Introdução aos territórios produtores de gemas: o caso brasileiro do nordeste de Minas Gerais
Pretendo
compartilhar nesta crônica uma parte dos elementos recolhidos durante
as recentes viagens aos territórios gemíferos localizados no nordeste do
Estado de Minas Gerais. O objetivo é apresentar as atividades e os
diferentes atores para permitir melhor entendimento de uma indústria
baseada na exploração artesanal de gemas. De maneira geral, é uma
indústria ainda pouco conhecida e com poucos trabalhos acadêmicos de
foco não-geológico que sejam profundamente interessados nos espaços
ligados à exploração das gemas. A aproximação e o tratamento deste tipo
de indústria são delicados. A
própria natureza das gemas – que concentram grande valor em pequenos
volumes facilmente transportáveis (Hugon, 2009) – favoriza a criação de
redes comerciais informais, a exploração ilegal e a fragmentação das
initiativas (Guillelmet, 2000; Duffy, 2007).
A presença e, às vezes, o predomínio da ilegalidade no setor, complica
as tentativas de abordagem aos atores particularemente mudos sobre suas
atividades (Canavesio, 2010). Por isso, neste contexto, a compreensão e a
racionalização de tal setor se apresenta como uma problemática por si
só e seu esclarecimento deve ser concluído antes de passar para a outra
pergunta central de meu trabalho de tese de doutorado que não será
abordada aqui: as riquezas gemíferas se tornam, ou não, um benefício
para as áreas onde sejam exploradas?
2A
escolha do nordeste mineiro para fundamentar esta análise se justifica
por várias razões. Dentre os diversos territórios que exploram jazidas
de gemas no Brasil, a região é provavelmente o melhor exemplo do que se
aproxima mais de uma cadeia produtiva completa baseada em espaços
periféricos, pois o norte de Minas Gerais apresenta índices que refletem
uma situação sócio-econômica desfavorável. De fato, além das numerosas e
variadas jazidas de gemas de cor que se espalham pela região estarem
sendo bastante exploradas há dezenas de anos por alguns milhares de
indivíduos, encontra-se ali o que talvez seja a maior concentração de atividades de lapidação de pedras e de comércio do país. Estima-se
que haja pelo menos quase quatrocentos centros de lapidação e duzentos
comércios apenas na cidade de Teófilo Otoni, sem contar com as várias
centenas de corretores (GEA/IEL, 2005).
Em Governador Valadares o número de atores seria provavelmente dividido
por dois, mas que beneficiariam de renda similar aos colegas de Teófilo
Otoni, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio exterior (MDIC, 2012).
3Por
causa da grande extensão da região e da dificuldade de acesso, não foi
possível visitar todas as localidades. Então, além dos dois principais
centros de lapidação e comércio que são Teófilo Otoni e Governador
Valadares, algumas áreas foram escolhidas e visitadas em função da
possibilidade e da disponibilidade das pessoas encontradas. Tomei
cuidado para não ficar limitado em redes pessoais similares, desta forma
mantive relações com pessoas de localizações, atividades e posições nas
hierarquias locais diversas. Vários deslocamentos foram necessários,
tanto para visitar, quanto para revisitar esses lugares, para assim
ganhar uma relativa confiança dos atores. Posteriormente eles foram
entrevistados através de um questionário que será analisado na tese em
si. As informações apresentadas nesta crônica resultam principalmente de
abordagens informais. Trechos de depoimentos e fotografias foram
integrados para permitir uma melhor representação do contexto e
ambiente.
A extração
Foto 1. Turmalina em estado bruto – peça de coleção.
Fonte: Aurélien Reys (2012).
4Minas
Gerais é conhecida por ser uma das regiões gemíferas mais ricas do
mundo (Delaney, 1996). Segundo o Departamento Nacional de Produção
Mineral, cerca da metade das minas de pedras preciosas do país se
localizariam no nordeste do estado (DNPM, 2013). Além da abundância de
quartzos, a região contém importantes quantidades e variedades de pedras
de cor, preciosas ou semi-preciosas, como esmeraldas, águas-marinhas,
morganitas, turmalinas, topázios, kunzitas, andaluzitas, brasilianitas,
alexandritas e crisoberilos, para citar apenas algumas extraídas
regularmente. Às vezes, vários tipos de pedras podem ser extraídos de uma única jazida. E se a
exploração gemífera pode ser caracterizada pelo tipo de pedra buscada,
pode ser igualmente pelo tipo de processo extrativo empregado.
