No país do vil metal
A esperança de achar ouro continua fazendo parte do sonho
de riqueza de garimpeiros e empresas, que correm atrás de uma reserva
estimada em duas mil toneladas do minério
AZIZ FILHO – Teofilândia (BA) e
LIANA MELO – Itaituba (PA)
Os olhos de Adelmo Oliveira, 11 anos, brilham quando ele aponta
com os dedinhos calejados um punhado de pó dourado na pedreira perto
de seu casebre. “Parece ouro ou não parece? A gente pode ficar rico”,
sonha o pequeno, indiferente à gozação do colega de estudos, brincadeiras
e trabalho Antônio Muniz dos Santos, da mesma idade. O sorriso ingênuo
de Adelmo é de dar nó na garganta. Ele não tem infância. Juntamente
com outras 260 crianças, do povoado de Barreiro, em Teofilândia,
sertão baiano, trabalha de marreta na mão britando rocha para vender
à beira da BR-116 Norte. Adelmo almoça feijão com farinha, quando
muito, mas não é por simples devaneio que sonha com fortuna no inferno
do semi-árido. A superfície de Teofilândia é forrada por mandacarus
que anunciam o eterno sertão, mas de seu subsolo, transformado em
queijo suíço pela mina Fazenda Brasileiro, a Companhia Vale do Rio
Doce (CVRD) retira cinco toneladas de ouro por ano.
Como em todos os municípios de onde o Brasil arranca 50 toneladas
por ano, em Teofilândia o nobre minério escancara a face de vil
metal. “O ouro é tirado de onde ninguém vê. As barras saem de avião
e ninguém sabe para onde”, diz o prefeito Carlito Oliveira (PL).
Ele faz das tripas coração – dá até esmola a pobres em fila em sua
garagem – para administrar esta cidade de 20 mil habitantes que
está entre as mais pobres assistidas pelo Comunidade Solidária.
Apesar de sediar a segunda maior mina de ouro da Vale, Teofilândia
recebeu de royalties da companhia, de janeiro a setembro, míseros
R$ 115 mil. A mina fatura por ano R$ 90 milhões e lucra R$ 22 milhões.
Para abrigar seus funcionários, a Vale ergueu em meio ao sertão
baiano uma vila para 383 pessoas com aparência de cidadela do Primeiro
Mundo. Construiu também uma adutora de 40 quilômetros para abastecer
a mina e sua vila. Para os habitantes de Teofilândia, liberou 18
bicas d’água.
“Quando cheguei, há nove anos, me perguntava diariamente: de que
adianta ter tanto ouro numa cidade miserável como qualquer outra
do sertão nordestino? Hoje sei que não adianta nada.” A conclusão
é do padre espanhol Francisco Xavier Pedraza, 40 anos. Revoltado
com a contradição, ele já incitou os camponeses a furar a adutora.
“É um acinte. Os tubos da adutora passam por roças onde crianças
caminham três quilômetros para beber água. Ouro não pode valer mais
do que ser humano.” A voz do padre é dissonante numa região dominada
por coronéis, que escrevem seus nomes em caminhões-pipa em anos
eleitorais.
Teofilândia na Bahia; Curionópolis, Marabá e Itaituba no Pará;
Riacho dos Machados, em Minas Gerais, onde uma mina de ouro foi
fechada há dois anos, deixando 400 desempregados. A realidade miserável
de cidades como estas, que vivem ou viveram da exploração do ouro,
destoa muito dos números expressivos da produção do metal no Brasil.
O País tem reservas detectadas de duas mil toneladas de ouro. Estima-se
um potencial de 34 mil toneladas, o que, se confirmado, transformaria
o Brasil no eldorado mundial. Para se ter uma idéia, de 1500 até
hoje o País produziu 2.800 toneladas, menos de mil nos quatro primeiros
séculos. A África do Sul – maior produtor do planeta, com 40% das
reservas mundiais conhecidas – tem 18 mil toneladas.
Hoje, quase 100% da produção nacional é exportada porque a indústria
joalheira no País é insignificante. Guardadas as proporções, o movimento
lembra o Brasil colonial, quando o metal seguia para a Península
Ibérica. Mas os locais por onde passou o ouro dos séculos passados
guardam marcas de exuberância, como Ouro Preto, patrimônio da humanidade,
com suas igrejas brilhantes. Bons tempos, diria o Vaticano. Na igrejinha
de Teofilândia, que o lendário Antônio Conselheiro ajudou a construir
no fim do século passado, as imagens são de gesso e não há uma única
peça valiosa. A Vale doou apenas tinta branca para pintá-la há quatro
anos.
