O Brasil possui uma das maiores biodiversidades de todo o planeta. Estima-se que o país possua cerca de 50 mil espécies vegetais, mais de 500 espécies de mamíferos, três mil de peixes, 1.600 de pássaros, 517 de anfíbios, 467 de répteis, 10 a 15 milhões de insetos, além de milhões de microorganismos. Tanta variedade e tantas possibilidades explicam o interesse estrangeiro. De acordo com estudos recentes, é muito provável que algumas dessas espécies guardem consigo o segredo para a cura de doenças que ainda hoje afligem a humanidade.
A exploração dessa riqueza, porém, poucas vezes é revertida em benefícios para o povo brasileiro. Várias plantas medicinais nativas foram patenteadas no exterior e, transformadas em medicamentos, são vendidas a preços altíssimos em nosso mercado. O cupuaçu, que teve até mesmo o nome patenteado por uma empresa japonesa, é só mais um exemplo. Mas como controlar o acesso à biodiversidade de forma que o país não seja prejudicado? E, principalmente, como criar leis que restrinjam o acesso a materiais biológicos sem dificultar ainda mais as pesquisas brasileiras?
Para debater sobre esse tema tão complexo, a MINAS FAZ CIÊNCIA convidou a bióloga Christiane Duarte da Encarnação, analista ambiental do Ibama, e a farmacêutica Maria das Graças Lins Brandão, especialista em produtos naturais e fitoterapia.
O que caracteriza a biopirataria? Qual a diferença para o tráfico?
Christiane – Os termos, às vezes, se confundem, mas tráfico e biopirataria têm significados diferentes, inclusive na interpretação ambiental. O tráfico é a coleta, a captura ou o transporte de material biológico, quer seja ele animal, vegetal, fúngico ou microbiano. Ou seja, é a retirada da natureza, o transporte de um local para outro, ou mesmo a saída desse material para fora do Brasil. E o que a gente chama de biopirataria é identificar, isolar ou utilizar informação de origem genética para uso na bioprospecção. O que é isso? A utilização da parte genética, dos princípios ativos, de todo esse material biológico. E aí ele pode ser retirado tanto da natureza como de coleções. Por exemplo, hoje, com um pedacinho de pele de um animal que está numa coleção de um museu, você pode fazer mil coisas. Com um pedaço de pele, um pedacinho de folha, uma semente... O transporte de material genético hoje é muito fácil. Você pega uma folha e põe no bolso, engole uma semente e transporta para onde quiser. A biopirataria, então, é essa parte com enfoque genético e no tráfico tratamos do animal, da planta em si. Posteriormente, também é possível ter acesso ao material genético desse animal ou planta, então o tráfico é mais perigoso ainda. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) atua nas duas áreas.
Como é a situação no Brasil hoje? Os prejuízos são grandes?
Christiane – No caso da biopirataria, a flora é a mais atingida devido à procura de princípios ativos para remédios, cosméticos, etc. Com relação à fauna, que é minha área, ela é mais visada para o tráfico. O Ibama tem acesso a trabalhos que mostram as rotas do tráfico, de onde vem e para onde vai, quais os animais mais procurados, seu preço médio no mercado. Isso nos ajuda a fazer campanhas preventivas para evitar a retirada desses animais da natureza. Existem relatórios que salientam que, depois de drogas e armas, o tráfico de animais é o comércio que mais rende dividendos para os traficantes e que mais dá prejuízos para o Brasil. A situação está mapeada, mas o combate é difícil em função da grande biodiversidade que nós temos, da fronteira imensa e do tamanho do país. O Brasil é atraente demais. Nós temos a primeira biodiversidade do mundo, muitas riquezas, e isso atrai gente de todos os países.
E a flora brasileira? Ela também desperta a cobiça dos estrangeiros?
Graça – A flora brasileira, principalmente as plantas medicinais, sempre despertou o interesse do estrangeiro, isso desde que o Brasil foi descoberto. Existem relatos históricos datados de 1560 e 1587 em que os portugueses já descreviam o uso de várias espécies pelos índios. Isto significa que são 500 anos de interesse estrangeiro na nossa flora. O problema hoje é que essa situação piorou muito. Piorou porque houve um grande desenvolvimento na área de biotecnologia. Agora, por exemplo, não é mais necessário coletar quilos de uma planta para se desenvolver um novo medicamento. Isto é possível a partir de uma folhinha ou uma semente, igual a Christiane explicou. Além disso, a facilidade de se registrar patentes fez com que o interesse estrangeiro na nossa flora aumentasse. Infelizmente, o Brasil foi muito pressionado na época da aprovação da Lei de Patentes, que aconteceu durante o mandato do ex-presidente Fernando Henrique. Eu, particularmente, acho que a implantação dessa Lei naquela época foi ruim. Era necessário segurar mais um pouco, pois não conseguimos competir com outros países. Vivemos em um mundo globalizado, essa questão de patenteamento é muito fácil para os países desenvolvidos, mas para nós ainda não. E o que acontece é que as plantas brasileiras estão sendo coletadas, estudadas no estrangeiro e lá patenteadas. Espécies usadas pelos índios na época do descobrimento, que fazem parte da nossa tradição, da nossa cultura, estão patenteadas lá fora.
