domingo, 27 de dezembro de 2015

Passagens da história do velho garimpeiro e de sua inseparável esposa

Dona Lia e seu Marão
Passagens da história do velho garimpeiro e de sua inseparável esposa com a qual ele enfrentou a dura lida da vida, visitas de onça e tentações assombrosas 

Seu Marão é um diamante. À primeira vista é bruto como a pedra. Bastam, no entanto, alguns segundos de convívio para a impressão se desfazer rio abaixo. É um homem carismático, atencioso, muito, muito engraçado. Gosta de visitas. Adora conversar, contar histórias de onça e assombração. Seus olhos brilham quando lembra da noite em que uma “pé-fofo” cheirou-lhe os pés na loca onde dormia (leia O caso da onça, abaixo) e das aventuras com dona Lia, por quem se apaixonou quando menino. Tinha 11 anos. O pai era conservador, não dava folga à filha. Namorar, nem pensar. Conversavam com os olhos – adivinhavam um ao outro.

Mário cresceu e virou garimpeiro. Filho de agricultor, preferiu a pedra à planta. “O diamante é mais ligeiro”, alega. Em meados do século passado, o garimpo entrou em baixa e ele pegou a estrada para São Paulo. Voltou dez anos depois – cansara da cidade grande e morria de saudades da menina, então moça formosa. Homem feito, alto, “reforçado”, com fama de valente, impressionava as mulheres. Assim, casou com Lia, discreta, miudinha, uma figura – finge que não presta atenção mas não perde uma palavra do marido. “Ela bicou pra mim”, diz ele, às gargalhadas. Dona Lia o ajudava na lavra, fazia café, “quentava” a bóia, cuidava da loca onde passavam as noites. “Foi de lá que ele veio”, conta, cabeça baixa, voz sumida, referindo-se a Zé Mário, herdeiro da paixão do pai pelas pedras. “Sabe tudo”, diz Maria Luiza, falando do irmão.

Segundo ambos, o pai poderia ter ficado rico com o que ganhou no garimpo. No entanto, gastou quase tudo em farras e nos forrós que organizava em sua casa, debruçada no ribeirão. Suas festas ficaram famosas. A folia seguia até o nascer do sol. Vez em quando dona Lia substituía o sanfoneiro com seu “pé-debode” – sanfoninha de oito baixos – mas gostava mesmo era de dançar. Seu Marão não tolerava casais agarradinhos. Falta de modos. Respeito. Um dia, alguns jovens o confrontaram, aconchegando demais as meninas. Enfurecido, ele correu à cozinha, pegou um facão e voltou num pulo à sala, riscando o chão ao redor. Não deu outra! Um disparou porta afora, outros, pela janela, sumiram todos no breu da noite.

O VELHO GARIMPEIRO, com sua bateia de madeira no Ribeirão Vermelho e num raro instante de seriedade, ao lembrar do passado (à direita)

Contam muitas histórias sobre ele. Dizem que atirava nos santos que não o atendiam. Certa vez, implorou a santo Antônio uma pedra grande no garimpo. Dona Lia sempre o esperava na janela – ele sempre vinha pelo rio. Naquele dia, voltou de cara amarrada e espingarda na mão. Temendo que destroçasse a imagem de sua predileção, de quase um metro de altura, com adornos dourados, ela a substituiu por outra, menor. Seu Marão foi direto ao oratório, engatilhou a espingarda mas..., refugou. Olhou, coçou a cabeça e disse: “Olhe, menino! Vá chamar seu pai que eu quero ter uma conversa com ele”.

Valente com os homens, arrojado com os santos, ele não é o mesmo com as “coisas da noite”. Evita locais ditos assombrosos, sempre passa ao largo da gameleira sob cuja fronde, segundo ele, “o coisa-ruim concede audiência”. Seu Marão viu muita coisa estranha na vida: “Um homão torto na cabeceira da ponte, um vulto esquisito na tapera do Deodato, um menino passando por mim na direção do espantoso. Não sei o que o menino viu. Só sei que o chapéu dele inchou tanto que caiu da cabeça”. À parte o oculto, ele é respeitado pelo caráter, honestidade, coragem.

“Meu pai passou 70 anos atrás de ouro e diamantes, mas a maior riqueza que ele nos legou foi o exemplo. Mostrou que não é preciso muito para ser feliz.” Seu Marão sabe que os tempos de garimpo já se foram, embora de vez em quando fuja de casa com a bateia na mão. É alguém que viveu intensamente. Um homem em paz consigo mesmo, com os seus e os outros. Não reclama de nada. Não trocaria a sua vida por outra. Não mudaria nada do que fez. Não quer saber de outro lugar além de Grão Mogol. É a sua terra natal, um lugar bonito, com gente hospitaleira, prédios coloniais, ruas estreitas, cortado pelo Ribeirão Vermelho. O acesso é difícil. Quando chove é um barro só e quando não, um poeirão. A cidade fica escondida no fundo do vale, ao pé da montanha. Quem chega vê mais telhados do que muros. Em todo lugar se respira pedra. Alguma coisa brilha.
O caso da onça


Onça é com seu Marão. Tem 25 no currículo. Umas, viu de relance. Outras, só o rastro. Das demais, ouviu somente o esturro ou algum grunhido breve na noite. A que chegou mais perto de acabar com ele foi a que cheirou-lhes os pés quando dormia numa lapa rasa, nos áureos tempos do garimpo. “Não sei como ela chegou. O teto era baixo, não pude fazer cama alta. Tava rente ao chão. Tinha dado chuva cedo. Fiz a janta, ajeitei as coisas e me enfiei no pano. Dormia quando senti coceira no pé e um cheiro esquisito no ar. Virei devagarinho e vi um vulto se mexendo. Pensei: é um cachorro, mas era grande demais pra ser cachorro. Aí enxerguei os olhos dela faiscando no escuro. E arrepiei. Ela tava olhando pra mim! Eu tava desarmado, só com o facão, Deus e Nossa Senhora. Gritei, mas o grito não saiu. Gritei de novo e aí ecoou alto, ela assustou e foi embora. Era rajada. Uma onça comedeira – devia ter comido muita criação. Era feia demais.”

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