domingo, 14 de fevereiro de 2016

Em termos geológicos, Taquaral se localiza numa das áreas mais ricas do mundo em abundância e variedade de gemas

A relevância do garimpo na geração de renda sempre foi um fator preponderante para o desenvolvimento e manutenção da economia, da sociedade e da identidade do Povoado de Taquaral. Contudo, a exploração desenfreada dos recursos naturais ali existentes, resulta em diversos riscos socioambientais, com destaque para as implicações que a atividade garimpeira acarreta na saúde dos moradores do Povoado que nela trabalham. Os riscos associados a tal atividade, principalmente aqueles que afetam a qualidade de vida do trabalhador, constituem fatores determinantes na vulnerabilidade do indivíduo, o que acentua a ocorrência de doenças relacionadas ao processo de extração. Em trabalho que enfatiza os riscos ocupacionais que afetam a saúde do trabalhador, Colacioppo (2005) ressalta:
Na realidade brasileira, mesmo com os grandes avanços da ciência, ainda há diversas situações em que um trabalhador ao realizar uma atividade pode ficar exposto a um agente agressivo e, consequentemente, apresentar efeitos imediatos, como no caso de acidentes, ou ainda, após algum tempo, como nas doenças ocupacionais. Em determinadas situações o trabalhador pode não receber atenção médica, por estar fisicamente distante das equipes de saúde, como no caso de garimpeiros ou trabalhadores rurais. (COLACIOPPO, 2005, p. 521).
Pela similitude com o objeto analisado, várias obras oportunizaram subsídios teórico-metodológicos à investigação então realizada. Os trabalhos mais alinhados com a presente pesquisa foram os de Marques (2011), um pioneiro estudo, ainda que genérico, sobre a degradação ambiental provocada pelos garimpos no Povoado de Taquaral; a referencial dissertação de Nascimento (2009), que analisou conjuntamente impactos socioambientais e as consequências na saúde do trabalhador nos garimpos de esmeraldas no município de Campo Verde, em Goiás; a publicação de Oliveira e Vieira (2012) sobre as condições socioeconômicas dos garimpeiros de Diamantina, MG, numa perspectiva metodológica da história oral temática, portanto baseada em narrativas dos próprios trabalhadores; o feito por Milanez e Puppim (2009), que investigou o arranjo produtivo local na área de extração de opalas em Pedro I, no Piauí, relacionando economia, trabalho e contexto socioambiental em pequenas minerações; e o estudo de Tavares et al. (2007), que faz também uma análise sistêmica – economia, trabalho e meio ambiente – nos garimpos de gemas da região do Médio Jequitinhonha.
Caracterização da área estudada
O Povoado de Taquaral está localizado no município de Itinga, a sudoeste do distrito-sede, na mesorregião do Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais. Encontra-se na margem direita do rio Jequitinhonha (figura 1) e conta com uma população absoluta estimada em 2.364 habitantes conforme consta no Mapa Epidemiológico de 2014 consultado no Posto de Saúde da Família (PSF) de Taquaral.
Figura 1- Povoado de Taquaral. Fonte: Acervo Fotográfico da Prefeitura Municipal, Itinga - MG, 2014.
Em termos geológicos, Taquaral se localiza numa das áreas mais ricas do mundo em abundância e variedade de gemas, a Província Pegmatítica Oriental do Brasil, que se estende pelo nordeste e leste de Minas Gerais, sobretudo ao longo dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha, onde afloram os seus principais corpos rochosos. Nesse contexto regional se destaca as cercanias do município de Araçuaí – MG, que dá nome a um dos distritos minerais da referida província gemológica, subdivisão territorial que engloba ainda os municípios de Coronel Murta, Itinga, Virgem da Lapa e Rubelita. Esse distrito apresenta abundância de elementos químicos raros como o lítio e o boro em pegmatitos, que mediante as alterações geradas pela atuação dos processos geológicos transformaram-se em depósitos com um grande número de minerais valiosos, situações estas muito especiais e existentes em poucos lugares da Terra (PEDROSA, 2005). Esse distrito mineralógico é assim uma das principais áreas produtoras de minerais gemas do planeta, além de apresentar também significativa diversidade de minerais industriais e de rochas ornamentais.
