Piroeletricidade e emissão de infravermelho distante da turmalina
Fernando Soares LameirasI; Valéria Alves Rodrigues de MeloII; José Maria LealIII
IFísico, Professor, Pesquisador Titular - Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear - CDTN (Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN). Caixa Postal 941 - Campus da UFMG - Pampulha - Belo Horizonte - CEP 30123-970. E-mail: fsl@cdtn.br
IIGraduanda em Química (Universidade Federal de Minas Gerais), Bolsista do CNPq de Iniciação Científica no Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear - CDTN (Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN). Caixa Postal 941 - Campus da UFMG - Pampulha - Belo Horizonte - CEP 30123-970. E-mail: varm@cdtn.br
IIIGeólogo, Bolsista da CAPES, Doutorando da Universidade Federal de Ouro Preto (Redemat) e Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear - CDTN (Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN). Caixa Postal 941 - Campus da UFMG - Pampulha - Belo Horizonte - CEP 30123-970. E-mail: jmleal@cdtn.br
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RESUMO
Um modelo tridimensional de computador de esferas rígidas da estrutura cristalina da turmalina revela que oscilações anarmônicas são impostas ao sítio W, o que, teoricamente, pode explicar a sua piroeletricidade e a emissão de infravermelho distante. Entretanto esses efeitos devem ser pequenos. Medidas das suas grandezas são necessárias para explicação do uso industrial do pó de turmalina.
Palavras-chave: turmalina, estrutura cristalina, piroeletricidade, emissão de infravermelho distante.
ABSTRACT
A three dimensional rigid ball computer model of the tourmaline crystal structure shows that anharmonic oscillations are imposed to the W site. This can theoretically explain both the pyroelectricity and the far infrared emission of tourmaline. Nevertheless, these effects should be small. Measurements of their magnitudes are necessary to explain the industrial use of tourmaline powder.
Keywords: tourmaline, crystal structure, pyroelectricity, far infrared emission.
1. Introdução
Nos últimos anos, tem crescido o interesse industrial pelo pó de turmalina preta (série schorlita-dravita). Produtos para tratamento de água, purificação de ar, cosméticos, argamassas, agricultura, tintas e roupas têm sido lançados no mercado. Observa-se um crescente número de pedidos de patente para usos industriais da turmalina. Porém há pouca literatura científica para fundamentar esses usos. Em geral, a piroeletricidade ou a emissão de infravermelho distante da turmalina tem sido utilizada para justificar o seu uso nos diversos produtos, através de textos com objetivos de divulgação comercial e dirigido para o público leigo.
A piroeletricidade da turmalina é uma propriedade conhecida e relativamente bem documentada na literatura científica, embora existam poucas referências sobre as suas causas. (Donnay, 1977) atribuiu a piroeletricidade da turmalina a vibrações anarmônicas do oxigênio no sítio W (descrito na próxima seção), ao observar que a sua posição média se move 0,005 Å entre 193 e 293 K, sendo o único átomo com deslocamento acima da incerteza experimental. Não se encontram, na literatura científica internacional, trabalhos sobre as causas da emissão de infravermelho distante ou mesmo se ela, de fato, existe na turmalina.
Nesse trabalho, a estrutura cristalina da turmalina está apresentada em detalhes, através do modelo de esferas rígidas, e correlacionada com a piroeletricidade e emissão de infravermelho distante, tanto do ponto de vista da mecânica clássica, quanto quântica. Espera-se dar uma contribuição para a elucidação dos fundamentos científicos para o uso industrial do pó de turmalina.
