Sonhando Acordado
Água, muita água se desprendia das nuvens naquela noite quente e poluída de São Paulo. Estático e cabisbaixo sob o teto barulhento de um posto de gasolina, eu viajava em pensamentos profundos, acompanhando no reflexo de uma poça d`água suja, a mudança de cores de um sinaleiro. As cores se embaralhavam de tal forma com o arco-íris formado por resíduos de petróleo que acabei esquecendo por um instante que estava estressado. Estava totalmente exausto pelo ano inteiro de estudo e trabalho na pesada metrópole. Se há uma coisa que eu detesto de verdade, é cidade grande. Por mim, preferiria mil vezes ter nascido há cem anos, o que seria bem menos doloroso. Não sei por que cargas d’água me puseram no mundo bem na beirada do século vinte e um. Tem gente que acha isso uma dádiva de Deus, poder ver os maiores avanços industriais e tecnológicos que a humanidade já presenciou. Grande merda. Mais máquinas e menos amigos. Mais trabalho e menos tempo para pensarmos e fazermos coisas que vêm na telha. Fui então me aproximando vagarosamente até pisar na poça. O reflexo de minha imagem foi ficando assombroso. Podia ver, ao invés da imagem de um garoto saudável, um velho corcunda. Sentia que tinha um piano em cima de meus ombros e o meu maxilar parecia tão rígido que se alguém encaixasse um diamante entre meus dentes seria esmigalhado em fração de segundos. Minha vontade momentânea era de chupar com um canudo toda aquela água colorida pela goela abaixo para ver se a droga da minha vida dava uma guinada sei lá pra onde. Esse pensamento fez-me rir e com a risada caí verdadeiramente na real de que aquele turbilhão de carros e caminhões estava prestes a sumir de minha vista. Iria sair de viagem naquele momento. Mas mesmo assim não estava conseguindo relaxar. Não tinha escoado definitivamente do mundaréu de concreto da terceira maior cidade do planeta. Comecei a olhar de um lado para o outro, praguejando baixo, com medo de algum ladrão ou outra coisa qualquer. Foi quando ouvi a firme voz de Rodolfo ecoar pelo posto:
Nem acreditava que de um dia para o outro tinha mudado completamente os meus planos e ao invés de estar indo para o Guarujá novamente, rumava para o norte do Brasil. A vida tem dessas coisas, e com essas e outras indefinições é que fazem dela um delicioso mistério. Nunca se sabe o que virá amanhã e o que importa é deixar ser levado para cada surpresa. Afinal de contas já tinha ido o ano inteiro para o litoral paulista, e no final de ano é um martírio ainda maior - pegar trânsito e praias poluídas. Mas dessa vez quando soube que dois amigos trilhariam o asfalto cinzento até a Bahia entrei um tanto de penetra na viagem sem pensar muito no assunto. Garantido que para eles era até melhor. Mais uma cabeça para rachar os gastos do combustível, sem contar a companhia de mais um paulista estressado na trupe.
Porta-malas abarrotado, tanque do carro repleto de combustível e muita esperança em passar o Reveillón do ano de 2000 em pleno sossego no litoral baiano, precisamente em Itacaré.
Deixamos São Paulo na luxuosa caminhonete de Rodolfo num dia abafado e chuvoso de final de dezembro. Me lembro como se fosse hoje. Enquanto ia deitado folgadão no banco traseiro, Renato trabalhava de co-piloto na frente, pois já era madrugada e tudo o que mantivesse o motorista acordado e atento tinha imenso valor. Os dois puseram-se a conversar animadamente. Não paravam um só instante de falar a respeito de um garimpo em algum lugar da Bahia em que seus pais tinham a posse de uma mina. Enquanto tentava pegar no sono, estirado no espaçoso banco de couro, ouvia antenado o papo deles. Eles estavam com planos de prosseguir a viagem, após a passagem do ano, até tal garimpo para verificarem como as coisas estavam andando por lá. Rodolfo era o mais empolgado:
--- Renato, você deve estar sabendo que eles estão quase lá. O buraco já está com 70 metros de profundidade. Régis telefonou ontem para o meu pai e disse que já acharam indícios e isto significa que as esmeraldas brotarão muito em breve.
--- Eu sei Rodolfo. Estamos indo para a Bahia em boa hora. - respondeu o co-piloto, com a voz mais sonolenta do que a de um bêbado na sarjeta.