Há registros da extração de gemas no local onde é hoje o Povoado que remontam o início do século X. Contudo, foi somente na década de 1950, com a vinda da família Gonçalves, que a atividade garimpeira se intensificou na localidade, constituindo-se numa das principais atividades econômicas locais, aliada à criação de animais e cultivos, atividades estas muito prejudicadas pelo baixo índice pluviométrico regional, o menor de toda a bacia do rio Jequitinhonha (FERREIRA e SILVA, 2012).
O surgimento do Povoado se deu as margens do rio Jequitinhonha, fato comum aos núcleos de povoamento originados próximos aos cursos d’água. Atraídos pela quantidade e qualidade dos recursos gemológicos retirados no local, diversos garimpeiros provenientes de outras regiões passaram a ser residentes fixos. Taquaral sempre atraiu indivíduos que, com a utopia do enriquecimento rápido, exploram as terras e diversas lavras (há cerca de trinta garimpos nas imediações do Povoado, entre ativos e inativos).
Dentre os recursos valiosos encontrados destacam-se as turmalinas, que são tecnicamente um grupo de minerais ou então variedades deste. Os garimpos de Taquaral produzem turmalinas nas variedades indicolita (todos os matizes de azul, muito valorizada no mercado e de rápida comercialização), verdelita (matizes de verde), rubelita (rosa e/ou vermelha), schorlita (preta), acroíta (incolor), além das elbaítas com bicoloração, como a melancia (verde e vermelha). Também são encontrados na área variedades gemológicas do mineral berilo, como a água-marinha (azul), a morganita (rosa) e o heliodoro
(amarelo dourado). Além das gemas, outro importante recurso procurado pelos garimpeiros são as chamadas peças de coleção1.
A atração de garimpeiros e investidores mediante descoberta de novas áreas potenciais alavancou o comércio de gemas nas últimas décadas. A lavra do Pirineu, de difícil acesso, foi reconhecida mundialmente pela qualidade dos recursos gemológicos extraídos. Tradicionalmente as denominações peculiares de cada lavra são relacionadas aos garimpeiros descobridores ou então associadas a algum aspecto fisiográfico (vegetação, relevo etc.) da área onde se deu a ocorrência, como Lavra da Jurema, da Malva, do Baixão, da Pitomba e do Maxixe.
No trabalho desenvolvido foram oito as lavras visitadas e analisadas:
Lagoa da Malva, Manguinha, Bode, Lajedo, Jurema, Lavra de Zá, Lavra do Piauí e Lavra da Faixa. A figura 2 indica a localização destas lavras e a situação geográfica de cada uma em relação ao Povoado de Taquaral.
Figura 2: Localização e situação geográfica dos garimpos visitados Fonte: Elaborado pelas autoras, 2014.
1 “Variedades dos minerais pegmatíticos com ou sem valor gemológico que exibem espécies minerais com belas feições, incrustações ou cristalizações perfeitas. (...) A produção dessa variedade mineral tem gerado bons dividendos aos garimpeiros, pois algumas vezes determinada peça pode valer mais que o próprio mineral gema”. (TAVARES et al., 2007, p. 61).
Métodos
A metodologia adotada no presente trabalho caracterizou-se por uma pesquisa de campo de caráter qualitativo e quantitativo, com base na coleta de dados oriundos da aplicação de questionários e da realização de entrevistas com os trabalhadores garimpeiros do Povoado de Taquaral. A pesquisa se caracterizou como qualitativa por seu caráter exploratório objetivando traduzir e expressar o sentido dos diversos fenômenos do mundo social, o que reduz a distância entre o indicador e indicado, entre teoria e dados, contexto e ação (MAANEN, 1979). O aspecto quantitativo objetivou “quantificar opiniões, dados, na forma de coleta de informações e empregar recursos e técnicas estatísticas” (OLIVEIRA, 2002).