2. A estrutura cristalina da turmalina
A fórmula estrutural da turmalina é XY3Z6(T6O18)(BO3)3V3W. A sua estrutura cristalina é trigonal, do grupo espacial R3m. É caracterizada por anéis de seis tetraedros (sítios T), cujos oxigênios do ápice apontam para a direção do eixo c. Os sítios tetraédricos T são ocupados por silício. Ocasionalmente o silício pode ser substituído por alumínio ou boro [Hawthorne, MacDonald, Burns,1993 e Tagg, Cho, Dyar et alii.,1999 ]. Grupos triangulares de BO3, paralelos ao plano (0001), se alternam acima e abaixo dos tetraedros. A maioria dos estudos cristalográficos indica que há quantidades estequiométricas de boro nesse sítio [Hawthorne,1996 e Bloodaxe, Hughes, Dyar, et alii., 1999]. Os anéis planares de tetraedros são ligados por dois tipos de octaedros, Z e Y, que dividem lados entre si. O octaedro Z é distorcido e ocupado por cátions trivalentes, como Al3+, Cr3+ e V3+, mas pode conter quantidades significativas de cátions bivalentes, como Mg2+ ou Fe2+. Os cátions do sítio Z servem como ligação entre os elementos estruturais com simetria de 120º em relação ao eixo c. O sítio Y é um octaedro relativamente regular, ocupado por vários cátions multivalentes, como Li1+, Mg2+, Fe2+, Mn2+, Al3+, Cr3+, V3+, Fe3+ e Ti4+. Estudos mais refinados mostram que todos ou quase todos os sítios Y estão ocupados [Hawthorne, MacDonald, Burns,1993, MacDonald, Hawthorne, Grice, 1993 e Taylor, Cooper, Hawthorne, 1995]. O sítio X é um antiprisma trigonal de coordenação nove, localizado ao longo do eixo c. É comumente ocupado por sódio, cálcio ou potássio em menores quantidades ou, ainda, pode estar desocupado. Há 31 ânions na fórmula, localizados em 8 sítios distintos, O(1) até O(8) [Donnay, Buerger, 1950]. Os sítios O(2) e O(4) a O(8) são ocupados, exclusivamente, por O2-. O sítio O(1), denominado de sítio W, na fórmula estrutural, está localizado ao longo do eixo c, central ao pseudo-anel hexagonal de tetraedros e pode conter OH1-, O2- ou F1-. Se O2- for dominante nesse sítio, é necessário existir uma ordenação de curto alcance nos sítios Y e Z, tal que eles são, respectivamente, ocupados por alumínio e magnésio [Hawthorne, Henry, 1999]. Os três sítios O(3), denominados de sítio V, geralmente contêm OH1-, mas, também, podem conter quantidades significativas de O2-. O sítio W é único porque F1- só ocupa esse sítio e O2- também tende a ocupá-lo em relação a OH1- [Grice, Ercit, 1993, MacDonald, Hawthorne, 1995].
Para apresentação das características mais detalhadas da estrutura cristalina das turmalinas, tomou-se, por base, a shorlita, cuja fórmula química é NaFe3Al6(Si6O18)(BO3)3(OH)3 OH. A Figura 1 apresenta essa estrutura no modelo de esferas rígidas, construído com os dados para as distâncias atômicas da WWW-MINCRYST - Crystallographic Database for Minerals (Card N. 4131) [Annon], com auxílio do programa Carrara Studio 3.0. Os raios iônicos e cristalinos foram tomados de (Shannon,1976).
Os silicatos, SiO4-, que formam hexágonos, são tetraedros quase regulares. As distâncias do silício para os oxigênios são: Si-O4 = 1,63 Å; Si-O5 = 1,64 Å; Si-O6 = 1,60 Å e Si-O7 = 1,61 Å. O4, O5 têm multiplicidade 3 e O6 e O7 têm multiplicidade 6. O6 é o oxigênio do ápice de cada tetraedro. Os O7 estão fortemente ligados aos seus pares dos hexágonos adjacentes, com distância de ligação O7-O7 de 1,38 Å. Esse fato se reflete no espectro de absorção do infravermelho, que apresenta três picos distintos para as ligações Si-O, de 900 a 1200 cm-1 (vide Figura 2).
Os BO3 são triângulos bem regulares, perpendiculares ao eixo c, formados por O2, O8 e O8, todos dentro da mesma célula unitária, com o boro no centro. As distâncias entre os oxigênios e o boro são: B-O2 = 1,37 Å, B-O8 = 1,38 Å, B-O8 = 1,38 Å. O2 é o oxigênio mais próximo do eixo c. Esses triângulos têm simetria de 120º em relação ao eixo c. Eles se encontram em um plano diferente dos tetraedros do silicato, distanciados 3,26 Å destes ao longo do eixo c. O boro exerce um papel importante na ligação entre as camadas de átomos ao longo do eixo c e na ligação com o alumínio da célula unitária adjacente. As ligações B-O são responsáveis pelo pico de absorção em torno de 1.250 cm-1 no espectro do infravermelho da turmalina.
