terça-feira, 3 de junho de 2014

Diamantes, lama e sangue

Diamantes, lama e sangue

O glamour das joalherias esconde as atrocidades cometidas em nome dessa pedra. Se fôssemos julgar o diamante, ele seria um criminoso brilhante, um sujeito jóia ou só um cara durão?


Diamantes embelezam os dedos das mulheres que podem se dar ao luxo de usá-los, mas já levaram embora as mãos de milhares de crianças africanas – vítimas de conflitos financiados com o dinheiro da exploração diamantífera. Fascinante, belo, sangrento, misterioso, inescrupuloso: todas essas qualidades já foram aplicadas ao multifacetado diamante. Mas é possível atribuir adjetivos tão fortes a algo que, afinal, não passa de um arranjo espetacular de átomos de carbono? Vale a pena pôr uma pedra no banco dos réus?
Ocorre que esses átomos inertes estão perigosamente vinculados a uma série de crimes. A acusação mais grave é a de assassinato: gemas contrabandeadas pagaram o envio de 20 mísseis SA-8 e 200 foguetes BM-21 para uma organização paramilitar de direita da Colômbia. Como prova incontestável do delito, há um e-mail interceptado em 2001, do negociante de armas israelense Simon Yelnik. Não é só isso: a ficha desse brilhante réu é comprida e inclui desde concorrência desleal até a manutenção de trabalho escravo nas minas. Como argumento de defesa, pode-se dizer que diamantes são sujeitos jóias que já salvaram muitas vidas. Serras diamantadas são empregadas em ranhuras no asfalto de autopistas européias, o que previne acidentes. Bisturis de diamante são usados em delicadas cirurgias oftalmológicas. Diamantes também fazem a ciência progredir: a coleta de amostras do solo marciano pelos veículos exploradores Spirit, em 2004, foi feita com instrumentos de diamante. Graças à pedra, a Nasa encontrou traços de água no planeta vermelho.
Quando não bancam o bandido ou o herói, diamantes são caras literalmente durões, que podem ser úteis em tarefas casca-grossa. Todo vidraceiro sabe disso – não há outro material que corte vidros como o diamante. Até na gastronomia ele mete a colher. Na Barilla, fabricante de massas da Itália, o diamante é usado para cortar o macarrão.
Será que, pesando os argumentos, vale a pena continuar a contar com o diamante? Como dá para ver, não é uma sentença fácil.
ANTECEDENTES
O diamante é feito de carbono puro e foi forjado no interior da terra há pelo menos 3,3 bilhões de anos – a temperaturas de 1 200 ºC e pressão de 58 mil atmosferas. Existem minerais mais raros do que ele, como a painita, encontrada em quantidades ínfimas. Outros são mais valiosos, como o tório e o ítrio, usados em reatores nucleares. A sua história – ou a história do homem com ele – começou há uns 5 mil anos. Naquele tempo, na Índia e na Mesopotâmia, ninguém revendia diamantes com vistas a ter lucros astronômicos. Diamantes eram usados em artefatos rituais. Principalmente pelos homens, para ressaltar a virilidade (não há nada mais duro na natureza, daí o seu nome, do grego adamas, “invencível”).
Até a Renascença, o interesse comercial pelo diamante permaneceu adormecido. No século 15, porém, começou um frenesi pelo mineral que não terminou até hoje. Em 1477, foi dado o primeiro anel de noivado de diamante de que se tem notícia na história, à duquesa francesa Maria de Borgonha. Em 1725, o Brasil desbancou a Índia da posição de maior fornecedor de diamantes no mundo.
A indústria do diamante chegou à maturidade quando, em 1919, o matemático francês Marcel Tolkowsky criou um jeito de ressaltar ao máximo a cor e a claridade da pedra, frutos da dispersão da luz no diamante. A essa fórmula de lapidação – 57 facetas polidas, 33 na metade superior (chamada de coroa) e 24 na metade inferior (o pavilhão) – Tolkowsky deu o nome de brilhante. A beleza, e o valor, do diamante nascem de 4 fatores: a sua cor, claridade, tamanho (e peso) e lapidação. São os famosos “4 Cs” da indústria diamantífera: em inglês, color, clarity, carat e cut. Diamantes azulados ou rosados são raros e, por isso, muito valiosos. Já os amarelados são mais comuns. Uma marca do diamante autêntico – e a primeira coisa que o distingue de falsificações grosseiras, como as de zircônio – é a sua leveza. O Koh-i-Noor, da Coroa Britânica, tem quase o tamanho de uma bola de pingue-pongue e não chega a 22 gramas.
Nem todo diamante tem brilho. Aliás, esses são exceção. Quase todas as pedras extraídas das minas são opacas e pequenas. Elas são usadas na indústria, principalmente como instrumento de corte, de perfuração e como abrasivo.
Acusação nº1 - Servidão e maus-tratos