Dependendo dos agentes envolvidos no processo extrativista, existem
quatro tipos diferentes:
-
a Cata. O solo é escavado em forma retangular e o buraco não passa de alguns metros de profundidade. Tábuas de madeira são encaixadas na vertical para sustentar as paredes. É a forma de extração menos arriscada para os mineiros, no entanto é muito nociva para o meio ambiente, já que necessita de uma superfície de clareira maior que os outros métodos.
-
O Vagão. A mina forma uma grande cavidade a céu aberto colina adentro. Este tipo de extração é facilmente identificável a grandes distâncias, por isso é pouco utilizado por aqueles que trabalham de forma ilegal.
-
O Túnel. Os túneis são a forma de exploração de pedras preciosas mais comum na região. Medindo cerca de dois metros de altura por um metro de largura, os túneis seguem na horizontal e são feitos normalmente na borda de uma colina, pois desta forma conseguem alcançar grandes profundidades a pequenas distâncias. Quanto mais fundo, mais chances de encontrar as pedras mais bonitas. Tábuas e pedaços de madeira também são utilizados, desta vez apenas na entrada da mina ou em certos locais que apresentam risco de desabamento dentro do túnel. Podem chegar até duzentos ou trezentos metros de profundidade e explosivos são usados regularmente.
-
A Caixa americana. Esta é a forma de exploração mais ambiciosa em termos de tecnologia e investimento. Por isso é o método privilegiado das grandes operações, da qual faz parte a extração de esmeraldas. A mina é caracterizada por um buraco profundo que varia entre vinte metros para as mais artesanais até mais de trezentos metros para aquelas mais importantes, necessitando da instalação de um sistema de elevador – normalmente um simples arreio. Pedaços de madeira, muitas vezes do eucalipto cultivado na região, são usados ao longo da descida para sustentar as paredes. No fundo da cavidade existe uma sala, início de um ou vários túneis escavados na horizontal para seguir as “veias” gemíferas.
5Existem
diversas formas de exploração física, mas a forma setorial mais comum
em termos de atividade e uso de recursos humanos é a garimpagem. Ou
seja, é uma forma de exploração mineira ilegal e artesanal. As pessoas
que praticam são chamadas de garimpeiros, o que pode ser interpretado
pejorativamente por alguns deles, que por sua vez preferem ser chamados
de lavradores. Diversas empresas artesanais são fruto de iniciativas
independentes ou de pequenos grupos de atores, comumente oriundos do
meio rural e que dividem o tempo entre a mineração e atividades
agrícolas de subsistência. Eles escavam dentro da propriedade de um
parente, vizinho ou amigo e podem se instalar na mina durante a semana e
voltar para casa nos finais de semana. Aqueles que moram próximo podem
fazer o caminho de ida e volta todos os dias, especialmente depois que
ficou mais fácil aceder meios de transporte modernos, como as
motocicletas. Os garimpeiros que trabalham em minas de difícil acesso,
às vezes preferem trazer toda a família de uma vez para ficar o ano
todo. Os “acampamentos” podem ser pequenas habitações, no melhor dos
casos cabanas de madeira.
6A
realidade das grandes minas que pertencem a empresas mineradoras de
meio ou grande porte é completamente diferente, já que seu funcionamento
se compara mais a uma empresa do que a um modelo artesanal. Os
equipamentos são mecanizados e as condições gerais das minas são
melhores, mais organizadas e mais modernas. Engenheiros e geólogos
também participam continuamente das atividades. Devido ao tamanho, elas
acabam tendo uma nova demanda de profissionais como capatazes ou agentes
de segurança, funcionários de limpeza e pessoal administrativo. E as
tarefas podem ser mais especializadas: as pessoas que escavam o terrenos
não são necessariamente as mesmas que irão limpar e separar os resíduos
das gemas.
