentes uniformizados também vê a carteira. Um deles a apanha, olha o conteúdo, mas torna a deixá-la no banco. Os adolescentes se afastam e em seguida voltam, fazendo uma grande algazarra, pegam a carteira novamente, mas outra vez a largam no banco. (Apesar de não contar como uma carteira devolvida, suspiramos de alívio ao ver os adolescentes resistirem à tentação do dinheiro achado.) Minutos mais tarde, um homem de 50 e poucos anos, vestindo um sobretudo preto, passa por ali. Ele examina o interior da carteira, olha ao redor, guarda a carteira no bolso e continua seu caminho. No fim do dia recebemos uma ligação ao celular.
Era Altenor Zapaglio, bancário aposentado de 59 anos, atualmente trabalhando como corretor de seguros. “Espero que o exemplo de honestidade de pessoas humildes, como nós, sirva para os nossos governantes”, diz Altenor.
Na calçada em frente à Igreja de Santo Antônio, no centro da cidade de colonização italiana, outro senhor, de casaco e boina, abaixa-se, apanha a carteira e demora-se bastante olhando o conteúdo. Por fim, ele a guarda no bolso e nunca mais temos notícias dele.
Seguindo para o Nordeste, nossa primeira parada é Rio Vermelho, bairro de Salvador conhecido pelos restaurantes e bares. Na calçada diante da Caixa Econômica Federal, um rapaz de uns 20 anos, vestindo bermuda xadrez, camiseta e chinelos, encontra nossa carteira. Imediatamente ele a coloca no bolso e entra no banco. Lá dentro, senta-se ao lado de um senhor e uma senhora (possivelmente seus pais) que aguardavam a vez de serem atendidos. Os três vasculham a carteira, retirando até as notas fiscais, mas dessa vez também não recebemos nenhuma ligação.
No fim do dia, perdemos mais uma carteira no calçadão da Avenida Oceânica, perto do Farol da Barra, onde as pessoas se exercitam correndo ou caminhando. Uma mulher loura, de vestido preto e sandálias, apanha a carteira, guarda na bolsa, depois a tira para examinar seu conteúdo. Umas duas horas mais tarde, recebemos o telefonema de Nathalie. Marcamos um encontro com ela no dia seguinte. Na entrevista, descobrimos que ela é romena, mora em Nova York, mas está passando quatro meses em Salvador. Arquiteta, viu-se desempregada em plena crise econômica nos Estados Unidos e, quando uma amiga que tem uma casa em um bairro popular de Salvador a convidou a passar uns tempos ali, não hesitou.
No Shopping da Barra, esquecemos uma carteira num banco, depois de sentar para fazer uma ligação fictícia. Verena Soares, 29 anos, bióloga que trabalha como vendedora em uma loja do shopping, avista a carteira e a entrega imediatamente ao segurança. “A honestidade vem de família, é de criação”, reafirma Verena. “Até pensei em abrir para ver se havia alguma informação sobre o dono, mas, ao ver o segurança, achei que era responsabilidade dele.”
Em meio às barracas de castanhas, camarões secos, farinhas, frutas, verduras e artesanato do Mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, um homem perto dos 40 anos, com uma camiseta da beleção brasileira e short, passa e recolhe a carteira. Não faz nenhuma questão de escondê-la – sai com ela na mão, mas nunca entra em contato.
Próximo à Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, Hildegundes Medeiros Silva vem andando com a mulher, duas irmãs e uma amiga quando vê a carteira no chão. Ele para, a apanha e mostra ao grupo. Olham em volta, à procura do dono. Como não veem ninguém, ligam para o número de celular que encontram ao abrir a carteira. Hildegundes, que está se aposentando, tem uma filha de 19 anos e 15 irmãos, garante: “Com certeza todos eles devolveriam a carteira, caso a encontrassem. Entre os cidadãos comuns, há muitos honestos – a maioria.” A igreja fica ao lado de um posto da polícia, mas Hildegundes optou por não deixar a carteira lá por medo de o dinheiro não retornar ao dono.
