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quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Aviação de garimpo, os kamikases da amazonia
Enquanto muita gente se divertia por ai, algumas centenas de abnegados que gostam de voar por amor a liberdade estavam embrenhados numa mata virgem arriscando suas vidas. Transportando pessoas e carga em frágeis aviões, ajudando nascer uma civilização no meio da mata, construindo uma futura cidade. Onde muitos não conseguem chegar, o avião transpõe tudo e chega lá, trazendo o conforto, a sobrevivência, a salvação daqueles que por uma ou outra razão escolheram viver perigosamente no meio da selva, no inferno verde.
Longe de tudo, distante de nossos lares milhares de quilômetros, onde só o avião e a imaginação conseguem chegar, estávamos nós, dezenas de pilotos, enfiados numa área de garimpo. Hoje as lembranças, coisas boas da vida da gente, não se apagaram. E como é bom recordar aqueles tempos, no ano de 1983.
Havia perdido o emprego como Comandante de um bimotor e estava dando cabeçadas, fazendo free-lancer numa vida minguada, cheia de concorrência e sem reconhecimento, sobrevivendo só Deus sabe como. Afinal, aviação executiva havia dado o seu ultimo suspiro no sul. Nesta época meus olhos estavam voltados para a região norte, onde ainda o avião como meio de transporte tem a sua posição privilegiada. Onde os profissionais conseguem ganhar justamente o que merecem.
Surgiu a oportunidade e de repente estava eu em TUCUMÃ, uma civilização que nascia a cinqüenta minutos de vôo de Redenção no Pará, em plena mata virgem. A poucos minutos de voo de Serra Norte, de São Felix do Xingu e da aldeia Kriketun, as margens do rio Fresco e do rio Branco.
TUCUMÃ, a 12º quilômetros de São Félix do Xingu, era uma iniciativa corajosa da Construtora Andrade Gutierrez, denominada projeto Cidade nº1. Era a primeira gleba. O CUCA era a cidade satélite implantada pelo pessoal de Belo Horizonte – MG que implantava essas cidades, onde as áreas de garimpos proliferavam pela região em uma verdadeira corrida para o ouro. Nesta corrida maluca entrava a aviação de garimpo, elo de ligação entre a civilização que surgia e as clareiras abertas na selva, onde estavam as pequenas faixas improvisadas para pouso e decolagem, pistas num superiores a 300 metros. Sem aproximação, sem arremetida e geralmente construídas nos pés de morros, onde se desenvolviam os garimpos de ouro.
PISTA NOVA com a cantina do Zinho e do falecido Mané Gato, com a cantina do Antonio e da Raimundona, onde tinha farmácia, dentista, barbeiro, padaria, açougue e até cinema. PISTA DA UNIÃO, MAGINCO,MARIA BONITA,BATEIA,CUMARÚ, etc… Cenário de grandes aventuras, onde alguns amigos por infelicidade ficaram para sempre, tentando fazer a ligação, entregar o frete.
Seis a oito pessoas, dependendo do porte físico do grupo e mais suas borrocas(maletas de viagem) eram transportadas comprimidas como sardinha em lata, dentro de um avião de 4 lugares como o “Carioca” ou o “Skylane”. Valeu a experiência para os que ficaram sem serem mutilados pela sorte, e a certeza do que pode realizar um Carioca, um C-180, um C-182, ou um C-206.
Nós vivemos uma aviação sem mistérios, sem padrão, sem apoio de terra, sem manutenção preventiva e por dezenas de vezes cruzamos aquele tapete verde sem sequer carregar uma bolsa de sobrevivência na selva ou um galão de água. De bermudas, camisetas e às vezes mesmo sem camisa tal o calor insuportável conseguimos transpor milhares e milhares de castanheiras gigantes, num vai e vem, levando alimentação, pessoas, coisas e enfermos.
A malaria também era um dos grandes inimigos naturais, por isso dormíamos dentro de barracas, enfiados em mosquiteiros até conseguir uma vaga na hospedaria pioneira de madeira que surgia na civilização chamada TUCUMÃ, hoje uma cidade.
Nós vimos e ajudamos a nascer TUCUMÃ, fazer dela uma prospera cidade. Na época das águas(chuvas) os vôos diminuem e os acidentes parecem aumentar com as pistas escorregadias, os nevoeiros de superfície e os CB. Na estação da fumaça, bruma seca originaria das queimadas do Pará e Goiás é coisa seria e dá condições de vôo por instrumentos (IMC) e mesmo assim quantas e quantas vezes arriscamos a pele fazendo os vôos espanta macacos por baixo da cortina de fumaça, lambendo as castanheira, para retirar o enfermo com malaria ou o acidentado que precisava de socorro. Muitas vezes com o combustível contado, sem alternativa, navegando só na bussola e por referencias visuais em rios, clareiras,pistas abandonadas, aldeias, morros, etc
Quando lá cheguei havia onze aviões apenas operando na área de garimpo, mas quando de lá sai somavam mais de quarenta. Todo dia chegando aviões com pilotos aventureiros procurando o seu lugar ao sol, tentando um meio de melhorar a vida.