7Em
sua maioria, as operações gemíferas são financiadas por diversos
parceiros – os “sócios” - que normalmente não participam diretamente das
atividades de mineração. A participação deles varia de acordo com a
necessidade e a disponibilidade de cada um: por exemplo, um sócio leva
um equipamento de motor particular, um outro financia os explosivos
usados durante as operações de escavação, um outro se encarrega da
alimentação e das eventuais contribuições salariais aos empregados das
minas. Quando um lote de pedras é extraído, os benefícios da venda são
divididos de acordo com o pré-estabelecido e também de acordo com as
contribuições de cada um. Geralmente, a divisão segue o padrão: 20% da
venda para o proprietário do terreno; entre 40 e 60% para os sócios;
entre 20 e 40% para os empregados, dependendo do valor do salário
mensal, que varia entre meio e um salário mínimo.
8É
muito comum que as pequenas estruturas mineiras, ou seja, aquelas que
empregam apenas duas pessoas, encontrem pedras somente uma vez a cada
dois ou três anos, resultando em uma venda de algumas dezenas de
milhares de reais no melhor dos casos. Aquelas que são um pouco mais
ambiciosas ou que são exploradas há anos por serem particularmente
férteis e que podem contratar até uma dezena de pessoas certamente
conseguem encontrar muito mais pedras. No entanto as despesas são
igualmente elevadas, uma soma que representa algo em torno de 5 à 20 mil
reais de investimento mensal, variando de acordo com o tamanho da
exploração.
9As
maiores operações mineiras podem ter um ritmo de escavação de pedras
semanal e seus empregados chegam a ganhar até 3 mil reais em um bom mês.
Mas elas támbém não estão livres de um período infértil e caso esta
situação dure tempo demais, pode causar o fechamento da mina devido aos
altos custos de sua manutenção. Estas empresas possuem normalmente
escritórios na cidade vizinha à mina, onde a maior parte das pedras é
estocada. Muitas delas também guardam minerais encontrados durante as
escavações (principalmente feldspato ou mica), mas estes materiais não
são considerados o objetivo final nem a parte mais importante dos
negócios.
Depoimento de um garimpeiro, 51 anos (Coronel Murta)
“Comecei a trabalhar em um garimpo quando tinha 13 anos, com meu pai. Nós tínhamos uma fazenda modesta entre Araçuaí e Coronel Murta e dividíamos o trabalho entre as atividades agrícolas de subsistência e a garimpagem, o que é muito comum por aqui. Desde então eu nunca deixei de trabalhar na mineração, mas às vezes de maneira inconstante. Nos anos 90, por exemplo, comecei a viajar para o interior de São Paulo para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar a cada estação. Mas mesmo se o salário era correto em comparação ao que a gente ganha aqui, não valia muito a pena. Na verdade eu tinha despesas de transporte, alimentação, às vezes acomodação, e o dinheiro não compensava a distância da minha família. Então parei de vez e desde 2005 dedico a maior parte do meu tempo ao garimpo, a não ser no fim do ano, com a chegada das primeiras chuvas, que eu tomo conta da minha pequena plantação. Quando o ano é razoável conseguimos colher comida suficiente para nos manter quase o ano todo, mas às vezes as chuvas são tão raras que já no mês de março acabou tudo. Por outro lado, desde a criação do Bolsa Família temos a garantia de ter um mínimo todos os meses. Acho que essa ajuda é uma benção que nos assegura um mínimo de sobrevivência para mim, para minha esposa e para minha única filha.
(…) Meu irmão trabalhava na mina de feldspato vizinha que usa material mais pesado, o que não é possível nas minas de turmalina que pedem um trabalho mais delicado. Há mais ou menos dois meses, uma pedra caiu na cabeça dele por causa de um pequeno desmoronamento. O traumatismo foi maior do que a gente pensava e eu tive que levá-lo ao pronto-socorro do hospital de Montes Claros, a cerca de 280km de distância. Ele está melhor, mas não sei se vai poder trabalhar novamente na mina. Mas eu vou bem, felizmente nunca tive nenhum problema com ninguém e nunca sofri nenhuma ameaça. A gente ouve muitas histórias nos garimpos, mas nem todas elas são verdadeiras.