Minas de diamantes nunca foram locais agradáveis para se trabalhar. Principalmente depois que nós, brasileiros, entramos nesse negócio, em Minas Gerais dos idos de 1700. O nosso know-how de brutalidade foi logo copiado na África do Sul. Em 1879, o engenheiro sul-africano T.C. Kitto escreveu uma carta endereçada a seus patrões em Londres: “Os pretos [escravos brasileiros] são instalados em currais, que são fechados à corrente (...). Acho que sob supervisão européia os nossos pretos podem se tornar quase tão bons quanto os brasileiros”. Quando suspeitos de roubo, os trabalhadores das minas brasileiras eram trancados e acorrentados nus por dias a fio, num cubículo sem luz ou ventilação, sem água ou comida. Depois, inspecionavam-se os seus excrementos, em busca dos diamantes.
Hoje em dia, na África do Sul, os funcionários das minas passam todos os dias pelo raio X. Em Kimberley, o aparelho funciona mal – não distingue um diamante de um amendoim – e um funcionário, em 1993, acabou na mesa de cirurgia para extrair um diamante inexistente, uma mancha em sua radiografia. A poeira causa câncer de pulmão e outros problemas respiratórios. “Só enxergamos 1 metro à nossa frente”, contou um mineiro a Janine Roberts, autora do livro Glitter & Greed (“Brilho & Cobiça”, inédito no Brasil).
Acusação nº2 - Superfaturamento
Um quilate de diamante custa entre 2 e 15 dólares para ser extraído – de leitos de rios, do fundo do mar, de regiões geladas no Canadá e Sibéria, ou de minas subterrâneas na África e Austrália. Anualmente, 26 mil toneladas – ou 130 bilhões de quilates – de diamante são mineradas. E vendidas a 9 bilhões de dólares. Até aí, o lucro das mineradoras já é fantástico. O pulo-do-gato, porém, ainda está por vir: desse total, 20% são transformados em 70 milhões de peças de jóias por ano, no valor de 58 bilhões de dólares. “O que custa caro numa jóia é o polimento e a lapidação”, disse um joalheiro da rua 47, de Nova York, a Janine Roberts em Glitter & Greed. Curiosamente, boa parte das pedras hoje é polida e lapidada na Índia, por garotos de até 12 anos que ganham 23 centavos de dólar por quilate trabalhado. Mãos pequenas e olhos afiados são valiosos nessa indústria.
Acusação nº3 - Monopólio
Dado estarrecedor: 80% do comércio de diamantes em estado bruto do mundo está nas mãos de dois negociantes, a mastodôntica sul-africana De Beers e o milionário russo Lev Leviev. Como eles conseguem isso? Ora, comprando quase toda a produção mundial direto das minas. No mundo dos diamantes, os grandes mineradores são excelentes amigos de governos e governantes. Nos EUA, Maurice Templesman, representante da De Beers, é freqüentador da Casa Branca desde os tempos de John Kennedy. A ex-Dama de Ferro inglesa, Margareth Thatcher, promovia recepções no luxuoso escritório da família Oppenheimer, atual dona da De Beers. Lev Leviev, que detém a exclusividade de exploração das pedras angolanas, tem laços mais que suspeitos com o presidente russo Vladimir Putin.
Os dois gigantes revendem as pedras para apenas um seleto grupo de 150 negociantes, que os revendem para outras empresas, concentradas nas bolsas de diamantes – distritos de altíssima segurança localizados em Londres (Inglaterra), em Antuérpia (Bélgica), em Tel-Aviv (Israel), Mumbai (Índia), Hong Kong (China) e Tóquio (Japão). Desses distritos saem os diamantes polidos que são vendidos às milhares de joalherias em todo o mundo.
Em Ramat Gan, o distrito dos diamantes de Tel-Aviv, 900 câmeras monitoram o movimento das 15 mil pessoas que ali circulam todos os dias. Quando uma dessas pessoas não registra a saída ao término do expediente, é caçada por um batalhão de seguranças. Para que ninguém precise sair ao “mundo exterior”, existem bancos, cabeleireiros, academias de ginástica e restaurantes no complexo. A justiça em Ramat Gan tem uma dinâmica peculiar. Em caso de desavença entre dois negociantes – fato raríssimo –, tudo se resolve dentro da própria bolsa. “Não deixamos advogados entrar aqui”, disse Benzion Fouzailoff, negociante israelense, ao jornalista brasileiro Ariel Finguerman, no livro Retratos de uma Guerra.
Acusação nº4 - Fomento de guerra
Muitas das minas diamantíferas africanas ficaram na última década nas mãos de ditadores e de líderes guerrilheiros da África, como Jonas Savimbi, em Angola, e Foday Sankoh, em Serra Leoa. “Diamantes são como uma moeda. Eles pagam empréstimos internacionais, pagam propinas, compram armas... em alguns casos são melhores que dinheiro vivo”, afirma o negociante Mark von Bockstael, de Antuérpia, Bélgica. Nesses países, a riqueza dos diamantes se transforma numa fonte quase inesgotável para a compra de armas – as transações são intermediadas por mercenários como Victor Bout, ex-agente da KGB, ou o israelense Simon Yelnik, ex-agente do Mossad.