Christiane – Tem o caso do cupuaçu, né?
Graça – O caso do cupuaçu é a vitrine atual. É o grande escândalo que caiu na mídia e que está na boca de todo mundo. Eu acho que a divulgação desse tipo de problema junto ao grande público é muito bom. Hoje, esses assuntos relacionados à biopirataria já são muito discutidos em todos os meios. Você vai a qualquer lugar e escuta as pessoas dizendo que “o estrangeiro está roubando tudo da gente”. Isso é o lado bom, as pessoas estão alertas. Mas a situação é triste, muito dramática, eu fico com dó do Ibama porque realmente é muito complicado.
Debate na redação da Minas Faz Ciência
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Além disso, durante muito tempo, deixou-se de lado esse conhecimento tradicional do povo...
Graça – Mas isso aconteceu por pressão externa. A China e a Índia, por exemplo, não perderam a tradição de uso das suas plantas medicinais. Práticas da medicina tradicional chinesa, que contam com mais de cinco mil anos, são exportadas para vários países. Se nós não tivéssemos perdido a nossa tradição do uso das plantas medicinais nativas do Brasil, provavelmente estaríamos exportando a nossa medicina, nossa cultura. E não sofrendo com a biopirataria. A perda desse conhecimento tradicional aconteceu principalmente devido à entrada das indústrias farmacêuticas estrangeiras por volta de 1950. Elas vieram, trouxeram os medicamentos industrializados e tomaram conta do mercado, que dominam até hoje. Felizmente, hoje em dia já existe um maior interesse da população em valorizar as plantas medicinais.
Christiane – Eu estava lendo recentemente em uma revista, parece que até a palavra açaí foi patenteada pelos japoneses, uma palavra nossa, de origem indígena. É impressionante. Quanto à legislação brasileira, nós temos um Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), que tem a participação de vários ministérios e da sociedade e é coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente. O CGEN começou a dar as linhas iniciais para se ordenar isso e legisla também sobre esses conhecimentos tradicionais das populações, para que elas não venham a perder. Tudo isso advindo da Convenção da Diversidade Biológica, assinada pelo país na época da Eco-92. Daí para cá foram feitas essas legislações para coordenar isso, inclusive internacionalmente. Vários países fazem parte dessa Convenção. Mas uma coisa importante que eu acho é que o Brasil não pode, em função dessa saída desordenada, impedir a pesquisa no país. Isso está acontecendo com os transgênicos, eles ficam segurando demais, os outros países vão tomando conta. Então, é abrir a pesquisa dentro do Brasil e tentar fechar as portas para a biopirataria e o tráfico.
Graça – Mas não é isso que tem acontecido, pesquisadores brasileiros também têm sido impedidos de coletar material botânico. Hoje, é necessário pedir autorização para o Ibama ou para o Instituto Estadual de Florestas (IEF). Não acho que seja ruim, mas é um procedimento muito burocrático. É preciso melhorar. Outra coisa importantíssima: para que possamos realmente conhecer e ter domínio sobre as nossas plantas, são necessários recursos para pesquisas. Não adianta ficar fechando as portas e não deixar ninguém fazer nada. Aí vão dominar aqueles que destroem as florestas, como as madeireiras da Amazônia. Nesse caso, o prejuízo é para a humanidade, que vai ficar sem conhecer o valor exato da flora. Então a situação é bem mais complexa. Tem de haver recursos maciços para a pesquisa e para a formação de pessoal. Nós, que trabalhamos com plantas medicinais, somos pouquíssimos e não damos conta dessa riqueza toda. Antropólogo que trabalha com plantas, com indígenas, não tem quase nenhum. Praticamente nenhum interessado em etnomedicina no Brasil. É preciso haver investimento e é isso que a gente cobra.
E o caso do cupuaçu?