(…) Pra mim, é um trabalho como os outros. Acordo de manhã, vou até o fundo do túnel onde coloco uma dezena de detonadores e, depois da explosão, espero uma hora, uma hora e meia, tempo suficiente para o gás que escapa ter se dissipado. Durante esse tempo eu tomo um café, às vezes com meu colega que trabalha na mina em dias alternados, mais ou menos. A gente recolhe os restos da explosão, depois usa uma bitadeira e em seguida recolocamos mais um lote de detonadores. E mais um no final da tarde. Vou para a mina no domingo à noite e fico até sexta-feira, mesmo se eu moro perto, a meia hora a pé. Gosto de passar minha semana de trabalho nesse ambiente, eu me sinto bem, é uma vida que gosto.
(…) Trabalhei em uns vinte garimpos durante toda minha vida e o mais profundo deles chegava a mais ou menos 200 metros. No início, quando só tem terra, avançamos rapidamente, entre 5 e 6 metros por dia. Quando chegamos na pedra, descemos a uma velocidade de 2 metros por dia, mas tudo depende da terra e da rocha. Há três semanas encontrei algumas turmalinas que vendemos aqui mesmo para um corretor de Coronel Murta em três lotes, por um total de 16 mil reais. Quando é assim eu chamo todos os sócios – no caso, quatro – e meu parceiro para decidir sobre o lote e sobre o valor. Geralmente tudo acontece sem problemas. Antes disso, encontrei há dois anos um outro lote de turmalinas de qualidade um pouco pior. A gente encontra pedras, mas isso nunca me deu oportunidade de refazer minha vida, como foi o caso de alguns poucos. Meu futuro já está todo planejado: continuar a vida que levo esperando a aposentadoria que vai chegar em alguns anos como agricultor, pois estou inscrito na profissão no Sindicato Rural.”
A lapidação
10Outras
atividades ligadas à mineração foram se organizando ao longo do tempo,
entre elas, a atividade de transformação das gemas. Este trabalho é
feito pelos lapidadores, que em sua maioria exercem atividade nas
cidades de Teófilo Otoni e Governador Valadares.
Geralmente os centros de lapidação contam com no máximo três pessoas.
Os maiores podem contratar até cerca de vinte trabalhadores, mas
atualmente este tipo de empresa é muito rara. Os centros de lapidação
normalmente tomam a forma de pequenos ateliês próximos aos principais
centros de comércio ou em cima de lojas, ou ainda no pátio de domicílios
nos bairros residenciais – a chamada lapidação de fundo de quintal.
11O
objetivo da lapidação de uma pedra é ressaltar a beleza do mineral e
prepará-la para incorporar uma joia. Não existe uma única maneira de
trabalhar o produto e a escolha depende da pedra bruta inicial, já que a
intenção é tirar o menos possível de material e manter a pedra mais
volumosa possível. O processo de transformação descrito pelos
profissionais acontece em quatro etapas diferentes:
-
Serrar. A pedra é serrada grosseiramente apenas para retirar os excessos.
-
Formar. Em seguida a pedra é colada com cera na ponta de uma varinha e o lapidador lhe dá sua forma final. Esta operação requer às vezes, quando ela faz parte de uma coleção de joias, por exemplo, a calibragem e a padronização das pedras trabalhadas.
-
Façamentar, ou simplesmente lapidar. E a operação que permite trabalhar as faces planas das pedras.
-
Polir. Finalmente a pedra é polida para que possa ser apresentada sob seu melhor brilho. Pós abrasivos, partículas de diamantes ou de coríndon, são utilizados nesta etapa.
12Depois
de lapidada, uma pedra bruta pode perder entre 30 e 70% de seu corpo
inicial, mas esta porcentagem é muito variável e depende enormemente do
tipo de gema e da lapidação escolhida, assim como da dificuldade do
trabalho. Pedras como kunzitas, que se quebram facilmente, ou
alexandritas, extremamente duras, acabam sendo bem mais complicadas de
se lapidar. Não é raro que uma pedra se quebre em vários pedaços por
causa de um defeito ou de uma escolha equivocada no início do processo
de lapidação. Neste caso, a soma da venda dos pequenos pedaços será
sempre inferior àquela da pedra inteira.