Em função da inexistência de estudos mais acurados quanto à avaliação dos impactos ambientais gerados pelos garimpos de gemas em lavras das imediações do Povoado de Taquaral e a escassez de dados e registros epidemiológicos sobre doenças relacionadas ao trabalho garimpeiro na área analisada, métodos “Ad Hoc”2 foram adotados como uma linha-mestra na pesquisa. Reforçou também a referida adoção o pioneirismo da proposta no que tange ao recorte espacial estudado e o fato do trabalho ter desde a sua concepção um caráter de análise panorâmica no escopo da Gestão Ambiental.
Bastos e Almeida (2009, p. 89) defendem que
Estas metodologias, se utilizadas isoladamente, deverão desenvolver a avaliação dos impactos ambientais de forma simples, objetiva e de maneira dissertativa. São adequadas para casos de escassez de dados, fornecendo orientação para outras avaliações.
Os mesmos autores ponderam ainda sobre a vantagem e a desvantagem na adoção desses procedimentos metodológicos.
Apresentam como vantagem uma estimativa rápida da avaliação de impactos de forma organizada, facilmente compreensível pelo público. Porém, não realizam um exame mais detalhado das intervenções e variáveis ambientais envolvidas, geralmente considerando-as de forma bastante subjetiva, qualitativa e pouco quantitativa (BASTOS e ALMEIDA, 2009, p. 89).
2 Métodos “Ad Hoc” “são aqueles baseados no conhecimento empírico de especialistas no assunto e/ou da área em questão” (BASTOS e ALMEIDA, 2009, p. 89).
A princípio a abordagem se desenvolveu mediante um estudo de caso, com recorte espacial definido, e que com base em André (2005) respeitou três fases principais, a exploratória, a fase de coleta de dados e a fase de análise sistemática dos dados. Assim, para alcançar os objetivos propostos pelo trabalho a metodologia a ser adotada no mesmo seguiu as etapas elencadas a seguir.
garimpos nas esferas federal, estadual e municipal
A primeira fase da pesquisa baseou-se em uma revisão bibliográfica feita entre os meses de fevereiro a setembro de 2014 acerca das concepções teóricas quanto ao universo dos riscos na atividade mineradora de pequena escala, bem como do levantamento de trabalhos acadêmicos já publicados e relacionados aos impactos ambientais e na saúde dos trabalhadores no cotidiano dos garimpos. Além de permitir a fundamentação conceitual do projeto de pesquisa proposto, tal procedimento também contribuiu no entendimento de abordagens metodológicas já empregadas em casos similares ao objeto de estudo aqui definido. Ainda nessa fase foram consultadas as principais legislações que buscam normatizar o trabalho minerador em
A segunda etapa, mais pragmática, envolveu a coleta de dados e foi realizada nos meses de fevereiro, outubro, novembro e dezembro de 2014. Foram pesquisados registros demográficos sobre Taquaral e registros de ocorrências de doenças e atendimento médico disponíveis nos bancos de dados no posto de saúde do Povoado. De maneira paralela, foram realizadas visitas na área em estudo e que atenderam a diferentes interesses. Para observação e registro fotográfico das características geobiofísicas da área (clima, geologia, solo, geomorfologia, vegetação e hidrografia), para interpretação “in loco” das condições de trabalho dos garimpeiros nas áreas de lavra e, com uso de um aparelho receptor manual do sistema GPS3, definição das coordenadas geográficas das lavras visitadas. Posteriormente foi feita a implantação das coordenadas das lavras numa base cartográfica da área disponível no “software” GPS TrackMaker. Após ser convertida para um arquivo compatível, gerou-se o produto final apresentado na figura 2.
