UMA HISTÓRIA QUE NOS ENVERGONHA
Vou
lhes contar uma história feia. Uma história muito feia. História
daquelas capazes de deixar qualquer brasileiro sério muito indignado.
Aqui no Rio Grande do Sul, usamos um superlativo muito nosso, o tri-. Ele significa muito ou muitíssimo. Ficar tri-indignado, então, é ficar muito indignado ou muitíssimo indignado. Esse tri-
vem lá da Copa do Mundo de 1970, no México, quando ganhamos o
Campeonato Mundial de Futebol pela terceira vez. Ele significa então,
etimologicamente, três vezes. Pois a história que lhe vou contra me
deixa não tri-indignado, mas dodecaindignado. -
Dodecaindignado ? Já explico.
Dodeca-
é um prefixo grego que significa doze. Quem estudou Mineralogia, ou
pelo menos Cristalografia, ou mesmo os colecionadores de minerais mais
experientes devem lembrar que as granadas formam belos cristais de doze
faces, chamados dodecaedros (edro significa plano ou face plana).
Por
que então eu fico dodecaindignado ? Porque a barbaridade que vou contar
me deixa tri-indignado como brasileiro; tri-indignado como geólogo;
tri-indignado como colecionador de minerais e ainda tri-indignado como
dirigente de museu - que não sou mais, mas fui por treze anos. Então,
tenho quatro motivos para ficar triplamente indignado, e 4 x 3 ainda
são 12, apesar do que se vê em alguns livros de Aritmética editados pelo
MEC.
Mas, chega de suspense. Vamos à história.
Quem
já ouviu falar em Ilia Deleff provavelmente saberá do que vou falar.
Quem nunca ouviu falar nele, que se sente e se prepare para receber uma
dose cavalar de indignação.
Ilia
Deleff é um búlgaro que, em 1957, aos 36 anos, mudou-se para o Brasil.
Desde aquela época, ele começou a andar pelos garimpos brasileiros e,
apaixonado pelos belíssimos minerais que neles via, começou a
colecioná-los, mas reunindo apenas cristais muito grandes, gigantescos
mesmo.
Na
década de 1970, Deleff radicou-se em Minas Gerais e em 1982, após 25
anos reunindo cristais enormes que encontrava, tinha uma coleção de 78
cristais fabulosos, variando de 200 kg a 4 toneladas. Era um acervo sem
igual no mundo, não só pelo tamanho das peças, mas também por sua
beleza. Dessa coleção faziam parte o maior citrino, a maior amazonita
azul, a maior morganita e o maior topázio azul conhecidos no mundo.
(Abaixo, cristais de quartzo e amazonita da coleção de Deleff.)
Naquele
ano, Deleff decidiu vender sua coleção. Ele era búlgaro, já dissemos,
mas como os minerais eram brasileiros, quis que a coleção permanecesse
no Brasil. Assim, ofereceu o acervo a diversas instituições brasileiras.
Sua
proposta era simplesmente irrecusável: ele queria que o pagamento fosse
feito apenas com a renda obtida com a exposição da sua coleção. Simples
assim. Negócio de pai pra filho.
Pois
bem. Ninguém neste vasto Brasil quis comprar uma coleção sem igual no
mundo ! Pior: sua proposta foi considerada exótica e recebida com
desinteresse, quando não com desprezo !!!
Diante
disso, é claro, Deleff ofereceu-a a museus estrangeiros. Aí,
naturalmente, a coisa mudou de figura. Surgiram muitos interessados, da
Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Japão. A coleção acabou vendida
ao Museu de História Natural da França, e hoje quem quiser conhecê-la
precisa ir a Paris. (Abaixo, Deleff com parte de sua coleção.)
Agora me digam: é ou não é para ficar tri-indignado ?
Mas, isso não é tudo. A
coleção de Deleff saiu do Brasil – legalmente, é claro ! – sabem como ?
Como simples matéria-prima destinada à indústria, como cristais comuns
de quartzo !!!
Não entendo muito de comércio exterior, mas uma pergunta me martela a cabeça sempre que lembro disso: Como é que pode ?!!!
E agora ? Ficaram um pouco mais indignados ?
Pois tem um mais um detalhe para aumentar essa dose de indignação. Deleff, já foi dito, vendeu sua coleção. Ela não foi doada, foi vendida. A
França não informa quanto paga por acervos museológicos que seus museus
públicos adquirem, mas dá para imaginar que não foi por pouco que a
compraram. Pois bem. Por ter feito essa venda, Deleff foi condecorado
pelo presidente francês François Mitterrand, em 14.07.1983, com a Ordem
Nacional das Palmas Acadêmicas, criada por Napoleão Bonaparte em 1808.
Palmas para ele ! Uma vaia para o Brasil !
Quando
a coleção foi exposta no Museu Nacional de História Natural, em Paris, a
embaixada brasileira recebeu convite para a inauguração da mostra, mas
não mandou nenhum representante. Prefiro acreditar que nosso embaixador,
pelo menos, sentiu-se envergonhado com o que o Brasil fizera.
Acho
que deixei bem claro que Deleff não era nenhum mercenário. Muito pelo
contrário. Pois querem mais uma prova ? Em 1985, ele doou – aí, sim,
doou - outra coleção de cristais gigantescos, à sua terra natal, a
Bulgária. Esta segunda coleção é hoje a maior atração do Museu Nacional
Terra e Homem, de Sofia, capital daquele país (vejam em http://omm-online.org/eng/iliadeleff.htm).
Entre os minerais brasileiros desse museu, estão três geodos de
ametista de 525 kg, 638 kg e 700 kg e um cristal de quartzo enfumaçado
de 575 kg (vejam em http://www.earthandman.org/en/guideonenglish.pdf).
Tenho ou não tenho razão para ficar dodecaindignado ? Isso foi ou não foi um atentado contra a cultura brasileira ?
Eu
já contei essa história muitas vezes. Contei-a aos muitos alunos que
passaram por meus cursos de Gemologia. Contei-a num dos 44 artigos de
divulgação científica que escrevi para o Canal Escola (www.cprm.gov.br) e contei-a, sempre com a mesma indignação, na minha coluna de Gemologia no Portal das Joias (www.portaldasjoias.com.br).
E continuarei a contá-la pelo resto da minha vida, sempre que tiver
oportunidade de fazer isso porque uma história dessas pode ter
acontecido só uma vez, mas JÁ FOI DEMAIS ! ISSO NÃO PODE ACONTECER DE NOVO !!!
Fiquei sabendo da coleção de Deleff e de sua venda para França em 1983, em reportagem da revista Veja
(edição de 23 de março, p. 54-55). Na semana seguinte, a mesma revista
noticiou (p. 81) a condecoração de Deleff. Desde então, tenho procurado
conhecer mais detalhes sobre o assunto e cada nova informação que
obtenho só confirma a barbaridade que se cometeu.
Por
isso, peço uma coisa: se alguém souber de algum detalhe dessa história
que eu não mencionei e que possa diminuir um pouco a indignação que
sinto, por favor me conte. Se a coleção não era lá essas coisas (duvido
muito !), se a proposta de Deleff não era assim tão vantajosa, se a
recusa das instituições brasileiras foi baseada em bons motivos, se
souberem enfim de qualquer atenuante para o papel tão feio que o Brasil
fez nessa história, por favor me contem. Me ajudem a dormir mais
tranquilo.
Agora,
se souberem de alguma coisa que torne essa história feia mais feia
ainda, peço que me poupem. Não vou aguentar saber que tudo aconteceu de
um modo ainda pior do que contei aqui !
PERCIO M. BRANCO
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