O sonho da pedra
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SEU IDA PENEIRA o gorgulho no ribeirão do Guinda, em Diamantina, MG, à cata de diamantes (à direita, pedras já lapidadas)
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Você já foi a Grão Mogol, MG? Provavelmente, não. A maioria dos
brasileiros nem deve ter ouvido falar desta cidade encravada na serra de
Santo Antônio, um dos braços da cordilheira do Espinhaço, a 550
quilômetros de Belo Horizonte. Cortada pelo Ribeirão Vermelho, é a mais
setentrional das localidades históricas de Minas Gerais, nascida da
lavra garimpeira, assim como Diamantina e tantas outras no estado. Há
duas versões para a origem do nome. A primeira o relaciona à descoberta
de um diamante espetacular na Índia, batizado Great Mogul em homenagem
ao xá Jehan, um dos soberanos indianos da dinastia Mogul, construtor do
Taj- Mahal. Pesava 793 quilates quando bruto – o quilate, equivalente a
20% do grama, é a medida de todas as pedras preciosas, avaliadas segundo
a cor, a qualidade, a pureza e o peso. Para os defensores da segunda
versão, trata-se de uma redução de “grande amargor”, expressão do
desalento da população com sucessivos conflitos armados e assassinatos
quando ainda era vila – a locução teria virado “grão morgor” no correr
dos anos, assumindo depois a denominação atual. No morro da Pedra Rica,
nas cercanias da cidade, foram encontrados no século XVIII os primeiros
diamantes do mundo hospedados em grupiaras – jazidas altas nas cristas
dos morros ou chapadas com material diamantífero em camadas chamadas
barro, gorgulho, sopa ou paçoca, conforme o estado pastoso ou friável e a
quantidade de seixos. Até então, provinham de aluviões – mistura de
cascalho, areia e argila à margem ou à foz dos rios, resultantes da
erosão.
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As Minas Gerais
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| Cidades mineiras nascidas do garimpo, marcadas pela história ou pela riqueza mineral |
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A história da exploração comercial das pedras preciosas no Brasil começa
no final do século XVII com a descoberta de ouro em Sabarabuçu, hoje,
Sabará, e prossegue com o ouro e os diamantes encontrados no antigo
Arraial do Tejuco, atual Diamantina, por volta de 1725. No período
colonial, as lavras de ouro e diamantes eram feitas por escravos. Nos
170 anos seguintes, por qualquer um que se dispusesse à cata, sem
qualquer controle. Preservacionismo é palavra nova no garimpo.
Difundiu-se a partir da Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro. Desde
então, ora ávida, ora indulgente, a fiscalização bateu ponto na região,
intensificando- se a partir de 1989 com a lei 7.805, que acabou com a
garimpagem livre ao condicionar a exploração à obtenção de permissões de
lavra, numa tentativa de regulamentar a profissão. O cerco apertou
ainda mais há cinco anos com a Operação Carbono, de repressão ao
contrabando de diamantes em Minas Gerais, Mato Grosso e Rondônia –
principais estados produtores.
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| A GOIVA DESLIZA à superfície do
ribeirão: “É preciso ciência para achar diamantes porque eles têm
manias” (à direita, a igreja de Grão Mogol) |
“Parou tudo”, afirmam, cada um a sua vez, Idalvo de Jesus Andrade (seu
Ida), Belmiro Luiz do Nascimento e Antônio Pádua Oliveira Neto
(Toninho), de Diamantina; e Clarindo Francisco de Oliveira (Totôca), da
comunidade do Alegre de Baixo, e Mário Batista Corrêa (seu Marão), ambos
de Grão Mogol, referindo- se tanto ao garimpo tradicional, conduzido
manualmente, quanto à “bomba”, sistema de dragagem a motor, mais
produtivo e impactante, do ponto de vista ambiental, adotado em larga
escala atualmente – os procedimentos habituais de extração e lavagem do
cascalho exigem remoção de quantidades consideráveis de terra.
