sábado, 27 de fevereiro de 2016

Terra à vista

Terra à vista

Na tensão entre a objetividade do mundo e a subjetividade do conhecimento que dele temos, pelos filtros do conhecimento de nós mesmos seus viventes é que se constrói a realidade do mundo vivido, vivenciado, a viver.
O grito de alerta, de aviso e de conjuro do marinheiro ao anunciar para a tripulação da nau a promessa de terra firme ao alcance dos olhos e da esperança de repouso, em oposição à incerteza do movimento das águas de navegação, foi se distanciando das ilhas e dos continentes para abarcar, nos anos 1960, com os primeiros homens no espaço, todo o planeta a Terra à vista, agora de uma distância cósmica.
As fotos do Sputinik e a exclamação, por todos e para todos nós, de Iuri Gagarin A Terra é azul! consagrou naquele instante mesmo, uma percepção de nossa casa interestelar que, no ato, como que registrou um padrão de memória, que logo se impôs, e por eles reforçou-se, ao modo de ver o planeta também pelos estudos científicos.
Estava se constituindo o paradigma teórico não cartesiano que permite ver na Terra a sistematicidade das relações entre as partes vivas do planeta plantas, microorganismos, animais, homens inclusive e as suas partes não vivas rochas, oceanos, rios e atmosfera.
O manto azul e branco de águas e transpiração que, pela primeira vez, pudemos ver para sempre pelos olhos de Gagarin, envolvia a Terra como a um oásis de promessas e não como máscara de dissimulação e engano.
A tranqüilidade anunciada pelo grito do navegante não pode ser o disfarce que esconde a armadilha do monstro da degradação.
O modo de ver a Terra como um conjunto cujas partes que a integram somam mais do que a sua simples adição justaposta e que, nesse sentido, constituem uma totalidade dinâmica de relação de autonomia interdependente, isto é, a idéia do planeta como um sistema complexo de equilíbrio e mobilidade foi reforçando a percepção de que, num certo sentido, tudo é vivo no planeta e de que, no limite, não há, no seu corpo, ponto neutro que possa ser ferido sem conseqüências para a vida na Terra e na terra em que ela é vivida.
Será a transposição das águas do São Francisco uma dessas feridas? E as epidemias, as pandemias, os vírus mutantes e as mutações viróticas? E a recorrência dos tufões, dos furacões e dos terremotos? E a seca na Amazônia? E as mudanças climáticas? E as guerras? E os níveis de poluição da atmosfera? E os testes nucleares? E a fome no mundo, a violência, o rancor, o ódio, a destemperança?
Onde quer que a Terra seja ferida e adoeça, pela sistematicidade das relações dos elementos que a integram, todos sentiremos o golpe da agressão e padeceremos da doença que pensávamos longe e distante de nossas vidas.
Sabemos, porque aprendemos, que é preciso mudar profundamente os padrões de produção e consumo hoje vigentes, sob pena de ferirmos de morte o planeta que habitamos. Esse aprendizado se deu dentro dessa visão sistêmica da Terra e com ele veio também a compreensão, cada vez mais aguda e premente, de que os valores da cidadania e de seus legítimos direitos se faz acompanhar das obrigações que lhe são, na mesma proporção, complementares e legítimas e que ambos, direitos e obrigações cidadãs, são também, do ponto de vista das sociedades que povoam o planeta, elementos constitutivos das regras de composição e de funcionamento desse complexo sistema a que se pode chamar Terra Viva.

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