13De
acordo com os atores locais, a indústria lapidária vem sofrendo uma
forte baixa. Se em um passado recente o número de lapidadores na região
pode ter chegado a dois ou três mil, talvez até mais do que isso,
atualmente apenas algumas centenas teriam conseguido manter o emprego de
forma regular. A falta de pedras e a concorrência chinesa são
geralmente os dois principais argumentos dos atores para explicar a
situação. Hoje, muitos deles trabalham apenas por temporadas ou mantêm
outros empregos paralelos, geralmente fora do setor das gemas. Alguns
decidiram ir para o exterior, incluindo a China nos últimos anos.
14A
maior parte das pequenas empresas independentes frequentemente fazem
uso de equipamentos antigos, de mais de trinta anos. Todas as máquinas
são dotadas de motor e se antigamente elas eram montadas artesanalmente
por alguns lapidadores locais, atualmente a concorrência asiática vem
ganhando espaço. Os equipamentos importados oferecem um aspecto mais
moderno, uma qualidade igual por um preço inferior, o que forçou a maior
parte dos antigos fabricantes locais a abandonar sua produção. De
qualquer forma, a maioria dos artesãos locais evitam substituir seus
materiais por equipamentos mais modernos, pois isso representa um
investimento pesado difícil de recuperar. Segundo os próprios, eles não
dispõem de oferta de trabalho suficiente para fazer valer à pena tamanho
investimento.
15Anos
depois de diversas ações públicas locais feitas por institutos como o
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, o
Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos – IBGM, e a Associação
dos Joalheiros, Empresários de Pedras Preciosas e Relógios de Minas
Gerais – AJOMIG, com o objetivo de alavancar a indústria de lapidação a
um patamar mais avançado da joalheria, o projeto parece não ter dado
certo. Os atores ainda não evoluiram como o esperado e na verdade
provavelmente nem desejam fazê-lo. Poucas pessoas originárias da região
se especializaram em joalheria e os raros indivíduos independentes que
se aventuraram se satisfazem com um mercado local e com alguns turistas
de passagem. Apenas uma das grandes empresas entre os atores abordados
dedica uma parte de suas atividades à joalheria. A explicação está no
fato de que além de enfrentar uma concorrência nacional já instalada, o
mercado asiático também está presente. As raras joias encontradas em
Teófilo Otoni e Governador Valadares provêm, muitas vezes, da China. Os
atores de nacionalidade chinesa importam pedras do Brasil,
principalmente quartzo, e as transformam em seu país a um custo menos
elevado. Produzem, por exemplo, colares, para em seguida reexportá-los
ao Brasil.
Depoimento de um lapidador, 56 ans (Teófilo Otoni)
“Abandonei a escola muito cedo, só estudei até o primeiro grau, então comecei a vender pedras na rua desde os 14 anos, assim como muitas outras pessoas. Depois comecei a trabalhar ao mesmo tempo como lapidador aos 16 anos e assim que consegui juntar um pouco de dinheiro, fui trabalhar sozinho. Em seguida aluguei um local perto da principal praça da cidade, onde acontecia o grosso do comércio, o que continua sendo o caso hoje em dia. De tempos em tempos dou uma volta pela praça de manhã para saber o que está acontecendo no mercado e às vezes compro algumas pedras.
(…) Eu me dedico mais ao negócio de esmeraldas. Tento me abastecer direto nas minas e vou de vez em quando em Goiás e na Bahia, mas bem menos hoje em dia, já que está mais difícil encontrar esmeraldas de boa qualidade. Na verdade, meus principais centros de abastecimento agora são Itabira e Nova Era, que são bem mais próximos. No momento trabalho em casa, no meu quintal. Lapido as pedras para dar a forma principal e depois terceirizo o facetamento e o polimento por um custo de 50 reais por pedra. Depois de lapidada, normalmente vendo a gema pelo dobro do preço que paguei por ela, mas claro que isso varia muito, pois às vezes a pedra é menos bonita do que o esperado depois de lapidada, ou então pode se quebrar no processo. O fato de fazer eu mesmo as primeiras etapas de lapidação me permite economizar um pouco de dinheiro, mas principalmente me dá a certeza de que a pessoa não vai trocar a pedra por outra parecida de menos valor depois de trabalhá-la. Isso pode acontecer porque é bastante difícil associar uma pedra bruta a uma pedra lapidada.