3 GPS: Global Position System. Em português, Sistema de Posicionamento Global.
As visitas ocorreram em três momentos distintos: a primeira realizouse no dia 21/02/14 no garimpo Lajedo. A segunda visita ocorreu no dia 03/10/2014 nos garimpos Lagoa da Malva, Manguinha, Bode, Lavra de Zá e Jurema. A terceira e última se deu no dia 12/12/2014 na Lavra do Piauí, na do Lajedo (pela 2ª vez) e na da Faixa. Todas as visitas às lavras foram com o objetivo inicial do conhecimento de como se dá o processo de extração de gemas na região e das condições de risco a que se submetem os garimpeiros em seu cotidiano laboral.
Com específico foco nas condições de trabalho existentes nas áreas definidas, foram realizadas duas entrevistas semiestruturadas4 com dois garimpeiros experientes do Povoado (os senhores “J. e E”.) e que ainda trabalham na atividade de extração de gemas. As entrevistas foram destinadas à obtenção de respostas livres, possibilitando obter dados ou informações mais ricas e variadas a respeito dos objetivos de investigação do estudo em questão.
Foram aplicados de vinte e cinco questionários5 no Povoado de
Taquaral a indivíduos de ambos os sexos e diferentes faixas etárias indivíduos estes que atuam ou já atuaram na atividade garimpeira. O objetivo dessa aplicação era de obter informações relacionadas aos mecanismos de extração de gemas e dos níveis de percepção e aceitabilidade dos riscos por parte destes trabalhadores em relação à própria saúde e exercício da profissão. Os questionários foram compostos por 4 perguntas fechadas (estruturadas) e semiestruturadas, caracterizadas por sua padronização, facilidade de análise e interpretação, questões estas direcionadas à descrição do perfil inicial dos garimpeiros. Os dados foram coletados, posteriormente tabulados e transformados em gráficos com o intuito de facilitar as análises quantitativas e qualitativas posteriores.
4 Segundo Manzini (1990/1991, p. 154) “a entrevista semiestruturada está focalizada em um assunto sobre o qual confeccionamos um roteiro com perguntas principais complementadas por outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista”.
5 Como não foi possível mensurar o universo dos trabalhadores que atuam nas oito lavras pesquisadas, adotou-se Amostragem Não Probabilística a Esmo (MATTAR, 1996) que estabelece a probabilidade de que um elemento da população pertença à amostra não podendo, da mesma forma, informar ou estimar o erro amostral.
Tendo em vista a grande mobilidade da população garimpeira em seu dia-a-dia, a aplicação dos questionários se deu a esmo, ora por visita à residência dos pesquisados, ora por encontros ocasionais durante as visitas nas áreas de lavra. Mattar (1996) afirma que esse procedimento obedece a uma lógica na qual os participantes da pesquisa são selecionados por acaso ou “acidentalmente”, sem qualquer critério estatístico ou probabilístico.
A fase da análise sistemática dos dados obtidos em campo permitiu, ainda que panoramicamente, um melhor entendimento dos problemas ambientais existentes nos garimpos visitados e das situações de risco observadas em relação à saúde e condições de trabalho da população garimpeira do povoado de Taquaral.
Processo de Extração de Gemas e Riscos Associados
Em função da ocorrência relativamente comum de minerais corados nas imediações do Povoado, o “espirito garimpeiro” está presente na maior parte da população lá residente, constituindo um traço cultural local transmitido de geração em geração. A maioria dos garimpeiros desloca-se a pé até o local de trabalho, sendo que alguns dispõem de moto ou bicicleta como transporte. Esse fácil acesso é explicado pela inúmera quantidade de lavras próximas às residências ou nas imediações de Taquaral (Bode, Lajedo, Jurema e Zá). Já em outras situadas em distâncias mais expressiva (Malva, Manguinha, Faixa e Piauí) exigem que o transporte seja feito por veículos, motocicletas ou mesmo a cavalo em alguns casos.

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