terça-feira, 4 de março de 2014

Em “Serra Pelada”, o documentário, a história de um sonho

Em “Serra Pelada”, o documentário, a história de um sonho que virou realidade e deu em nada


A sessão do cinema só ia começar em meia hora, por isso resolvi entrar na livraria que tem ali, na antessala. Procurei com os olhos, como a gente faz quando tem à disposição tantos títulos, e foquei em “A condição humana”, ensaio que Hannah Arendt publicou em 1954, uma das obras mais completas que já li. A pensadora alemã, sobre quem também há um filme que recentemente esteve em cartaz naquele mesmo cinema, pesquisou intensamente sobre as várias facetas humanas, sobretudo ligadas ao mundo do trabalho.
Abro na página 165, assim sem querer, e leio:
“E, afinal, o que é esse ideal da sociedade moderna senão o sonho muito antigo dos pobres e despossuídos, que pode ser encantador como sonho, mas que se transforma em uma felicidade ilusória logo que realizado”.
Fecho o livro, olho mais alguns títulos, compro um saco de pipocas e entro na sala. Decidi assistir ao documentário “Serra Pelada, a Lenda da Montanha de Ouro”, dirigido por Victor Lopes, antes de assistir à ficção sobre a mesma história (dirigida por Heitor Dhalila). Gosto mais de documentários e esse tema me deixa especialmente curiosa. A imagem daqueles homens com a pele encardida, sem camisa, com um balde nas costas subindo feito formigas aquela montanha imensa é impactante. A possibilidade de eles, depois de terem passado horrores – inclusive nas mãos do Major Curió quando assumiu o espaço e transformou-os praticamente em escravos – e saírem dali ricos também alimenta muito a minha imaginação.
Não me arrependi da escolha que fiz naquele momento (ainda vou assistir à ficção, há boas recomendações). É que não se joga fora nem um dos 110 minutos do documentário de Victor Lopes. Ao que parece, o diretor preferiu, em vez de transformar a obra numa crítica ou denúncia, perscrutar justamente a condição humana.
Lopes oferece ao espectador, por exemplo, a história do garimpeiro caboclo, de pele escura e dentes brancos como sói, que tendo ganhado muito dinheiro decidiu fazer um agrado à mulher e levá-la a conhecer o Rio de Janeiro. Com sua melhor roupa, o casal foi ao aeroporto e precisou enfrentar uma fila para comprar a passagem. Em determinada hora, porém, o garimpeiro achou que a atendente estava olhando enviesado para ele, possivelmente pelo fato de não estar usando terno e gravata como a maioria dos outros passageiros. Não teve dúvidas: tirou o dinheiro do bolso, mandou fretar um avião, e fez o percurso Belém – Rio de Janeiro com sua mulher, ocupando apenas duas das mais de 400 poltronas do Boeing 747.
Aqui no Rio ele passeou pela praia de Copacabana, ficou hospedado num belo hotel. Depois voltou para o mesmo casebre onde morava em Marabá, e onde mora até hoje com a mesma mulher. Nada mudou na vida do garimpeiro que pôde gastar 45 milhões de cruzeiros (moeda da época) para fazer uma simples viagem.
“Do jeito que o garimpo deu, ele tomou”, vaticina o homem, um dos personagens que mais fala no documentário.  No quintal de terra de sua casa, ao lado da mulher que o acompanhou na aventura ao Rio, de um jeito simples mas sem hesitação, próprio de homens que já viram de tudo na vida, ele mostra que o garimpo de Serra Pelada, hoje nas mãos da empresa canadense Colossus Minerals, ainda tem muita riqueza para dar:
“Tem um aluvião de ouro aqui embaixo, entre a bananeira e o pé de laranja”, diz.
Sob a ótica humana, o garimpo de Serra Pelada pode servir também para mostrar a potência de homens sem rédeas. Tudo começou quando o finado Genésio, dono da Fazenda Três Barras, encontrou uma pepita de ouro em suas terras. A história se alastrou, muita gente correu. Até o pároco saiu de Marabá, vestiu calção, bota, e foi tentar a sorte. Tinha diamante, esmeralda, platina, ouro branco, ouro amarelo. Em pouco tempo eram três mil homens subindo e descendo, peneirando, vendendo o resultado na cidade.