“A gente é bicho em extinção”, afirma seu Ida, de 55 anos, talvez o
único garimpeiro do Alto Jequitinhonha a persistir com a goiva – espécie
de enxada de cabo comprido com uma caixa metálica côncava no lugar da
lâmina para conter o cascalho puxado do fundo do rio. Ele explica,
orgulhoso, que a goiva não pode ser jogada aleatoriamente. A caixa tem
de deslizar na superfície até determinado ponto, examinado anteriormente
com a “vara de sondar” e só então afundar. Depois, basta puxar devagar,
depositar o material recolhido no terno (conjunto de três peneiros: o
grosso, o meão e o fino, de acordo com o calibre de cada um) e “bater”
um a um, nessa ordem, para separar os seixos e concentrar os possíveis
diamantes no meio. Então, emborca-se a peneira numa banca de apuração.
Agora, é só aguçar os olhos. Mais pesados do que o cascalho e a areia, o
ouro e o diamante concentram-se no “pretume”, no fundo da bateia ou da
peneira, faiscando à luz do sol – por isso os garimpeiros também são
chamados de faisqueiros.
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FAISQUEIRO do município de Datas examina o “pretume” emborcado numa banca de apuração
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“É um jogo de sensação”, compara seu Ida. Há que se ter sorte, observar
indícios naturais de ocorrência e respeitar as manias das pedras. Ele
afirma que os diamantes têm lá suas extravagâncias: só se revelam quando
querem e a quem os mereça. Para achá-los, os garimpeiros se guiam
principalmente por “satélites”, pedrinhas com feitios e cores diversos
denominadas cativo, ovo de pombo, palha de arroz, sericória, fava, osso
de cristal, tinteiro (preto reluzente, parecendo pólvora), cabeça de
macaco, agulha, etc. Dependendo do tipo e da concentração de satélites,
sabem se estão perto ou não de tirar uma pedra e, eventualmente,
“bamburrar” – ficar rico.
Na lida desde os 12 anos de idade, ele vem trabalhando no Ribeirão do
Guinda, a nove quilômetros de Diamantina, em parceria com Belmiro Luiz
do Nascimento, idealizador do Projeto Garimporeal, de resgate da cultura
garimpeira. “Os velhos estão morrendo e, com eles, a tradição, o
conhecimento. Os jovens não querem saber de garimpo”, justifica Belmiro,
referindo-se à iniciativa, lançada em abril. O projeto é eminentemente
educativo. Ele recebe turistas, muitos dos quais estrangeiros, e os leva
à beira do Guinda para mostrar o que é garimpo “verdadeiro” e provar
que não é nocivo ao meio ambiente. Seu Ida se encarrega das “aulas
práticas” e ele, das “teóricas”
Belmiro concorda com as exigências legais como forma de coibir a
clandestinidade e proteger a natureza, mas contesta a generalização. “O
garimpo tradicional não desbarranca nem faz desmonte com explosivos,
como é comum na mineração. Os mineradores nacionais ou internacionais
não causam estragos maiores, mesmo com permissão legal?”, questiona,
observando que a maioria dos garimpeiros não tem condições de arcar com
os custos de licenciamento – cerca de cinco mil reais, considerando
apenas a PLG – Permissão de Lavra Garimpeira, documento fornecido pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral, órgão do governo federal.
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Diamantes de sangue
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O
Protocolo Kimberley, ou KCPS – Sistema de Certificação do Processo
Kimberley, é uma tentativa conjunta de 40 países de coibir o terror
perpetrado por grupos rebeldes na África. Quem viu o filme Diamante de
Sangue, com o ator Leonardo Di Caprio, tem noção da barbárie,
financiada, em grande parte, pelo contrabando de diamantes, negócio
altamente lucrativo. A indústria movimenta anualmente 6,7 trilhões de
dólares, segundo a ONU.