(…) Eu já tive alguns clientes joalheristas, principalmente um que trabalhava para Amsterdam Sauer e que vinha mais ou menos a cada três meses em Teófilo Otoni para comprar pedras comigo. Mas agora os joalheiros trabalham cada vez mais exclusivamente com as grandes empresas da região e mandam lapidar as pedras diretamente em São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Então viajo todo mês ou a cada dois meses para estas cidades para vender minha produção. Também costumo ir a Ouro Preto ou Brasília. Sei por experiência que as joalherias estão à procura de esmeraldas, então vou oferecer espontaneamente. Mas também acontece de eu ligar para alguns ex-clientes antes de ir. Faço negócio principalmente com brasileiros, mas também tem alguns estrangeiros, inclusive alguns chineses em Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo que chegaram a pouco tempo. No final dos anos 80 me inscrevi no Sindicato Nacional dos Garimpeiros para conseguir uma carteira provando que eu trabalhava no ramo, mas nunca renovei minha inscrição, pois a primeira carteira já é suficiente para não ter mais problemas com a polícia”
(…) Mesmo se o comércio já foi melhor, ainda está bom para mim. Minha mulher e minha filha me ajudam um pouco com as tarefas administrativas e meu sobrinho toma conta do cyber café que comprei há pouco tempo. Tenho uma outra filha que foi para a Itália, perto de Nápoles, e ela trabalha ilegalmente no setor da agricultura. Hoje está casada com um italiano e faz dois anos que começou a vender algumas pedras diretamente para joalherias napolitanas. Claro que ela precisa de uma nota fiscal para provar que a mercadoria é legal, é arriscado demais passar a fronteira sem provas e também é mais fácil para vender depois de chegar lá. Os chineses também tentam vender suas pedras, mas os italianos não confiam neles. Por outro lado, parece que agora está mais complicado fazer negócios, acho que por causa da crise que atinge a Europa, as pessoas acabam comprando menos joias. Mas imagino que seja temporário. Minha filha mais nova que mora com a gente pensa em fazer um curso de joalheria, mas eu estou velho demais para mudar de carreira agora e, de qualquer forma, isso não me interessa.”.
O comércio
16As
atividades de comércio incluem o conjunto das operações ligadas à
compra e venda de pedras de cor, brutas ou lapidadas, sem um objetivo de
tranformação suplementar. Duas formas de comércio se destacam: a
corretagem, que faz o papel intermediário entre o vendedor e o comprador
em troca de um porcentagem da venda; e o comércio clássico, que
consiste na compra do produto, estocá-lo e vendê-lo. Mas uma terceira
forma de comércio poderia ser tambem integrada: aquela onde as próprias
empresas mineradoras se encarregam de exportar diretamente sua produção,
sem passar por intermediários.
17Os
corretores exercem suas atividades de maneira informal na rua. É na rua
também que se faz contatos profissionais e se troca informações sobre o
mercado. Nas zonas rurais da região são geralmente os postos de
gasolina que muitas vezes servem de endereço dessas trocas comerciais,
mas o local pode variar. Em Araçuaí, por exemplo, os bares atrás da
estação rodoviária têm esta função. Nas maiores cidades da região, os
pontos de encontro se localizam à proximidade dos centros urbanos,
próximo a sedes das principais empresas mineradoras e de comércio de
gemas do nordeste de Minas Gerais. Em Governador Valadares os corretores
podem ser encontrados no cruzamento das ruas Peçanha e Afonso Pena,
local conhecido como “esquina dos aflitos”, onde uma mesa é posta em
frente a um bar e cerca de vinte pessoas se sentam sobre cadeiras de
plástico encostadas a um muro que lhes faz sombra. Em Teófilo Otoni,
pelo menos uma centena de comerciantes costuma ocupar a principal praça
da cidade diariamente, fazendo do lugar provavelmente o maior centro de
trocas informais de pedras do país. A constante presença dos corretores e
a maneira desordenada e, às vezes, insistente com que abordam os raros
clientes em potencial pode dar uma imagem um pouco agressiva do negócio,
muitas vezes mais exagerada do que é na realidade.