Tudo ia andando, não havia conflito, a riqueza era de todos, ou melhor, de quem tivesse força física para enfrentar o calor dos diabos, a falta de água, condições insalubres. Um único interesse movia todos, para que brigar? Como nas sociedades antigas, os mais fortes passaram a coordenar, surgiu a necessidade de se organizar o trabalho: uns peneiravam, outros carregavam os sacos de terra, outros ainda somente levavam o produto e traziam o dinheiro. Para todos havia recompensa, mas não havia um só governante.
“Se nosso país fosse igual Serra Pelada, tinha igualdade social”, fala um garimpeiro.
Diz Hannah Arendt:  “O governo de ninguém não é necessariamente um não-governo; pode, de fato, em certas circunstâncias, vir a ser uma das suas mais cruéis e tirânicas versões… Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras”.
Até que… surge a lei, sob a figura de um único homem. O Major Curió, conhecido e famoso, acusado de ter cometido atrocidades sob as ordens do regime militar. Curió tem espaço para falar muito no documentário de Lopes. Afinal, não é ali que ele será julgado pelos crimes contra a humanidade. Na película, Curió serve à história. Aparece sendo ovacionado pelo povo quando, microfone nas mãos, eleva a voz, impõe a ordem e diz que está ali para organizar o trabalho.
Proibiu mulheres em Serra Pelada; o homem que fosse apanhado bêbado, sofreria as piores torturas. Organizou a “bagunça” e, é claro, cobrou seu quinhão:
“Era um campo de concentração tropical. Quem entrava não saía, quem saísse não poderia entrar novamente”, conta um ex-empresário, um dos coordenadores do garimpo quando ainda era um mutirão popular e que hoje só pensa numa coisa: mudar-se de Serra Pelada. “Não gosto mais daqui, isso é um grande cassino, e o tempo pode te vencer”, diz ele.
O ouro jorrou ainda durante muito tempo, Curió foi afastado, o regime militar terminou, as mulheres e a bebida voltaram ao garimpo. Mas o território não recebeu, em momento algum, um olhar cuidadoso de quem sorvia da terra tanta riqueza. Escola, hospital, saneamento, casas arrumadas, nada disso entrou na conta de quem gastava o dinheiro. Ainda hoje Serra Pelada é um lugar pobre, sem melhoramentos, que priva de confortos básicos os moradores.
“Como pode morrer de fome em cima de uma mina de ouro?”, pergunta-se hoje um garimpeiro.
A condição humana, de novo. Recorro à Hannah Arendt: “O tempo excedente do animal laborans (o indivíduo que trabalha e consome, na visão da autora) jamais é empregado em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e ardentes são os seus apetites”.
O filme termina em 2012. Sorridentes representantes da Colossus Minerals falam sobre estratégia, ferramentas, metas. Daqui a pouco falarão também sobre responsabilidade social, sustentabilidade. Caberá a eles, talvez, o papel de organizar o território seguindo seus próprios conceitos.
A turba, essa fica nos retratos tirados por Sebastião Salgado, nas histórias contadas pelas biroscas do local. Nas muitas cenas que morreram com tantos homens sob a terra que, ali mesmo, lhes serviu de última morada. E na certeza – vai saber? – de que o lago que se formou depois de tantas escavações ainda guarda muita riqueza:
“Tenho certeza de que nós não tiramos nem um terço do ouro que tem aqui”, diz um dos muitos garimpeiros que ainda orbitam por lá. Afinal, reza a lenda, garimpeiro de verdade nunca abandona seu garimpo. É mais forte do que ele, é humano, demasiado humano.

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