Desde
janeiro de 2003, nenhuma pedra bruta pode ser comercializada sem a
certificação, emitida pelos respectivos governos assegurando sua origem
legal. Em 2004, 29 garimpeiros foram mortos na reserva indígena
Roosevelt, na fronteira de Mato Grosso com Rondônia. Território dos
cintas-largas, a reserva abriga grandes depósitos diamantíferos ainda
não totalmente mensurados. Pronto! O Brasil passou a integrar a lista
dos países com “diamantes de conflito”. Paralelamente, surgiram indícios
de que o país estava sendo usado como ponte para as pedras africanas,
vendidas no mercado internacional como se fossem brasileiras. |
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TOTÔCA E SEU velho escafandro enfim aposentado: “O garimpo acabou no norte de Minas Gerais. Diamante agora é água”
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Para Belmiro, a PLG é relativamente simples de se obter. As exigências,
porém, são impraticáveis: o garimpeiro, mesmo o tradicional, é obrigado a
descrever o tipo de minério procurado e indicar o local exato onde
pretende lavrar. A descrição e o plano de trabalho devem ser detalhados
em documento e assinados por um geólogo. Para complicar a coisa, a
permissão legal autoriza lavra de 50 hectares, no máximo (no caso das
cooperativas, 200), área pequena demais para quem sempre trabalhou solto
no mundo, sozinho ou com algum companheiro. Segundo ele, garimpeiro não
tem cultura associativa. Muitos desistiram, outros conseguiram alvarás,
mas acabaram vendendo-os. “Diamantina já não tem TOTÔCA E SEU velho
escafandro enfim aposentado: “O garimpo acabou no norte de Minas Gerais.
Diamante agora é água” mais o mesmo brilho”, lamenta Toninho, ourives
da Joalheria Pádua, a mais antiga do país, instalada no centro histórico
desde 1883. Além da produção própria de diamantes e cristais, a
joalheria recebia pedras de todos os cantos do país. “Nós lapidávamos
quatro mil gemas por mês. Agora, trabalho sozinho, nem todo o dia sento
na banca e não faço quatro mil nem num ano”, compara. Ele calcula que
por volta de 1970 havia três mil bombas em pleno funcionamento no
município. “Hoje, não têm quase nenhuma.” Em sua opinião, a cidade
empobreceu. Depende agora do funcionalismo público, do turismo e de
serviços.
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| ANTONIO PÁDUA em sua banca de trabalho
com uma ametista roxa encanetada (no detalhe): “O brilho da cidade não é
o mesmo sem o garimpo” |
Totôca é taxativo. Em sua opinião, o garimpo acabou de vez no norte de
Minas. “Diamante agora é água”, diz ele, referindo-se ao Alegre de Baixo
e outras 46 comunidades ribeirinhas afetadas pela barragem de Irapé,
maior usina do país, com 208 metros de altura e 5,9 bilhões de metros
cúbicos de água de capacidade máxima, construída pela Cemig no Alto
Jequitinhonha – o alagamento atingiu núcleos urbanos e áreas rurais numa
extensão de 115 quilômetros do Jequitinhonha e 50 quilômetros do
Itacambiraçu, um de seus afluentes. Até recentemente, Totôca caçava
diamantes com seu velho escafandro de bronze – um anacronismo nesses
tempos de busca desenfreada de produtividade. “Era penoso demais. Eu
trabalhava agachado no fundo do rio pegando cascalho e pondo num balde
enquanto um companheiro na balsa lá em cima bombeava ar por uma
mangueira. Se ele quisesse se livrar de mim, era só parar que eu
morria.” A idade, a dor no “espinhaço” (sem qualquer alusão à
cordilheira), o cansaço e os perigos inerentes ao trabalho acabaram
afastando-o da beira do Itacambiraçu, agora um lago quase dentro de
casa.
Ele talvez tenha sido o derradeiro garimpeiro da região a usar
escafandro. Os poucos em atividade em “bombas” trajam roupas de
neoprene, de pesca submarina, e usam tubos de sucção para retirar o
cascalho. Seu Marão também parou por problemas de saúde. Aos 84 anos de
idade, já não tem a força de antes e a surdez avança. Ele lastima o
estertor do garimpo em nome do antigo rebuliço na cidade e dos amigos de
função – cadê Geraldo Mariquinha, Suetônio, Ferro Velho, Abiné, Zé
Boquinha e Tonho da Marciana? Seu Marão... Bem, seu Marão é um caso
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