Para onde vão nossos diamantes
Por que o Brasil deixa a maior jazida de diamantes do país, na terra dos índios cintas-largas, entregue aos contrabandistas?
"Sempre que uma grande riqueza é descoberta, um
banho de sangue acontece." Essa é a frase de abertura do filme Diamante
de Sangue, que colocou em evidência o tortuoso caminho percorrido pelas
pedras retiradas de países em guerra até as joalherias mais finas. No
cinema, o ator Leonardo DiCaprio interpreta um mercenário que troca
diamantes por armas para as milícias em Serra Leoa, na África da década
de 90. O filme impressiona, e até revolta, mas a tragédia dos diamantes
também está do lado de cá do Atlântico. Na Amazônia, garimpeiros,
contrabandistas internacionais e atravessadores - como o mercenário
interpretado por DiCaprio - voltaram a explorar ilegalmente a maior
jazida de diamantes do Brasil.
Desde janeiro, quatro máquinas retroescavadeiras removem a terra
vermelha do garimpo do Laje, situado na terra indígena dos
cintas-largas, em Rondônia. A cratera aberta pelas máquinas já possui
cerca de 10 quilômetros de perímetro. A exploração de diamantes na
região deveria estar suspensa desde 2004, quando o massacre de 29
garimpeiros chocou o mundo. Mas nem a presença da Polícia Federal
consegue evitar novas invasões na área indígena.
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RIQUEZA? Cratera aberta pelo garimpo e criança cinta-larga com arco-e-flecha. Os diamantes não ajudam os índios - nem o país |
O que se diz da jazida de Laje lembra os antigos mitos de Eldorado
amazônico. Segundo Luís Paulo Barreto, secretário-executivo do
Ministério da Justiça, pesquisas geológicas feitas por duas
multinacionais da mineração indicam a presença de 15 formações rochosas
vulcânicas de onde saem os diamantes, chamadas kimberlitos. Isso seria
três vezes mais que as principais jazidas da África do Sul e Botsuana,
os maiores produtores mundiais de diamantes. Mas todo esse potencial
nacional está desperdiçado. Estima-se que o garimpo desordenado e ilegal
consiga tirar cerca de R$ 100 milhões por ano de Laje. Se fosse uma
mineração com recursos industriais, seria possível extrair rochas mais
profundas e retirar até R$ 3 bilhões por ano.
Essa quantia seria capaz de sacudir o mercado global de diamantes,
que hoje movimenta cerca de US$ 10 bilhões por ano, ou R$ 21 bilhões. O
comércio mundial é dominado pela empresa multinacional De Beers, sediada
na África do Sul. A De Beers, da família sul-africana Oppenheimer,
possui minas em Botsuana, Zaire, Austrália e Canadá. Também compra a
produção de outros países. Em seus cofres, estima-se que estejam 40% dos
diamantes extraídos no mundo. Toda segunda-feira, a operadora de vendas
da De Beers, a Central Selling Organization, reúne os grandes
negociantes das pedras em s Londres. É ali que a De Beers avalia como
está o preço internacional dos diamantes e decide quantas e quais pedras
vai lançar no mercado. Sua decisão regula o valor internacional dos
quilates de diamantes. Hoje, 1 quilate (equivalente a 0,2 grama) de uma
pedra de boa qualidade vale US$ 1 mil. Da reserva dos cintas-largas, já
saiu um raro diamante-rosa que teria sido vendido por R$ 7 milhões no
mercado negro.
O Brasil já foi o maior produtor mundial de diamantes entre os
séculos XVIII e XIX. Com o declínio da exploração artesanal em Minas
Gerais, o país perdeu posição para os grandes produtores africanos, da
De Beers. Hoje, o Brasil exporta apenas R$ 60 milhões por ano. Está fora
do time dos grandes produtores: Botsuana, África do Sul, Canadá,
Rússia, Índia e Austrália. A perspectiva de legalização das jazidas das
terras dos cintas-largas poderia colocar o país entre os três maiores
produtores mundiais.
