sábado, 3 de maio de 2014

O negócio que salvou a floresta

O negócio que salvou a floresta

A empresária Vitória da Riva trouxe o ecoturismo para o Brasil, colocou a Amazônia na rota dos estrangeiros e arrumou uma maneira de lucrar com a mata em pé 

A empresária Vitória da Riva, na torre do seu hotel. A estrutura, com 50 metros de altura, permite aos hóspedes ver os animais acima da copa das árvores (Foto: Stefano Martini)
Não foi uma nem duas vezes. Sempre que arriscava contar suas intenções para algum desavisado, a conservacionista Vitória da Riva Carvalho era interrogada com certo preconceito: “Você vai trazer gente aqui para ver mato?”. Sem muito esforço, Vitória ganhou fama de maluca. Fazia sentido. Naquela época, começo dos anos 90, pouquíssimo se falava em ecoturismo no país. Árvore boa era árvore no chão, caminho livre para ocupar a terra com o gado ou uma cultura agrícola qualquer. A floresta em pé não tinha valor financeiro, menos ainda sentimental. “Eu não admitia aquilo”, diz ela, impetuosa, trajando suas corriqueiras roupas tons de terra. “Queria arrumar um jeito de fazer dinheiro sem destruir a Amazônia.” E arrumou. Em uma viagem aos Estados Unidos, Vitória fez uma parceria com a organização ambiental Conservation International (CI) para estimular o turismo ecológico nos trópicos. Ato contínuo, ajudou a treinar mais de 800 aspirantes a empresários do ramo. Em 1992, fundou seu próprio negócio – o premiado hotel de selva Cristalino Jungle Lodge, hoje referência em conservação no mundo. Assim se consagrou pioneira do ecoturismo no Brasil.
O pioneirismo deve ter sido herança de família. Seu pai, Ariosto da Riva, foi um bandeirante notável. Deixou o interior de São Paulo para colonizar, em Mato Grosso, três cidades em terras sem sinal de civilização urbana. Eram tempos em que o governo federal estimulava a ocupação de regiões mais remotas. Havia a falsa ideia de que, se os brasileiros não avançassem para o Norte, as nações mais poderosas tomariam conta da Amazônia. A expressão “integrar para não entregar” virou o mantra do país. Foi nessa corrida pelo “desenvolvimento” que Vitória chegou à recém-fundada Alta Floresta, hoje uma cidadezinha com 50 mil habitantes, boa parte deles paranaenses em busca de uma vida melhor. Segundo a mentalidade precursora, quanto mais floresta se desmatasse, mais progresso se alcançaria. A paisagem do município então mudou. A mancha verde contínua deu lugar ao café, ao cacau e ao guaraná. Nos anos 80, chegou o garimpo. Mais recentemente, o gado e os madeireiros. Alta Floresta hoje não faz tanto jus ao nome: mantém só 43% de suas matas preservadas.
Ao optar pela floresta em pé, Vitória contrariou o curso natural da colonização. Sua área de 7 mil hectares (quatro vezes maior do que o arquipélago de Fernando de Noronha) manteve as árvores nativas em vez dos tradicionais plantios. Ela fez mais. Transformou sua propriedade em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), uma terra protegida que, por lei, não pode ser ocupada. Uma das únicas opções de ganhar dinheiro ali é investir na pesquisa e no turismo. E foi essa a aposta de Vitória. Com pelo menos 20 anos de antecedência, ela vislumbrou o que no passado parecia inalcançável: aliar preservação à rentabilidade. “A Vitória é uma personalidade única. Em termos de ecoturismo, é a grande heroína do Brasil”, afirma Marc Dourojeanni, um dos maiores especialistas em Amazônia. “Sua visão de transformar a propriedade em um santuário para a fauna foi pioneira.”
Um terço das aves do Brasil está no Cristalino. Elas são a grande atração para os estrangeiros
Fugas para São Paulo
Não se tratava apenas de abrir um hotel. Vitória precisou partir de uma etapa anterior, colocar Alta Floresta no roteiro do turismo. “Tivemos de criar um novo destino”, afirma. “Nossa cidade sequer existia no mapa.” Ao lado do marido, o advogado Edson de Carvalho, ela rodou feiras internacionais divulgando os predicados de sua reserva. Enquanto percorria países estrangeiros para convencer os viajantes, Vitória precisava persuadir também os habitantes locais. O turismo nunca havia representado uma opção comercial em Alta Floresta. A comunidade, em boa parte, não entendia a necessidade de preservar a natureza. Neste ponto, Vitória falhou. Seu discurso era vanguardista demais. Os moradores não só não a compreenderam como passaram a acusá-la de atrair a atenção dos fiscais de crimes ambientais. Por mais de uma vez, ela precisou “dar um tempo” em São Paulo, uma forma de se resguardar das ameaças veladas.
A seu favor, Vitória contou com uma generosa dose de sorte geográfica. Alta Floresta está localizada em uma latitude semelhante à do Peru, um dos países com maior biodiversidade do planeta. Sua reserva tem pelo menos 595 espécies de aves, um terço dos exemplares do Brasil e metade dos da Amazônia. É um chamariz decisivo para o sucesso do negócio. No começo dos anos 90, antes mesmo de existir como é hoje, o Cristalino Jungle recebeu a visita de um dos mais respeitados especialistas do mundo, o ornitólogo americano Theodore Parker (já falecido). Foi ele quem descobriu a riqueza biológica da área. Daí em diante, o hotel de selva entrou para os roteiros de ecoturismo das agências internacionais. Não há outra cidade na fronteira de desmatamento habituada a ver turistas circulando pelas ruas. Quanto mais turistas falando inglês. Cerca de 80% dos hóspedes do Cristalino são estrangeiros em busca de uma experiência íntima com a Amazônia. E, claro, de fazer birdwatching. Ou passarinhar, no bom português. O hotel tem duas torres de 50 metros de altura para observar os animais. Elas permitem ficar acima da copa das árvores. São consideradas as melhores estruturas da América Latina.
No meio da floresta O hotel está instalado numa área de 7 mil hectares. Seu projeto virou referência em conservação. Os hóspedes podem admirar a Amazônia da terra, da água e do alto. Canoas e caiaques navegam pelo rio Cristalino. Duas torres de observação (Foto: Stefano Martini)

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