Na praça da Trindade, Iran Freire Anijar, de 11 anos, desliza de um lado para o outro com seu skate quando avista uma carteira. Imediatamente, o menino leva seu “achado” à mãe, que o observa enquanto toma um sorvete numa lanchonete na frente da praça. “Mesmo se minha mãe não estivesse aqui, eu levaria a carteira para ela devolver ao dono”, garante Iran. “O que você faz volta para você”, diz a mãe, Ana Carla Freire.
Consciência limpa
No Mercado Municipal de São Paulo, apesar de nos encantarmos com a variedade e a beleza das cores, formas e aromas das barracas na seção de frutas, não temos boas notícias... O funcionário de uma das barracas vê a carteira no chão, a apanha e coloca furtivamente no bolso da calça. Em seguida, entra em uma área restrita a funcionários, onde fica alguns minutos antes de tornar a sair. Nossa carteira? Nunca mais soubemos dela.
A atitude do chef de cozinha David Kleber Lustosa Ribeiro, 26 anos, porém, é exemplar. Na Avenida das Nações Unidas, parando para tomar um café com a colega Nancy Rodrigues dos Santos Simões, gerente do restaurante onde os dois trabalham, ele vê a carteira caída no chão e imediatamente a entrega no caixa do balcão do café. “A honestidade é algo inerente a cada um. Nem todos têm”, diz ele.
Assim agem também as amigas Valéria Fernandes, 26 anos, Fernanda Salles, 31 e Natália Soares, 27, respectivamente arquiteta, administradora e hoteleira. Elas acabam de almoçar num restaurante na galeria que fica entre a Oscar Freire e a Augusta e encontram a carteira num banco. Dirigem-se de imediato ao caixa e entregam a carteira lá. As três concordam que honestidade é algo que se aprende desde criança.
Os resultados
Nosso teste da vida real deixou claro o seguinte: princípios morais são adquiridos por meio dos exemplos dados pela família. A maioria dos que devolveram as carteiras com o dinheiro revelou que o desejo de fazer o certo foi instilado pela família, principalmente pelos pais. “O primeiro passo para a honestidade vem dos pais. Depois, da escola”, disse o advogado Augusto Cherfan Junior, de Belém, que estava acompanhado da amiga Tatiana quando encontrou outra das nossas carteiras e procurou um segurança para entregá-la.
Para esses, a situação nem sequer consistiu em um dilema moral. Não havia outra hipótese, senão devolver a carteira, fosse porque seu conteúdo poderia fazer falta ao dono ou simplesmente porque não lhe pertencia. “Existe um lado místico na propriedade, uma ligação da carteira com o dono, que faz com que você se sinta compelido a devolvê-la”, observa o antropólogo Roberto DaMatta.
Alguns demonstraram claramente  a intenção de se apropriar da carteira, guardando-a dissimuladamente assim que a viram. E outros chegaram a olhar em volta, perguntar a uma ou duas pessoas por perto e, não encontrando de imediato o dono, não resistiram à tentação e ficaram com o dinheiro.
Jovens, idosos, ricos, pobres, homens, mulheres, moradores de cidades grandes, médias ou pequenas – não existem verdades absolutas nem um perfil que aponte para a honestidade e a ética, mas é inspirador ver que, como um todo, somos um povo honesto.                                 
Das 72 carteiras utilizadas na pesquisa, 39 foram devolvidas (54%). Confira o ranking das cidades mais honestas:
1º São Paulo (SP)
Devolvidas – 9
Não devolvidas – 3
2º Belém (PA)
Devolvidas – 8
Não devolvidas – 4
3º Salvador (BA)
Devolvidas – 7
Não devolvidas – 5
4º Bento Gonçalves (RS)
Devolvidas – 6
Não devolvidas – 6
5º Dourados (MS) 
Devolvidas – 5
Não devolvidas – 7
6º Rio de Janeiro (RJ)
Devolvidas – 4
Não devolvidas – 8

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