A Policia Federal não era problema para quem estava andando certo. No entanto, de repente a FAB- Força Aérea Brasileira chegou para colocar disciplina na casa. Algum louco xingou um Coronel Aviador pela freqüência livre, virou bagunça e todo mundo dançou. A freqüência usada na época 125.80Mhz era a mais tumultuada do Pará. Todo mundo falava com todo mundo dando sua posição a cada minuto na esperança de ser localizado no caso de um pouso forçado na mata virgem. Os aviões na maioria das vezes voavam em formação, dezenas deles no ar fazendo uma mesma rota. Uma loucura que as vezes era quebrada pela monotonia dos regressos sem passageiros de retorno, batendo lata.
Dois ou três se encontravam no céu e para descontrair aquelas puxadas descomunais tipo montanha russa, seguida de uma perda total em gritos de alegria pela freqüência. Quem deve se lembrar bem disso é o Gere, o Amorr(Ceará), o Martinho(Charles Bronson). O Cmte. Gere aprendeu a voar no colo do pai, que era piloto do governo do Estado de Goiás, e hoje vive em TUCUMÃ. O Cmte. Amorr veio do Ceará por que havia pousado um bimotor perdido na noite em uma rodovia e perdera o emprego. O Cmte. Martinho era de Goiás, mas veio de Manaus-AM onde voava hidroaviões e vivia chorando por uma mulher. Cada qual tinha uma historia própria, um motivo, uma esperança, um sonho, uma ambição e um único objetivo: ganhar muito dinheiro para sair bem daquela vida arriscada, cheia de sacrifícios e muito suor.
A saudade hoje bate forte, mas persistir arriscando a vida, contando unicamente com a sorte é burrice. Afinal um homem prevenido vale por dois neste mundo curioso onde não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. Assim muitos fizeram o pé de meia como eu e caíram fora, pois quem muito quer por fim acaba sem nada, principalmente quando a historia tem um final triste. Nas lembranças ficaram os bons momentos, os amigos, nossos irmãos que comungavam a mesma trilha e que hoje cada qual seguiu um curso. São eles os inesquecíveis: Cmte. ZECÃO (José Giafonni, piloto Stock Car de São Paulo-SP), Cmte. TÚLIO e os seus C-180 (PT-AZY e PT-DKV), MARTINHO, GERÊ, CEARÁ, KIKO, SOUZA, SILVIO, VILELLA, CHAMBARI, BOSQUINHO, MARTINELLI, JEROMINHO,JURUNA, VILLAMIL,DURVALINO,JUAREIS,CARDILLE, DIVINO MARAVILHOSO e os desaparecidos mais tarde tragicamente: o SARDINHA no garimpo e o BUZINA no Rio Araguaia.
Quem não voou no garimpo, mas colocou TUCUMÃ de ponta cabeça foi o Comandante CATALÃO que agitou a bandeira e trouxe muita gente para a região, um Co-piloto do governo de Goiás que espalhou a fofoca. O ROCHINHA, sócio com o irmão que voava na VASP comprou um Cessna-182 Skylane Robertson Stoll, levou para lá, não conseguiu voar e ficou em terra controlando os vôos que empreitava para os pilotos que por ali apareciam para voar. Até que muita coisa aconteceu premeditando o trágico acontecimento final, o qual ceifou vitimas num acidente agravado pelo fogo.
As brigas, o mecânico PORTO, ex-FABiano, o MIGUEL ARGENTINO e seus aviões. Tudo tinha sabor de aventura, como uma longa novela repleta de capítulos emocionantes envolvendo pioneiros, onde ficou gravado o calote que levamos dos índios e de alguns cantineiros que não pagaram os seus vôos e nós não recebemos a nossa sagrada comissão.
Em todo lugar existem os mais loucos. Aqueles, Omo o BOSQUINHO e o VALÉRIO que operavam o EMBRAER CORISCO em pista de garimpo, onde nem mesmo o helicóptero da FAB gostava muito de, aleijado de um pé num acidente com um Cessna-170, quebrou um monte de aviões que passaram pelas suas mãos até que se perdeu com um velho Cessna-210 no meio da fumaça durante um vôo de navegação e acabou jogando o avião numa quiçaça de fazenda perto de Redenção-PA, deixando os passageiros assustados e em pânico. Sem contar a pilonada do AMORR na pista do Maginco, alagada, cujo show assisti de camarote em companhia de outros pilotos que iam ali aterrar. Em conseqüência um garimpeiro estourou o olho no painel do C-182 e todos saíram machucados quando o avião ficou de barriga para cima. Quem não prestou muita atenção no ocorrido, pensou que o avião havia pousado, pois tudo aconteceu rapidamente. Teve até um louco que distraidamente, vendo o avião parado próximo a cabeceira da pista, gritou na freqüência: – que lindo pouso curto AMORR !