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Esse enorme potencial de riqueza, até agora, só tem trazido calamidades,
como ilustra a história do cacique João Bravo, que controla a área
indígena onde fica o garimpo. Com 60 anos, o cacique é o que os
antropólogos consideram um órfão de contato. Ele é um dos cintas-largas
que perderam todos os parentes com a chegada de invasores brancos, entre
os anos 60 e 70. O primeiro contato dos cintas-largas com os brancos
aconteceu por meio dos garimpeiros. João Bravo conta que, antes de ser
cacique, vivia na região do Rio Aripuanã, em Mato Grosso. Nessa época,
os cintas-largas ainda estavam isolados na floresta. Eram exímios
caçadores e temidos guerreiros canibais. De acordo com Bravo, a vida na
floresta só era possível por causa de um intenso treinamento que
começava aos 10 anos de idade. "Ficávamos durante toda a manhã passando
frio debaixo das cachoeiras", diz. "Depois, todo mundo tinha de ir caçar
ou morria de fome", afirma o cacique.
Essa vida mudou com a chegada dos primeiros garimpeiros e
seringueiros. "Primeiro, mataram as crianças que brincavam no rio", diz
Bravo. "Depois, invadiram as aldeias atirando em todo mundo." Quase
todos os caciques da região também são órfãos de contato e perderam seus
pais e irmãos de forma semelhante. "Lembro de ter ficado semanas caído
no chão. Estávamos tão doentes que víamos nossa família morrer e não
podíamos fazer nada", afirma Oita Matina, outro dos líderes da terra
indígena. As chacinas e epidemias de gripes trazidas pelos invasores
reduziram a população de mais de 10 mil cintas-largas para 1.300
indivíduos. A pior matança ocorreu em 1963 e ficou conhecida como o
Massacre do Paralelo Onze. O inquérito policial do caso relata que
dinamites foram jogadas nas aldeias para dispersar os índios para a
floresta, onde eram surpreendidos por pistoleiros. "Tudo explodia. Nós
ficávamos tentando flechar os aviões", diz João Bravo. Durante o
massacre, uma índia foi pendurada pelo pé e esquartejada viva.
Depois de tentar a guerra contra os brancos, os cintas-largas
decidiram, na metade da década de 70, entrar em acordo com os
garimpeiros e invasores. João Bravo foi um dos que visitaram as cidades
próximas às aldeias para distribuir colares de presente para a
população. Em 1974, a Funai demarcou o território. Em menos de 30 anos
de convívio com o mundo civilizado, os cintas-largas tiveram de aprender
a falar português, dirigir carros e lidar com dinheiro. Muitos ainda
não dominam nenhuma dessas habilidades. Donos de um território de 2,7
milhões de hectares, grande parte das mulheres, crianças e velhos ainda
compreende apenas o tupi-mondé, a língua tradicional da etnia. João
Bravo fala um português limitado e sua caminhonete vive amassada por
batidas. Seus filhos estudam até o ensino fundamental, mas ainda passam
pelo treinamento de guerreiro - não mais para lutar com outras tribos,
mas para formar a milícia que toma conta do garimpo. As meninas se casam
antes dos 15 anos, geralmente com os tios, em uma teia social na qual o
dono da casa exerce o papel central. Um cinta-larga poderoso chega a
ter várias esposas de uma só vez. João Bravo tem cinco mulheres.
O garimpo de mais de três décadas atingiu seu auge em
1999, quando milhares de aventureiros chegaram de vários cantos do país,
atraídos pela "fofoca do diamante". Os índios incorporaram o garimpo em
seu modo de vida. "Decidimos controlar a área. Senão os brancos
entravam e roubavam tudo", diz João Bravo. A situação saiu do controle
em 2004, quando 5 mil garimpeiros circulavam no Laje. Qualquer
aventureiro queria entrar na reserva. Até que a chacina de 29
garimpeiros ganhou as manchetes nacionais. Os índios são os principais
acusados. Depois das mortes, mais seis pessoas foram assassinadas na
região, entre índios, contrabandistas e garimpeiros. A polícia estima
que outros 20 estejam desaparecidos. Para tentar conter o conflito, o
governo federal interditou a região em 2004 e proibiu o garimpo em
qualquer terra indígena do país.