Minha cabeça girava como uma centrífuga. Não tinha noção de qual seria meu destino quando fossem para lá. Voltaria de avião ou de carona com algum idiota conhecido que encontrasse em Itacaré. Era isso o que imaginava. Tinha uma importante reunião de trabalho já agendada para o começo de janeiro e não podia largar de uma hora para outra o meu trabalho numa empresa de Internet bem conceituada de São Paulo. Mas ao mesmo tempo tinha muita vontade de conhecer um garimpo de verdade. Sempre foi um sonho de infância andar livremente pelas galerias de uma mina, seja lá de que minério fosse. Queria apenas sentir o prazer de procurar um tesouro. Mesmo não encontrando-o não iria ficar chateado. Só de estar próximo dele, sonhando todos os dias com ele, já seria uma satisfação. Pelo menos era o que achava. Esse dilema foi remexendo de tal forma minha mente que consegui ir arrastando na viagem somente um sono superficial.
Não bastou algumas horas de marcha para a educada e séria Polícia Rodoviária Federal do Rio de Janeiro mandar o nosso veículo encostar. Levantei a cabeça assustado achando que algo de pior havia acontecido. O relógio digital do carro já reluzia duas horas da manhã. Os meus dentes ainda estavam tão grudados de tensão que me escondi pensando que o policial poderia imaginar que eu estava rindo de sua cara. Foi apenas mais uma investigação corriqueira que os guardas fazem quando visualizam algo de anormal nos veículos. Isso estava ocorrendo somente devido ao chamariz que carregávamos no rack da caminhonete: uma prancha de surf. Culpa daquele paradigma besta de que todo surfista é maconheiro. Não passou de um susto. Eles revistaram bolsas e bolsos, cheiraram os dedos de todo mundo, mas ficou só nisso. Não demorou mais que 15 minutos para o paspalho do guarda carioca dizer com aquela feição ainda desconfiada: Boa viagem!
Depois de muita estrada esburacada e sem acostamento chegamos em Porto Seguro para descansarmos um pouco de uma viagem desgastante e interrupta. Assim como fez Pedro Álvares Cabral, encostamos nossa embarcação naquele local para o primeiro contato com o ambiente baiano. Quem disse que dá para ficar no hotel em uma noite quente de janeiro em Porto Seguro? Acabamos varando a noite em claro com direito a vários drinks de capeta em Arraial d´Ajuda!
Passada a ressaca dos viajantes prosseguimos para Itacaré para desfrutar alguns dias do final do ano em paz. Foi tudo uma maravilha, melhor do que esperávamos, pois não faltaram boas surpresas. Foi lá em Itacaré que ocorreram três fatos marcantes.
O primeiro foi o convite de um professor que nasceu lá, mas lecionava em São Paulo para minha sala de faculdade. Sempre no final de ano voltava para a casa para visitar os pais e irmãos que sobreviviam pescando no verde mar baiano. E eu sabia que iria encontrá-lo numa cidade praiana tão pequena como Itacaré e não deu outra. O convite foi para um banquete de bacana após a noitada do dia 29 de dezembro na qual nos encontramos no forró. Eram seis e vinte da manhã quando entramos em sua acanhada casa. Parece loucura mas a essa hora da manhã sua mãe costumava encostar a barriga no fogão. Não acreditei - era peixe ensopado, pirão, cuscuz, muita pimenta, farinha da boa... Tudo ao ar livre no verdejante quintal, ao som dos passarinhos que estavam acordando e arriscando suas primeiras melodias matinais. Tive ali a primeira real impressão de que o povo baiano é especial. Eles conseguem fazer sentirmos totalmente em casa naquela terrinha!
O segundo fato foi encontrar e passar o Reveillón com uma menina show de bola. Era uma paulista. Uma princesa sem frescuras. Muito diferente de uma paulista convencional. Não ligava em estar de chinelos, com o pé na lama, roupas desgastadas, sem chamar a atenção de todos. O que importava eram seus olhos azuis, uma tatuagem de um índio no braço e um sorriso eterno. Muita pena que estava acompanhada do namorado. Talvez ela tenha sentido algo, pois eu senti. E senti que ela sentiu. Nossos olhares se cruzavam quase a todo o momento em que estávamos próximos. Foi um lance meio diferente e tive que respeitá-la por estar com o namorado. Sei que a vida é curta. Mas sei também, que o mundo é pequeno. Um dia hei de encontrá-la novamente, solteira da silva, pela força do bondoso destino! Mas, também, se não encontrá-la... ou se encontrá-la acompanhada novamente, não será para o meu bico naquele momento. Destinos! - foi o que pensei.
O terceiro fato foi o mais maluco. Recebemos a fabulosa notícia de que as pedras verdes haviam sido encontradas pelos operários no dia 30 de dezembro. E a mina ficaria fechada apenas aguardando os meus dois amigos para o início da garimpagem. Em plena euforia Rodolfo me convidou para conhecer a mina, dizendo que eu tinha o perfeito perfil para atuar como fiscal. As poucas palavras que ouvi fizeram com que minha coluna cervical congelasse. No fundo, se já estava pensando em conhecer um garimpo, imaginem sabendo que a mina estaria produzindo esmeraldas! Num piscar de olhos, eu aceitei.
