sábado, 1 de abril de 2017

A história da sua vida

A história da sua vida


Pensando na posteridade? Escreva suas memórias e torne-se imortal.

Jeannette Walls teve uma juventude miserável. Sem moradia fixa, pobre, quase sempre com fome, cresceu próximo às montanhas da Virgínia Ocidental, nos Estados Unidos. Para escapar da pobreza, mudou-se para Nova York, onde ficou famosa como colunista de fofocas. Os pais também se mudaram para lá. Só que logo viraram sem-teto. Certa noite, indo para uma festa, vestida com roupas de grife, ela viu a mãe vasculhando uma caçamba de lixo. Baixou a cabeça e pediu ao motorista do táxi que a levasse para casa. A notícia seria terrível se descobrissem!
“Fiquei apavorada”, diz ela. “Eu levava aquela vida ótima, tinha um marido que me amava, um excelente emprego, uma casa confortável, mas me senti um engodo. Senti a compulsão de escrever sobre aquela situação constrangedora, embora soubesse que estava pondo tudo em risco.”
Jeannette Walls tentou iniciar suas memórias quatro vezes ao longo de 20 anos.
Em todas as vezes ficou tão frustrada que jogou fora tudo o que escrevera. Por fim, aos 44 anos, O castelo de vidro foi publicado. Ficou quase três anos na lista de best sellers do New York Times; vendeu mais de dois milhões de exemplares, foi traduzido para 23 idiomas e logo virará filme.
“Algo que aprendi ao escrever minhas memórias foi que todos nós temos muito em comum”, diz Jeannette. “Acha­mos que certas coisas só acontecem conosco e fazem de nós uma pessoa inferior. Vivo insistindo com todo mundo, principalmente com as pessoas mais velhas, que escrevam sobre sua vida. Isso nos dá um novo ponto de vista. Abriu muito os meus olhos e foi como uma catarse. Mesmo que o livro não vendesse um único exemplar, ainda assim teria valido a pena.”
Não é preciso passar por uma infância miserável para escrever suas memórias. Não é preciso ter pais excêntricos. Acredite ou não, não é preciso nada que seja dramático. E, claro, não é preciso publicar. Veja a conversa que Frank McCourt – escritor que ganhou o Prêmio Pulitzer e autor de As cinzas de Ângela e outras memórias – teve com um aluno:
– Sr. McCourt, o senhor foi um sortudo. Viveu aquela infância miserável e por isso teve sobre o que escrever. E nós, vamos escrever sobre o quê? Só fazemos nascer, ir para a escola, sair de férias, ir para a faculdade, nos apaixonarmos, nos formarmos, começarmos alguma profissão, nos casarmos, termos os filhos de que o senhor sempre fala, mandarmos os filhos para a escola, nos divorciarmos como 50% da população, engordarmos, termos o primeiro infarto, nos aposentarmos e morrermos.
– Jonathan – respondeu McCourt –, este é o roteiro mais triste que já ouvi em uma sala de aula da escola secundária. Mas você acabou de citar os ingredientes dos grandes romances americanos. Resumiu os romances de Theodore Dreiser, Sinclair Lewis, e F. Scott Fitzgerald.
Em outras palavras, 99,9% das pessoas levam uma vida chata. Mas todas tentam entender a vida, tentam encontrar significado no mundo, e aí residem o valor e a oportunidade das memórias. São terapêuticas para quem as escreve e podem até ajudar os descendentes a se entenderem melhor.
“Escrever as memórias é como entregar a vida a alguém e dizer: eis pelo que passei, eis quem sou, talvez com isso você consiga aprender alguma coisa”, diz Jeannette Walls. “É dividir honestamente o que pensamos, sentimos e sofremos. Se conseguir fazer isso com eficiência, alguém pode receber a sabedoria e os benefícios da sua experiência sem ter de vivê-la.”
Escrever sobre a própria vida também possibilita um novo entendimento dela numa idade em que provavelmente achamos que nos conhecemos bastante bem. O romancista Stephen King já disse: “Escrevo para descobrir o que penso.” Ele quer dizer que, até registrarmos uma experiência no papel, até encontrarmos as palavras perfeitas para descrevê-la, não conseguimos apreciá-la nem entendê-la por inteiro. Ao enfileirar as experiências relacionadas, vemos um padrão na colcha de retalhos da vida. Criamos um legado que não tem cifrões na frente, mas cujo valor para a família e os amigos é muito maior.
Os tipos de memórias são tantos quanto as pessoas. Como Jeannette Walls e Frank McCourt, é possível escrever sobre a infância. Também se pode escrever sobre lugares visitados, como fez Elizabeth Gilbert no grande sucesso Comer, rezar, amar. Pode-se escrever sobre uma pessoa que nos influenciou, como fez Lorna Kelly em The Camel Knows the Way (O camelo sabe o caminho), em que relata a época que passou com Madre Teresa e as Missionárias da Caridade. E pode-se escrever sobre um crime ou injustiça sofrida, como fez Mary-Ann Tirone Smith em Girls of Tender Age (Moças de tenra idade), que fala do assassinato de uma colega de escola. Pode-se escrever sobre qualquer coisa, não importa que pareça sem graça ou sem impacto. Todo mundo tem histórias guardadas no subconsciente à espera de tradução.
O desafio é começar, é convencer a história a sair. (Na verdade, há quem diga que o começo é metade do fim.) Como a iniciativa tem um valor inerente que vai além dos aplausos do público, não é preciso ser escritor profissional nem ter ligações com o mundo editorial para conseguir. Pode-se escrever para si mesmo.
Kelly envolveu-se com Madre Teresa e seu trabalho durante uns 16 anos, abandonando a carreira de leiloeira da Sotheby, em Manhattan, para trabalhar nas favelas de Calcutá e de outros lugares do mundo.
“De vez em quando, eu dava palestras. E todo mundo me dizia que eu deveria registrar aquelas experiências por escrito. Não me considero escritora, mas ouvi aquela mensagem tantas vezes que achei melhor prestar atenção. E comecei a escrever na minha máquina Selectric. Fui muito ingênua, porque achei que escreveria um livro e na semana seguinte faria outra coisa. Mas é claro que, no fim, deixei tudo de lado e me dediquei inteiramente aos textos.”
A própria Kelly publicou o livro e mandou imprimir 10 mil exemplares, financiando o projeto com empregos variados (inclusive um período como porteira). Dependendo principalmente do boca a boca e de sua própria paixão, desde então já fez uma segunda tiragem e vendeu um total de 15 mil exemplares.

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