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DINHEIRO O cacique João Bravo (à dir.) controla a terra onde estão os diamantes. À esquerda, jipes apreendidos dos índios por dívidas e irregularidades |
A Polícia Federal tem seis bases fixas na região, batizadas de
Operação Roosevelt. Mas nem a intervenção do governo federal consegue
conter a corrida pelos diamantes. Cerca de 500 homens - entre índios e
garimpeiros - transitam no local. Jatos de água derrubam o barranco e
outras máquinas separam o cascalho dos diamantes. O lucro é dividido
entre os garimpeiros proprietários das máquinas e os caciques. Cerca de
6% são distribuídos entre os garimpeiros pobres, índios mais jovens e as
cozinheiras dos acampamentos. A matemática seria boa, mas os índios
alegam ter sido roubados com freqüência por atravessadores de diamantes.
Na semana passada, um dos filhos de João Bravo, Raimundinho, acusou um
suposto vendedor de levar 700 quilates de diamantes, no valor de R$ 600
mil, dos cintas-largas. Segundo a polícia, o contrabandista teria se
oferecido para vender as pedras em Cuiabá e desapareceu.
A exploração industrial em Rondônia faria do Brasil um dos maiores produtores mundiais de diamante |
Se a jazida das terras dos cintas-largas fosse legalizada, ela poderia
gerar algo em torno de R$ 6 milhões por mês de impostos. Além da evasão
de divisas, a situação ilegal do Laje atrai máfias internacionais.
Investigações do Ministério Público e da Polícia Federal revelam que
quadrilhas s do Líbano, Serra Leoa e Bélgica são responsáveis pelo
contrabando dos diamantes da terra indígena. Segundo investigações do
Ministério Público de Minas Gerais, os diamantes podem estar sendo
usados para patrocinar tráfico de drogas e terrorismo.
Uma das
conseqüências da atividade ilícita é a ligação dos índios com esse crime
organizado. Devido ao contato com os atravessadores de pedras, 13
cintas-largas estão indiciados por formação de quadrilha, lavagem de
dinheiro e contrabando. De acordo com o Estatuto do Índio e a
Constituição Federal, as riquezas do subsolo podem ser extraídas pelas
nações indígenas quando localizadas em suas terras homologadas. Mas,
como a garimpagem em terras indígenas está suspensa pelo decreto de
2004, os índios passaram a viver uma situação marginal em seu próprio
território.
O envolvimento dos índios agora é financeiro. Nos tempos do auge do
diamante, em 2002, alguns caciques compraram casas na região e carros
importados. Cercados por ajudantes, contratados na forma de motoristas
brancos, os índios selaram amizade com os atravessadores de diamantes.
Muitas máquinas de garimpo e carros foram comprados no nome desses
terceiros. Mas, por causa das dívidas, a maioria perdeu todos os bens.
Um depósito da Polícia Federal guarda cerca de 50 caminhonetes Toyotas
apreendidas de índios cintas-largas, a maioria por dívidas não quitadas.
Um levantamento do Ministério Público Federal (MPF) de Rondônia apontou
que os índios devem na região cerca de R$ 700 mil.