18Muitas
vezes, atores que se apresentam como corretores podem também vender
mercadorias próprias, aproximando-se do papel de comerciante clássico,
mas sem loja física para exercer a profissão. A maioria deles mantém
suas pedras guardadas em pochetes ou bolsas, mas há quem exponha os
produtos em mesas, o que pode dar à praça de Teófilo Otoni uma imagem de
feira de pedras para quem vem do exterior. Se o número de corretores
perambulando na praça ainda é grande, o número de clientes estrangeiros
está em constante diminuição, segundo os atores locais. Por isso, muitos
vendedores de pedras passaram a ter outras profissões, como cantor de
bar, pintor de prédio, etc, além daqueles que já beneficiam de uma
aposentadoria. A falta de clientes faz com que uma grande parte das
pedras acabe circulando apenas nas mãos dos próprios corretores.
Entretanto, alguns deles percorrem o país inteiro comprando a mercadoria
nas áreas rurais da região ou do nordeste do país, vendendo-a
posteriormente em Teófilo Otoni, plataforma da corretagem do país, ou
ainda nas grandes cidades do sudeste brasileiro.
Depoimento de um corretor, 64 ans (Teófilo Otoni, mas originário de Itinga)
“Entrei tarde no negócio. Até meus 48 anos eu era agricultor e criador, mas um dia perdi todo meu rebanho, 80 cabeças de gado atingidos pela raiva. Neste dia perdi tudo e decidi fazer como muitos outros na região: trabalhar no garimpo. Comecei perto de Medina, em um terreno que pertencia ao meu sogro, que era um modesto agricultor, ele também. Eu equilibrava a atividade de escavação com a agricultura de subsistência e participava também de algumas atividades de corretagem, mas de maneira bem local.
(…) Um dia um conhecido meu, dono de um hotel em Itaobim, veio me dizer que um francês estava procurando pedras para comprar. Eu o coloquei em contato com as pessoas que ele procurava, nós dois simpatizamos e depois disso nos encontramos a cada três meses. Ele vem ao Brasil comprar pedras brutas para revender na França. Ele faz porta-a-porta e vai de comércio em comércio lá, pelo que me falou. Hoje ele se tornou meu principal cliente e a gente viaja pela região cada vez que ele vem aqui para comprar mercadoria a um preço melhor.
(…) Há seis anos vim morar em Teófilo Otoni para acompanhar meu filho que é funcionário público. Como minha mulher adoeceu gravemente e precisa ir regularmente ao hospital, achamos melhor virmos também. Para mim, o comércio de pedras está bem melhor agora do que quando comecei, mas meu filho me ajuda com 400 reais todos os meses (cerca de 150 euros) para colaborar com as despesas. Tenho também uma aposetadoria como agricultor. Hoje penso em talvez voltar para o garimpo em um futuro próximo. Não tenho mais condição física para cavar a terra, mas posso ser útil cozinhando ou fazendo pequenas tarefas do dia-a-dia.”
19Os
comerciantes possuem geralmente um endereço formal para exercer sua
atividade, apresentando-se como lojas de vendas de pedras de cor. O
atrativo de uma loja é que ela tem mais chances de ter um primeiro
contato com novos clientes, pois é um lugar físico e oficial que passa
mais confiança para os visitantes ocasionais do que uma esqunia de rua
ou praça. A loja também permite ao visitante saber onde encontrar a
pessoa com quem ele manteve contato da última vez que fez negócio, e é
principalmente uma vitrine para o comerciante, já que as pedras expostas
geralmente representam apenas uma ínfima parte dos produtos estocados.