Bem quando já estava me divorciando dos últimos resquícios da sensação do stress voltei a macetar uns dentes aos outros. Nunca irei esquecer esse dia. Eram duas horas da tarde. Estávamos na areia quente da praia da Tiririca descansando a vista no imenso mar. Meninas bronzeadas passando pra lá e pra cá. E nós, cada qual com um copo de cerveja, a beliscar uma mega tigela de camarões, feito três Gremlins. Em cima da mesa branca de plástico também haviam algumas ferramentas necessárias para a ocasião: um maço de cigarro de Renato, meus óculos de natação e o telefone celular de Rodolfo. Bem quando Rodolfo espetou o camarão mais sarado da tigela o telefone rugiu. Brrrrrrr, brrrrrr... .
--- Rapaz, é meu pai. Será que ele está de olho gordo no meu camarão? Esse desgraçado nunca me liga! - disse Rodolfo, observando os números de casa no visor do aparelho.
Renato no mesmo instante cuspiu na areia uma casca de camarão e fez uma cara de apreensão olhando fixamente as reações do amigo.
--- Pai, você tá brincando, pai? Rapaz do céu! É lógico! Fique tranqüilo. E de resto, o Palmeiras contratou alguém?
Rodolfo mesmo antes de desligar ergueu uma das mãos e apontou para o céu. Renato desde que soube que a ligação era da casa de Rodolfo já presumia do que se tratava a conversa e acompanhando as boas reações de Rodolfo levantou da cadeira aos pinotes. Eu permaneci sentado simplesmente por que ainda não tinha sido convidado para ir para lá e principalmente por que minhas pernas tremiam demais. A comprovação da magnífica surpresa veio logo em seguida pelas palavras entusiasmadas de Rodolfo:
--- Hoje de manhã, deram de cara com muita esmeralda! Dispensaram os garimpeiros até o início do ano, trancafiaram a boca da mina e daremos linha para lá somente depois do Reveillon. Alguém quer um
Até a maldita hora de virar o ano o tempo passou inexoravelmente. Não conseguia mais beber cerveja e não me concentrava mais para acabar de ler um livro, mesmo sabendo que faltavam apenas vinte páginas. História nenhuma tinha mais graça. Só pensava na caça ao tesouro e matutava no que iria dizer para o meu chefe. O desgraçado acharia, indubitavelmente, que eu estava completamente louco ou embriagado. Tinha a plena convicção de que se me arrependesse mais tarde do garimpo seriam poucas as chances dele me aceitar novamente. Ficaria com a fama de desertor e, além disso, a minha total desatualização do mundo tecnológico, decretaria o meu fim naquela empresa.
Nunca vi dois dias demorarem tanto para passar. Nem mesmo a princesa sem frescuras fazia-me esquecer do novo desafio. Após a alucinante lentidão das horas colocávamos finalmente os pés na areia, na última noite do ano de 1999. Quando alguns rojões começaram a iluminar o céu da pacata praia a qual estávamos, ao redor de uma fogueira, em frente de um aconchegante bar improvisado por uma moçada mineira, eu, Rodolfo e Renato nos abraçamos e juntamos nossas cabeças, arrancando do fundo de nossas mentes um positive vibration para o incerto ano que estava por vir. Exatamente, quando os relógios batiam meia noite, pronunciei baixinho uma sábia frase de Raul Seixas que ele mesmo batizou-a de Prelúdio – (Raul Seixas)
"Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade"
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade"
Sabíamos que sem forças interiores unidas não seria nada fácil encarar os perigos de uma mina de esmeraldas, de um garimpo e principalmente da gentalha que o cerca. Ainda não tinha a menor idéia de como seria fiscalizar os garimpeiros para não roubarem nada. Chegaria lá como uma espécie de inimigo! Isso seria outro desafio, bem mais complicado do que apenas estar nesse trabalho de risco. Mas que empreitada perigosa! São essas aventuras da vida que filhos e netos irão gostar de ouvir, pensei orgulhoso.
a notícia melhor? Um brinde ao tesouro! Estão vendo aquela lanchinha branca ancorada ali? Então, aguardem!
Aqui sai um kilo de esmeralda boa por dia, uma média de 100 mil dólares, (na época).As outras minas vizinhas, estavam retirando menos,metade e eles queriam pegar a nossa mina na marra, ofereceram um milhão de dólares e não vendemos e então nos ameaçaram a vender ou o pior podia acontecer, mas isso é outra história, enfim, vendemos e saimos com uma boa grana, mas os INDIANOS ESTÃO NA NOSSA MINA, PELO MENOS ESTAMOS VIVOS.Garimpo é perigo constante.
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