Certa vez fugindo de um temporal, dos tais que ocorrem quase todas as tardes em locais isolados do Pará e da Amazônia com muita chuva e fortes ventos, num velho Cherokee-260 “Pathfinder”, transportando em um saquinho de papel um quilo de duzentas gramas de ouro no retorno da Pista Nova para o boteco do Zé Ceará comprador de ouro em TUCUMÃ, acabei encontrando o GERÊ num malhado Cessna skylane também fora de rota tentando contornar a chuva e os fortes ventos. Nesta altura eu já estava perdido quando vi o Rotating de cauda do C-182, fiz contato na freqüência e segui na cola aos solavancos em meio aquela escuridão provocada por um enorme CB. Fomos parar em um pista no pé de um morro, numa tal VILA REAL onde só existia uma barraca construída de troncos de coqueiros e madeira nativa, servindo como ponto de apoio à expedições que pesquisavam ouro na região. Chegamos ali com muita chuva e violentos ventos de superfície, onde pousamos e a água malhou para valer. Só saímos dali depois que o temporal passou na boca da noite. Estávamos a apenas uns quinze minutos de vôo de TUCUMÃ e nunca mais ali voltei.
O mais triste eram os vôos na fumaça onde surgem as miragens. Visões de posições e pontos conhecidos no horizonte por onde temos que passar. Voando num rumo tal, de pois de tantos minutos por exemplo tem que passar numa garganta ou ao lado de um morro visivelmente reconhecido em dias de céu claro em contraste com o horizonte. Percorrendo a mesma rota feita muitas vezes ao dia num vai e vem, na época da bruma seca quando estamos envoltos nela, a visibilidade é restrita e prejudicada fortemente. O piloto determina o tempo de vôo até a posição conhecida e durante o desenrolar do vôo, desejando ver a tão esperada referencia , começa até a imaginá-la, pois conhece perfeitamente, gravada em sua mente nos mínimos contornos. Assim no anseio de se orientar entre a fumaça esquece da bussola e imagina estar vendo tal posição e como uma miragem ele vai até lá. E quando se aproxima da referencia visual, acreditando ser verdadeira, ela desaparece. Tudo se torna mais perigoso quando a imaginando ver outro ponto conhecido e já gravado no subconsciente, arrisca ir até lá para conferir o que imagina ver e nada encontra, onde acaba se perdendo.
Nessas horas que o piloto tem que confiar na bussola, compensar o vento, acreditar no tempo sem procurar referencias visuais imagináveis, que nesta altura do campeonato acabam desaparecendo. Tranqüilidade acima de tudo deve andar lado a lado com quem se propõe voar nessas condições. E, no entanto ninguém consegue voar descontraído numa condição destas. Assim, depois de um grande susto, passei fazer como os menos corajosos, ficando em terra firme por vários dias até que a fumaça nos permitisse voar com maior segurança, sem arriscar ainda mais o pescoço.
Muitos pilotos tentaram arriscar a sorte em TUCUMÃ, mas acabaram voltando para trás com suas frustrações. Foi o que ocorreu com o Cmte. Wellinton do Aero Clube de São Paulo-SP, que tanto eu e posteriormente o Cmte. Vilella de Itú-SP levamos para conhecer as pistas e o tipo de operação no garimpo, mas acabou desistindo. Foram tentativas em vão, pois sua capacidade técnica, sua coragem, seu preparo, não foram suficientes para enfrentar a empreitada. Ainda bem, que como o Wellinton, alguns perceberam logo cedo que não possuíam aptidão necessária e desistiram, regressando sem deixar marcas. Quem não se lembra do mecânico de aviação particular do Cmte. Dimas, aquele que de vez em quando colocava o NDB 255 de TUCUMÃ no ar, principalmente na época da bruma seca. O radiofarol era de propriedade particular da Construtora Andrade Gutierrez e estava sempre necessitando de manutenção. Seu alcance era pequeno, mas ajudava os navegadores.
Outros mecânicos de aviação a quem devemos os constantes desempenhos dos nossos aviões foram: BENEDITO DE SOUZA( o Marabá), o ÊNIO AVELAR DE SOUZA e o PORTO. Eles ficaram. Pelo menos eu os deixei lá, quando resolvi vir embora. E com eles ficou TUCUMÃ, uma civilização que nós pilotos de garimpo da época vimos nascer. Hoje uma cidade, um exemplo de realismo e coragem de muitos homens. Onde estarão hoje meus amigos Pilotos de Garimpo.
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