O alumínio está ligado a 4 átomos da célula unitária à qual pertence (O6, O7, O8 e OH3) e a 2 átomos da célula unitária adjacente (O7 e O8). As distâncias entre o alumínio e seus vizinhos são as seguintes: dentro da mesma célula unitária, Al-O6 = 1,88 Å, Al-O7 = 3,41 Å, Al-O8 = 1,93 Å e Al-OH3 = 1,98 Å; dentro da célula unitária adjacente, Al-O7 = 3,59 Å e Al-O8 = 1,91 Å. Trata-se de um octaedro bastante distorcido. Devido à distância das ligações com os oxigênios, vê-se que as ligações com os anéis hexagonais de silicatos (Si-O7) têm caráter iônico e devem ser fracas. Entretanto a ligação com os O8, tanto da célula à qual pertence, quanto da célula adjacente, tem quase a mesma distância. Vê-se que o alumínio exerce o seu papel na ligação entre células adjacentes no plano perpendicular ao eixo c através da ligação Si-O8. As absorções em torno de 700 cm-1 no espectro do infravermelho são atribuídas à ligação Al-O.
O ferro também ocupa um octaedro. Porém ele se liga somente a átomos da célula unitária à qual pertence. Esses átomos e as respectivas distâncias do ferro são: Fe-O2 = 2,01 Å, Fe-O2 = 2,01 Å, Fe-O6 = 2,05 Å, Fe-O6 = 2,16 Å, Fe-OH1 = 2,07 Å, Fe-OH3 = 2,17 Å. Trata-se de um octaedro quase regular. O ferro é importante para a ligação entre as camadas de átomos ao longo do eixo c.
O sódio e o OH1 se alternam ao longo do eixo c. A distância entre eles é 4,03 Å dentro de uma célula unitária. Porém a distância do OH1 para o sódio, na célula unitária adjacente, é 3,16 Å. Essa distribuição não uniforme de cargas positivas e negativas ao longo do eixo c traz conseqüências para as propriedades elétricas da turmalina. AFigura 3 apresenta a distribuição de sódio e OH1 ao longo do eixo c. Os átomos de ferro também estão mostrados. Vê-se que eles impõem uma restrição aos movimentos do OH1 ao longo do eixo c, que tem mais liberdade para se aproximar do sódio da célula unitária vizinha. Com o aumento das vibrações térmicas, espera-se que a distância entre sódio e OH1, dentro de uma célula unitária, tenda a aumentar, enquanto que a distância entre o sódio e o OH1 de células unitárias adjacentes ao longo do eixo c tenda a diminuir.
Há quatro hidroxilas na fórmula da turmalina. Uma delas, denominada OH1, ocupa o sítio W e se encontra no eixo c, como visto anteriormente. As outras três hidroxilas, denominadas OH3, ocupam o sítio V e formam um triângulo em torno do eixo c. Elas fazem parte, simultaneamente, dos octaedros do ferro e do alumínio. Na Figura 2, os picos entre 3500 e 3600 cm-1 são atribuídos às OH3 e os picos entre 3620 e 3700 cm-1 às OH1.
3. A piroeletricidade na turmalina
Em um meio dielétrico anisotrópico (monocristal), a relação linear entre a indução (D) e a intensidade do campo elétrico (E) é [Landau e Lifshitz,1971]:
Di = Doi = eik . Ek
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(1)
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onde é um vetor constante. O conjunto das grandezas eik forma um tensor de segunda ordem - tensor de permeabilidade dielétrica (ou tensor dielétrico). A maioria dos tipos de simetria cristalina não admite a presença de um vetor constante. A presença desse termo significa que o dielétrico está espontaneamente polarizado, mesmo na ausência de um campo elétrico exterior. Esses corpos são chamados piroelétricos. Entretanto a grandeza dessa polarização é sempre muito pequena em relação aos campos moleculares. Se ela fosse grande, levaria ao aparecimento de intensos campos dentro do cristal, o que não é favorável do ponto de vista energético e, assim, não corresponderia ao equilíbrio termodinâmico.
O efeito piroelétrico só é possível para algumas simetrias de cristais. Como para qualquer transformação de simetria as propriedades do cristal não devem se modificar, é evidente que somente cristais com uma direção invariável sob todas as transformações de simetria podem ser piroelétricos. É nessa direção que estará apontando o vetor constante . Apenas os grupos de simetria com um só eixo e dois planos de simetria que passam por esse eixo satisfazem essa condição, que é o caso do grupo espacial da turmalina, R3m.
