quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

"O garimpo foi bom para mim"

"O garimpo foi bom para mim"

Tolentino Ferreira Sousa, personagem desta edição da série 50 Anos do Garimpo de Ouro no Tapajós, tem pouco mais de 1,60 cm de altura. Franzino, ele não encarna o biótipo do garimpeiro forte, fazendo parte do grupo dos que provam que tamanho não é documento. Nasceu no dia 26 de setembro de 1936, embora tenha sido registrado como nascido no ano de 1938.

Aos 72 anos de idade Tolentino já não tem mais saúde para continuar enfrentando a dureza do trabalho no garimpo. Por isso, passa os dias na boa casa que construiu na 19ª Rua (Bela Vista), com as economias dos bons tempos da garimpagem. Uma das suas distrações é apostar em algumas das muitas loterias da Caixa, já tendo acertado algumas vezes, sempre prêmios pequenos. Mas, como bom garimpeiro, não desiste, crente que um dia a sorte grande vai chegar.
"Quando eu entrei para o garimpo, tinha 20 anos de idade, levado pela idéia de ganhar bem mais do que conseguia na colônia, onde o ganho era pouco. A gente ouviu falar que no garimpo dava pra fazer muito mais. Comecei lá em Xambioá, no Goiás, mexendo com extração de cristal e diamante.

No Tapajós, o primeiro garimpo que eu fui foi o Crepurizinho, onde passei a maior parte da minha vida de garimpeiro. Fui de avião, com o comandante Amaury, que já morreu. Chegando lá a gente foi recebido pelo João Rodrigues, que era o dono da pista. A passagem custou 50 gramas de ouro. Eu fui fiado, para trabalhar e pagar quando chegasse lá. Quem pagava para a agência era o João Rodrigues. Eu fui trabalhar para um homem que se chamava Raimundo Barbeiro. Em 12 dias eu paguei a passagem, pois tinha muito ouro. A gente ganhava uma diária de quatro gramas. Mas, como a gente podia trabalhar na empreita, alguns dias depois eu preferi assim, pois a gente chegava a ganhar 20 gramas de ouro por dia.

Quando eu cheguei lá fiquei preocupado, pois encontrei uma corrutela nervosa; os homens andavam com revólveres na cintura, cercados por um cinturão cheio de balas, uma espingarda pendurada e mais um enorme facão. Isso acontecia em qualquer lugar da corrutela.
Naquele tempo o Crepurizinho tinha tanto ouro, mas tanto ouro, capaz de quase a gente pegar com a mão. Por causa disso e da cobiça do ser humano havia muita confusão, muita desordem. Havia muitas mortes. Era a lei do mais forte. Isso era o ano de 1964, quando a corrutela do Crepurizinho tinha perto de 200 casas.

Eram dois os principais motivos de mortes. Um era confusão que começava por causa de grotões; um garimpeiro dizia que era seu, enquanto outro alegava que lhe pertencia. O desfecho acontecia, quase sempre, na corrutela. O outro motivo era por causa de bebedeira, nos bares e nos bordeis. Quando os garimpeiros chegavam querendo companhia, muitas vezes encontravam problemas, pois como eram poucas as mulheres, havia disputa por elas, muitas das quais terminavam na bala, com um dos garimpeiros morto. Eu mesmo vi muitas confusões começarem, mas, como nunca gostei de me envolver em tumultos e como não tinha nada a ver com aquilo,cuidava de me mandar para longe. Só ouvia os tiros e depois sabia o resultado.
Havia um bocado de comércio

grande lá, no começo de 64. Lembro do Adonias, João Rodrigues, Herval, Pernambuco, Bené (de Bragança) e Londrina eram todos donos de comércios grandes mesmo. A exploração do ouro era pertinho da corrutela; era questão de poucos minutos. A gente não tinha dificuldade para comprar as coisas, de tão perto que era.

Durante cinco anos eu trabalhei para os outros, até tocar meu próprio serviço. Foi de 1964 a 1969. Saí furando terra, comprando na cantina para pagar depois e sempre consegui saldar meus compromissos. Eu não me reclamo da sorte. Saí da colônia com a intenção de melhorar de vida e melhorei. Cheguei a ter oito quilos de ouro como capital, meu mesmo; oito quilos, depois de pagar todas as contas.

Com o dinheiro que ganhei, comprei casas, carros, gado e até um comércio em Santarém. Mas, mesmo sem ser esbagaçado, sem gostar de farras, às vezes alguns negócios não dão certo; comprei algumas coisas por um preço e vendi pelo décimo do valor que valia; assim sendo, me desfiz de quase todos esses bens. Se eu fosse farrista, talvez não tivesse guardado nada.
O garimpeiro nem sempre é um bom negociante; não pára e analisa se aquele negócio que ele está para fazer é bom ou ruim; sempre acha que vai se dar bem no próximo barranco e não funciona sempre desse jeito. A gente faz negócio sem avaliar direito o que está fazendo e termina pagando caro por não pensar antes de tomar certas decisões. Seu eu tivesse prestado mais atenção, tinha feito negócios melhores do que fiz, com resultados melhores.