Os proprietários deste tipo de comércio muitas vezes trabalham com
outras atividades relacionadas, como a mineração, a lapidação ou a venda
à distância pela internet, por exemplo. Alguns deles também estão
implicados no comércio de minerais industriais.
Foto 14. Estoques de pedras de coleção de comércio, com quartzos fumê em primeiro plano.
Fonte: Aurélien Reys (2012).
20Em
Teófilo Otoni existe uma estrura comercial original e relativamente
organizada, em formato de galeria, composta por cerca de vinte pequenas
lojas: a galeria da Associação dos Corretores e Comerciantes de Pedras
Preciosas, mais conhecida localmente pelo acrônico ACCOMPEDRAS.
Construído no início dos anos 90 com a ajuda das autoridades locais, o
lugar foi concebido na sua origem para oferecer a alguns corretores que
trabalhavam na praça um ponto “formal” de venda. Algumas lojas mudaram
de dono e é possível achar hoje proprietários em situações diversas - do
corretor que consegue a maior parte de seu lucro graça às comissões,
até pequenas empresas que vendem pela internet. Alguns investem parte de
seus lucros em atividades de garimpo, onde viram sócios.
21Por
último, certos pontos de comércio aparecem na forma de escritórios.
Normalmente escritórios de empresas mineradoras possuem explorações à
proximidade e têm a função de cuidar da parte administrativa. De uma
forma ou de outra acabam filtrando pessoas indesejáveis – a maior parte
dos corretores –, se dedicando exclusivamente àqueles que interessam
mais – geralmente clientes ricos. Tal filtragem é possível por causa de
uma entrada com um importante sistema de segurança. Há clientes
brasileiros, mas a maior parte dos produtos é exportada para outros
países e os negócios fechados cada vez mais frequentemente à distância.
Muitas destas empresas, realizam parte de seus negócios em feiras
internacionais estrangeiras, geralmente nos Estados Unidos (Tucson) ou
em Hong-Kong (três feiras anuais), às vezes na China (Shangai) ou na
Europa (Munique, Sainte-Marie-aux-Mines). Bem mais raramente, para não
dizer nunca, participam das feiras organizadas no Brasil (São Paulo,
Soledade, Teófilo Otoni, e às vezes Governador Valadares), cujo alcance é
sobretudo nacional, apesar das propagandas locais.
Considerações finais
22Antes
da aplicação dos questionários semi-dirigidos que guiariam a
continuação do meu trabalho, uma pesquisa mais ampla e menos sistemática
foi necessária para a) delimitar a área geográfica do estudo; b) ganhar a confiança dos atores do setor, o que pode ser considerado como incontornável para o prosseguimento da pesquisa; c)
identificar e formalizar os diferentes tipos de atores existentes em
função do tipo e do porte das atividades exercidas; d) e sobretudo
entender a organização e funcionamento geral de um negócio
particularmente obscuro, cujos principais elementos estão apresentados
aqui. Esta primeira parte
de trabalho de campo permitiu também destacar alguns questionamentos
que não teriam sido levados em consideração, ou pelo menos não
suficientemente, e que se mostraram centrais para a continuação da
pesquisa.
23O
caso, que se apresenta sob a forma de um sistema de produção
particularmente bem delimitado no espaço, leva à indagação sobre a
relevância da terriorialidade nesta conjuntura, permitindo revisitar os
quadros teóricos dos Sistemas e Arranjos Produtivos Locais (Cassiolato
& Lastres, 2003; Marcos, 2006). Os numerosos projetos voltados para o
desenvolvimento das atividades apoiadas pelas autoridades públicas
constituem também um interesse suplementar. Este tipo de ação pode ser
usada como complemento para responder a pergunta central do meu
trabalho, que é saber em quais condições as riquezas gemíferas podem ser
uma vantagem para os territórios extrativistas. A observação mais
relevante desta primeira fase das pesquisas, no entanto, foram as
recentes evoluções que afetam as atividades locais. A totalidade dos
atores afirma que a produção e o comércio de pedras na região
enfraqueceram consideravelmente durante a última década, circunstâncias
que as estatísticas oficiais não conseguem apontar.
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