O dinheiro do diamante também patrocinou o terrorismo. Charles Taylor, ditador da Libéria, vendeu pedras para ninguém menos que Osama Bin Laden. “Dois compradores que negociavam com Taylor a partir de 1998 eram membros do alto escalão da rede do bilionário saudita”, escreve Greg Campbell, autor de Blood Diamonds (“Diamantes de Sangue”, inédito no Brasil), obra que esmiuça o tráfico internacional de diamantes. Suspeita-se que as pedras da Al Qaeda tenham sido derramadas na Europa num negócio de 20 milhões de dólares, entre 1998 e 2001. Até que não é muito, mas, como diz Alex Yearsley, da ong Global Witness (“Ttestemunha Global”, que milita contra o tráfico de diamantes), “é assustador que os ataques de 11 de Setembro tenham custado só 500 mil dólares. Quantos outros ataques os diamantes da Al Qaeda ainda não podem financiar?” Alex não é o único a alardear a conexão terror-diamantes: “Muitos dealers não se importam com a procedência das pedras, quando elas têm alto valor”, diz o ativista de direitos humanos Henrik Turlsson. Segundo uma estimativa da New African (revista de assuntos africanos editada na Europa), a centenária De Beers comprou em 1991 entre 500 milhões e 800 milhões de dólares de diamantes de mercadores independentes, muitos deles “laranjas” de sanguinários ditadores africanos.
Considerações finais
É provável que a indústria diamantífera tradicional esteja com os dias contados. Já existem máquinas que reproduzem as condições de temperatura e pressão altíssimas capazes de fabricar diamantes a partir de carbono – entramos na era do diamante sintético. Com o aumento da oferta, espera-se, entre outras coisas, que o diamante substitua o silício como material-base dos chips de computador. É o que aposta Hideyo Okushi, do Instituto de Ciência e Tecnologia Industrial Avançada do Japão, que pesquisa os chips de diamante, que podem funcionar tranqüilamente numa temperatura de até 1 000 ºC, enquanto que os atuais de silício emperram ao atingir mornos 150 ºC. Ainda existem empecilhos para isso: um, ironicamente, é a pureza do diamante, que atrapalha a condução de eletricidade. Cientistas como Okushi investigam formas de agregar impurezas ao diamante para torná-lo um condutor melhor.
Enquanto isso, a indústria dos diamantes se move para diminuir os seus descalabros humanos. Em 2002, os maiores produtores mundiais assinaram na Suíça o Processo de Kimberley, um acordo que padroniza e controla a emissão de certificados de procedência dos diamantes, o que na teoria evitaria o contrabando de pedras. Em 2003, foi sancionada pelo Congresso dos EUA a Ata para o Comércio Limpo de Diamantes (CDTA, na sigla em inglês), que monitora o movimento de pedras não lapidadas no mundo.
Acuados, nem sempre os barões das pedras aceitam pacatamente essas medidas: “Querem fazer com a gente o que fizeram com os casacos de pele”, disse Nikki Oppenheimer, presidente da De Beers, lembrando que protestos de ongs ecologistas quase arruinaram o comércio de estolas e afins. Ninguém aposta, nessa indústria, que os diamantes de laboratório venham a substituir as gemas naturais. Ironicamente, são as pequenas imperfeições vindas de elementos como o nitrogênio – impurezas na composição do diamante – que geram a cor, o brilho e, enfim, o fascínio da pedra. Um jornalista britânico comentou sobre os diamantes sintéticos, feitos 100% de carbono: “É como um rosto humano cujos traços não tivessem a mínima imperfeição. É um andróide, como esses personagens de computação gráfica”. Um diamante sintético tem tanta graça quanto um vinho produzido num laboratório de química.
O destino mais incerto de todos é o da maior vítima da indústria diamantífera: a África. As atrocidades que assombraram o mundo nos anos 90 ainda são uma sombra que paira sobre o continente. Os maiores carniceiros africanos, como Mobutu, Savimbi, Taylor e Sankoh estão ou mortos ou encarcerados. Mas muita coisa precisa melhorar. “A CDTA ainda possui muitos furos, e as negociações para o controle de diamantes oriundo de áreas de conflito não parecem ter evoluído desde 2003”, afirma Nathaniel Raymond, diretor de comunicação da Oxfam America, entidade de combate à pobreza mundial. Outros, como a ativista de direitos humanos Janine Roberts, vão mais além: “Não é apenas o tráfico de diamantes que deve ser banido”, diz. “Os salários escandalosamente baixos pagos aos trabalhadores africanos, ou o trabalho infantil, realizado em condições precárias, também têm de sumir para sempre”.
Essa é uma saga que ainda está longe de terminar. E declarar o diamante culpado ou inocente seria de um simplismo grosseiro – o julgamento depende de que face da pedra você está olhando.

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