Eu fiquei 28 oito anos sem abandonar o Crepurizinho. Eu digo, sair para trabalhar direto noutro lugar. De vez em quando ia ao Crepurizão, mas, somente fazer negócios. Uns dois anos depois que eu cheguei eu andei fazendo umas pesquisas no Patrocínio, no Tabocal, no Tauari e no Marupá, sem nunca abandonar o serviço que tocava. O maior tempo que eu fiquei ausente foi um ano e meio, no Patrocínio.

Quando eu conheci o Crepurizão, lá não existia nada, nem sinal de corrutela; só havia mato e alguns serviços sendo tocados nos baixões. A primeira pista de lá foi feita por um macapaense chamado Mundico Coelho, que eu conheci muito bem. Ele era um comerciante, que pagou para que a pista fosse feita no braço, na base do machado. Era uma pista pequenina, na qual operavam somente aviões pequenos, que carregavam 150 a 180 quilos, no máximo.

Depois de pronta a pista, começou a construção de casas perto dela. As casas eram feitas duma árvore que o pessoal chama de ripeira. Eu não tenho muito certeza, mas eu acho que isso aconteceu no ano de 1965.

O finado Wilson Uchoa pegou ouro demais no Crepurizão. Mas, quando eu digo muito, foi muito ouro, mesmo. O Arnaldo também botou a mão num bocado de ouro. Já no Crepurizinho, o finado João Rodrigues pegou muito ouro. Além dele, o Raimundo dos Porcos, o Pernambuco e o Bené Barbeiro.

Minha vida tem sido vivida no garimpo. Até julho do ano passado eu trabalhei direto lá dentro, de onde eu só saí porque a minha saúde não me permite mais enfrentar esse tipo de trabalho. A coluna não deixa mais eu fazer aquilo que fiz por tantos anos; carreguei muito peso nas costas, em jamaxim com 45, 60 e ate 70 quilos, horas e horas dentro do mato. Mas, minha terra tá lá. Eu deverei entrar daqui a pouco para dar uma olhada como estão as coisas. Hoje está mais fácil, pois a gente usa moto. Eu tenho umas pessoas de confiança que vou colocar para trabalhar no garimpo.

Apesar das dificuldades que a gente enfrentou, eu sempre senti prazer em ser garimpeiro, pois era a chance que tinha para pegar um dinheiro melhor. Hoje, vivo de uma poupança que fiz e ainda vou tocar essa terra lá no Crepurizinho. Eu não posso mais fazer o trabalho, mas, vou botar um pessoal para trabalhar para mim, que é para a gente ganhar um dinheirinho. Eu cheguei a ter 50 homens trabalhando comigo numa frente de serviço, todos por minha conta.

Quase mil casas - No auge do Crepurizinho eu contei as casas que existiam na corrutela. Eram quase mil, sem contar os barracos, pois com eles passava de mil. Só casas de comércio eram 680, contando todo tipo de estabelecimento; entravam dos grandes comércios até as pequenas vendas. Hoje em dia ainda tem muita casa, tem escola boa, mas os negócios estão devagar.

Agora parece que o governo vai olhar para o garimpeiro, com esse estatuto que o presidente Lula assinou. Isso é bom porque tem gente que passa muito aperto lá dentro. O pessoal adoece e não tem como vir para a cidade.

Morrendo a mingua - Vi muitos companheiros, amigos próximos perderem a vida, sem que a gente pudesse fazer nada. Muitos morreram dentro da mata, estirados numa rede. Eles urinavam e a rede ficava amarela. Era hepatite, mas a gente não sabia e mesmo que soubesse, o que podia fazer, sem nenhum recurso? Trazia para a corrutela para enterrar. Às vezes o companheiro adoecia muito e cismava de comer carne de caça; a gente dizia: não come rapaz, que pode fazer mal; mas, tinha uns que eram teimosos e comiam carne de paca, por exemplo, que é muito reimosa. Muitos morreram. Tinha um, o Raimundo Bernardino, que era um companheirão, que morreu, na pista da FAG, perto do Crepurizinho. Eu senti muito a morte dele.
Eu sempre fui muito resistente à malária. Quando pegava, tomava logo remédio e ela ia embora sem demora. Tinha a vantagem de não beber, nem fumar. Quando não tinha remédio de farmácia tomava chá de casca de pau, como castanheira, cedro e jatobá, que é bom para combater inflamação. Assim era a vida da gente, a vida dura de garimpeiro, sempre na busca do ouro.

Na próxima edição, o Jornal do Comércio deverá tratar da aviação de garimpo, atividade da maior importância nessa atividade tão relevante para a economia de Itaituba e da região. Provavelmente, dada a abrangência do tema, será necessário dedicar ao menos duas edições seguidas para contar tantas histórias, tantos fatos marcantes envolvendo esse setor.

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