Em condições ordinárias, os cristais piroelétricos não possuem momento dipolar elétrico total, embora a polarização dentro desses cristais não seja nula. Isso se dá porque, em um dielétrico polarizado espontaneamente, o campo é diferente de zero. Como a condutividade elétrica da amostra, mesmo pequena, não é nula, a presença desse campo produz uma corrente elétrica que pode existir até que a aparição de cargas livres na superfície do corpo conduz ao desaparecimento do campo dentro da amostra. Os íons do ar se depositam sobre a superfície da amostra, favorecendo esse efeito. Podem-se observar as propriedades piroelétricas através de aquecimento dos corpos, quando o valor da sua polarização espontânea se altera e se observa essa variação.
No caso da turmalina, o vetor só pode apontar na direção do eixo c, onde se encontram as hidroxilas OH1 e o sódio (vide Figura 2), respectivamente, posições X e W. As vibrações anarmônicas impostas ao sítio W pelos cátions nos sítiosY fazem com que o campo elétrico espontâneo, em torno de uma partícula de turmalina, tenda a crescer com a temperatura. Provavelmente seja essa a explicação para a piroeletricidade da turmalina. Note que, com as vibrações anarmônicas provocada pelo aumento da temperatura, a distância entre os sítios X e W tende a crescer dentro de uma célula unitária e a diminuir entre células unitárias adjacentes. Um cálculo de campo eletrostático demonstra que, quanto maior a diferença entre as distâncias dos sítios X e W, ao longo do eixo c, maior será o campo elétrico espontâneo da turmalina. Como já visto, Donnay G [1] observou vibrações anarmônicas no sítio W.
4. A emissão de infravermelho distante na turmalina
A teoria clássica para oscilações dos sistemas com vários graus de liberdade [Landau e Lishitz, 1971], no caso das vibrações anarmônicas, prevê que, às freqüências das oscilações normais próprias do sistema, de freqüênciawa ..., wb, se superpõem oscilações suplementares, de freqüência wa ± wb (entre elas as freqüências duplicadas e a freqüência nula, esta última correspondente a uma elongação constante). Ora, o espectro do infravermelho da turmalina revela oscilações da hidroxila OH1, no sítio W, entre 3628 e 3700 cm-1. Isso nos dá uma estimativa parawa - wb de aproximadamente 2.1012 s-1, com comprimento de onda de cerca de 0,1 mm, na faixa limite entre o infravermelho distante e as microondas, ou seja, pela mecânica clássica, espera-se de fato uma emissão pelos cristais de turmalina de ondas eletromagnéticas de freqüência da ordem de 2.103 GHz. Entretanto esse é um fenômeno de segunda ordem e deve ser de pequena intensidade. São necessárias medidas experimentais para se estimar a sua grandeza, de tal forma a justificar o seu emprego industrial.
Pela mecânica quântica, a solução da equação de Schrödinger para um oscilador anarmônico deve ser feita com auxílio da teoria das perturbações. Nesse caso, os níveis de energia para esse oscilador são [Landau e Lifshitz,1971]:
(2)
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Para um oscilador harmônico, as diferenças entre os níveis de energia será sempre um múltiplo inteiro de hw. Porém, para um oscilador anarmônico, essa expressão mostra que, na medida em que n cresce, as transições entre os níveis energéticos se tornam menores, desde que b < 2a2/(3mw2), ou seja, um oscilador anarmônico terá transições de energia do tipo fn,n-1.hw, onde 0 < fn,n-1 < 1 e é decrescente com o aumento de n. Ele deve apresentar um espectro de freqüências que incluirá, desde a freqüência nula até freqüências próximas das suas oscilações normais. Esperam-se, portanto, emissões de infravermelho distante na turmalina, devido às oscilações anarmônicas no sítio W. Porém a intensidade dessas emissões deve ser pequena, porque as emissões estão distribuídas por todo o espectro eletromagnético com freqüências menores que as oscilações normais e os valores de a e b, devem ser pequenos. Da mesma forma, medidas experimentais são necessárias para estimativa da grandeza dessas emissões.
5. Conclusão
A construção de um detalhado modelo de esferas rígidas para a estrutura cristalina da turmalina revela que os sítios X e W estão, ao longo do eixo c, mais próximos entre si, quando estão em células unitárias adjacentes do que quando estão dentro da mesma célula unitária. Os cátions nas posições Y impõem oscilações anarmônicas ao sítio W, o que faz com que essa diferença entre os espaçamentos se torne ainda mais pronunciada com o aumento da temperatura. Isso explica, teoricamente, a piroeletricidade da turmalina e a emissão de infravermelho distante. Porém, esses são fenômenos de segunda ordem. Medidas são necessárias para verificar se as grandezas desses fenômenos podem explicar os usos industrias do pó de turmalina.
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