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GUERRA DiCaprio interpreta um atravessador de diamantes em Serra Leoa. As mesmas quadrilhas atuam aqui |
PRÓSPEROS
Tratores retiram diamantes do território indígena, no Canadá. A
exploração organizada rende empregos e participação nos lucros |
Apesar dos problemas trazidos pelo garimpo ilegal, hoje não há uma
estratégia realista para enfrentá-lo. A mera proibição, mesmo com a
presença da Polícia Federal, não tem se mostrado eficaz. Um emaranhado
de estradas clandestinas desenha um labirinto de lama na floresta. A
fiscalização fica impossível. "É um jogo de gato e rato", afirma o
delegado da Polícia Federal, Rodrigo Carvalho. Grande parte dos 2,7
milhões de hectares da floresta que envolvem a jazida de diamantes está
praticamente intacta. Aventurar-se na região é perigoso. Onças, malária e
cerca de 90 índios guerreiros armados com flechas e metralhadoras são
apenas alguns dos obstáculos. Mesmo com os riscos, garimpeiros ainda
sonham em colocar os pés no Laje. "Se puder entrar lá novamente, eu vou.
Os diamantes compensam", diz o garimpeiro Antônio Rosa de Carvalho, o
Goiano, um dos sobreviventes do massacre de 2004.
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CONTRABANDO Diamante apreendido pela polícia em 2006 |
Regulamentar a extração de diamantes parece ser um dos poucos caminhos
possíveis para resolver o conflito na terra cinta-larga. Os índios têm
direito constitucional sobre as riquezas minerais de seu subsolo. O
problema é como explorar o recurso. Existem vários projetos de leis para
isso. A mais antiga tentativa de regularizar a questão é um complemento
do Estatuto do Índio, que aguarda desde 1991 para ser votado. Ele
permitiria a exploração com repasse de parte dos lucros para os índios.
Outra proposta, do senador de Roraima, Romero Jucá, foi aprovada no
Senado Federal e espera apenas passar pela Câmara dos Deputados. Prevê a
exploração sem pagar nada aos índios. Uma terceira proposta, criada
após o massacre de 2004, é um meio-termo: prevê repasse aos índios, mas
com limites. "Em março, iremos nos reunir com os representantes de
várias etnias indígenas em Manaus para um acordo", diz Barreto, do
Ministério da Justiça.
Um exemplo de como a exploração de diamantes pode ser bem
administrada, é o caso do Canadá. Em 1991, os canadenses regulamentaram a
extração de diamantes no território dos povos dene e inuit. O país se
tornou o terceiro maior produtor de diamantes do mundo. As comunidades
indígenas que participam da iniciativa enfrentam problemas, como o
aumento do consumo de drogas. Mas cerca de 40% dos índios trabalham com
as mineradoras que estão na região. Alguns são geólogos ou lapidadores. E
as aldeias ganham cerca de 20% do faturamento das jazidas. Essa seria a
melhor opção para o Brasil. A outra opção é atolar na violência, como
Serra Leoa.
OS EFEITOS DA EXPLORAÇÃO ILEGAL |
Sobre os índios |
• Massacre Desde
o início da entrada de garimpeiros na região, em 1963, doenças e
chacinas reduziram a população cinta-larga a 1.300 pessoas, menos de 10%
do original
• Doenças Hoje,
cerca de 30% dos índios cintas-largas estão com diabetes. A ingestão de
alimentos industrializados trazidos com o garimpo é a principal causa
da doença
• Corrupção de valores A
venda ilegal dos diamantes empurra os índios para a criminalidade.
Treze cintas-largas estão indiciados por homicídio, formação de
quadrilha e contrabando
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Para o país |
• Evasão de divisas A Polícia Federal estima que R$ 100 milhões em diamantes são retirados de forma ilegal por ano
• Crime organizado Sem
opção legal, os diamantes são vendidos por quadrilhas internacionais,
ligadas ao narcotráfico e até ao terrorismo. Menos de 5% são recuperados
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O que poderíamos ganhar com a regularização |
• Produção de riquezas A mineração industrial dos diamantes de Rondônia poderia produzir R$ 3 bilhões por ano
• Impostos Esse
valor poderia render anualmente até R$ 6 milhões somente em tributos
federais. O valor aumentaria com os tributos trabalhistas estaduais e
municipais
• Distribuição de benefícios Cerca de 2% do lucro da produção iria para as comunidades locais. Isso reduziria a pobreza na região
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