Na praça em frente à igreja, a analfabeta Olga Cerqueira espera
um carcomido ônibus escolar para pegar carona. Se perdê-lo, tem
de caminhar 12 quilômetros, carregando as dúzias de ovos que não
conseguiu vender, até seu barraco de quatro cômodos no povoado Caatinga
de Cheiro. Ela gargalha quando é perguntada se já viu o ouro de
Teofilândia. Nem sabe onde fica a mina. De seus dez filhos, sete
preferiram tentar a sorte em São Paulo – onde são pobres – do que
viver acuados pela seca. Os seis netos provavelmente repetirão a
trajetória. “Se eu achasse pelo menos um ovinho de ouro, meu filho...”
Tragédia social – Não se pode atribuir a insistência da
miséria numa cidade cheia de ouro só ao fato de o metal estar misturado
a rochas profundas de onde só pode ser retirado com equipamentos
de milhões de dólares. Nas áreas de garimpo, onde a exploração artesanal
dispensa máquinas sofisticadas – como na época de Vila Rica – a
tragédia social não é diferente. A pobreza ofusca o brilho das pepitas
de Itaituba, no Pará, que concentra em 100 mil quilômetros quadrados
a maior reserva garimpeira nacional. Como em Teofilândia, a riqueza
não protege a infância de Itaituba.
A pequena Jeiciane Lopes, de 5 anos, integra uma geração que nasceu
e cresce no garimpo Fofoca, no meio da floresta Amazônica. Não freqüenta
escola e nunca teve médico ou dentista. No lugar de bonecas, brinca
com gravetos. A alimentação é à base de arroz, feijão, farinha e
raros pedaços de carne. O futuro não é nada promissor, mas a menina,
sem consciência, passa o dia brincando de madame e esnobando as
amiguinhas que não ganharam cordões de ouro dos pais. Os dela vivem
pendurados no pescoço. “Meu pai é muito rico”, orgulha-se. O sonho
de Jeiciane pode se realizar se o pai encontrar boas pepitas em
suas escavações. A julgar pela indigência generalizada dos garimpeiros,
a possibilidade é remota e Jeiciane, como as crianças de Teofilândia,
deverá gastar a infância sonhando com riqueza e vivendo na miséria.
Os sonhos dourados da filha do garimpeiro de Itaituba estão no
imaginário da humanidade. Desde a Antiguidade, o ouro simboliza
poder e riqueza, mas, na realidade, os que passam a vida futucando
a terra em busca do nobre metal estão entre os brasileiros mais
desafortunados. “Garimpeiro sobrevive de teimoso”, avalia o prefeito
de Itaituba, Edilson Dias Botelho (PSDB). Das 11 toneladas de ouro
produzidas a céu aberto em 1998 nos garimpos do Brasil, quase duas
saíram da província aurífera do rio Tapajós, em Itaituba. Oficialmente,
30 mil pessoas estão envolvidas no garimpo. Em 1998, foram declaradas
à Receita Federal vendas de R$ 20,3 milhões, o que rendeu, de Imposto
sobre Operações Financeiras (IOF), apenas R$ 112 mil. Pelos cálculos
da prefeitura, a população garimpeira chega a 100 mil e o volume
de vendas em 98 foi de R$ 61 milhões.
São invisíveis os benefícios sociais do vil metal de Itaituba.
“O ouro daqui fez a riqueza de poucos”, admite o prefeito. Até os
anos 50, a cidade vivia da borracha. Com a descoberta dos alu-viões
em 1958, Itaituba passou a ser sustentada pelo ouro, vivendo seu
auge nos anos 80. Com o minério em abundância e dinheiro farto,
a cidade explodiu. Agências de bancos correram para lá, como empresas
de mineração, transporte e fundição. O pequeno e modesto aeroporto
chegou a ter congestionamento. Segundo o Departamento de Avião Civil
(DAC), os pousos e decolagens chegaram a 68 mil em 1998. Mas a bonança
não mudou o perfil sócio-econômico da cidade, que continua praticamente
sem pavimentação. O esgoto chega a somente 10% das casas e a energia
elétrica, a 5%. Trinta e um por cento dos habitantes acima da idade
escolar têm menos de um ano de instrução.
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