Graça – Em relação ao cupuaçu existem outras questões. O que aconteceu é que uma empresa japonesa registrou o uso da planta e até o seu nome. Parece que isto foi descoberto por uma ONG sediada no Acre antes deles obterem o registro da patente. Quando o registro já foi obtido, é preciso entrar com um processo pedindo a reversão daquela patente. Um grande exemplo de caso de reversão de patente é o que aconteceu na Índia. Eles têm uma planta chamada turmeric, um tipo de açafrão. A medicina tradicional da Índia faz uso dessa planta há cerca de cinco mil anos como antiinflamatório. Pesquisadores estrangeiros levaram a planta para os EUA, estudaram, confirmaram a ação antiinflamatória e patentearam os extratos. Nesse caso, o governo indiano conseguiu reverter a patente alegando a impossibilidade de se patentear um produto desenvolvido a partir da cultura do povo. Existem, portanto, chances de mudar o quadro atual, especialmente se baseado no precedente da Índia. Mas, já que isso é um debate, quero colocar outra questão. No caso do cupuaçu, os japoneses alegam que descobriram utilidade para o caroço da fruta que, no Brasil, era descartado. A empresa utiliza o óleo extraído da semente. Nesse caso, como ficamos? O fato da planta ser nativa do Brasil já impede o seu patenteamento no estrangeiro? Como o Ibama resolve isso? Talvez a gente chegue à conclusão que sim, é brasileiro e outras pessoas e empresas não podem utilizar. Mas o café também não é brasileiro. A laranja não é nativa do Brasil, nem o gengibre. Vamos ter que pagar a China pelo gengibre que a gente usa?
Christiane – Isso nós temos de tratar a nível internacional. Por exemplo, batata, tomate, tudo isso é originário da Cordilheira dos Andes. É um produto latino-americano, quer dizer, a Inglaterra vai nos pagar milhões, porque eles não passam sem batata.
Os italianos sem tomate...
Christiane – Já pensou? Isso tudo é daqui. Essas são discussões muito sérias que só vão ter uma solução justa e eqüitativa se houver acordos internacionais. Que haja realmente estudos, que é justamente o que prevê a convenção da biodiversidade, e que haja uma divisão justa e eqüitativa da utilização e dos royalties, tudo que advém da utilização daquilo ali.
Graça – Mas você acredita que isso seja possível? Você acha que chegará a um ponto em que a indústria japonesa, por exemplo, vai admitir que isso ou aquilo é realmente do Brasil?
Christiane – Olha, eu acho que o caminho tem de ser esse. Não sei se a gente vai conseguir, mas o caminho é por acordos internacionais. Tem um artigo muito interessante do Cristóvam Buarque, ex-ministro da Educação, de quando ele estava em Nova York. Um jornalista falou com ele que a Amazônia tinha de ser internacionalizada e perguntou como seria sua posição como humanista e como brasileiro. Ele falou que como humanista até concordaria, desde que a riqueza dos EUA também fosse internacionalizada, a fome, o petróleo... que todo mundo cuidasse das coisas boas, mas também das ruins. E o caminho realmente é esse. Por que os EUA não assinam o Tratado de Kyoto? É como se eles estivessem fora do planeta. Existem acordos internacionais, tratados e convenções que buscam a consciência de que tudo tem de ser de todos. Enquanto isso não acontecer, realmente vai ser cada um puxando as coisas para o seu lado. A tendência é que esses tratados internacionais tragam justiça, uma divisão mais eqüitativa dos ganhos e dos prejuízos.
Cristiane Duarte da Encarnação, bióloga do Ibama
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Graça – Mas mesmo com um tratado será que a biopirataria diminui?
Christiane – Não, a biopirataria eu acho que é uma coisa de fiscalização, de proibições, enquanto não existirem esses convênios. Depois que houver um convênio que estabeleça que um americano pode vir aqui, pegar um princípio ativo, pesquisar e descobrir, mas que a população tem direito aos royalties, não vai haver problema. Isso pode ser um acordo, a mesma divisão, o mesmo direito aos créditos não só financeiros, mas de descobrimentos. Então há acordos a serem feitos, não pode acontecer deles virem aqui, destrincharem tudo e pronto, tem dono, nós apenas recebemos o medicamento a preço de ouro feito com um produto que já era daqui.
Graça – Mas já é assim... e olha, existem duas coisas acontecendo hoje na ciência que tornam isso irrelevante. Por exemplo, podemos ter um acordo com uma empresa estrangeira sobre os royalties de determinado princípio ativo. Mas ela pode modificar estruturas químicas dessa substância, criando uma nova. Nesse caso, a invenção é dela. Outra área é o desenvolvimento de novos cultivares das plantas, ou seja, uma nova planta diferente da existente na natureza. Essa é patenteável. Tomara que os acordos funcionem, mas...
Christiane – Eu acho que com a biotecnologia avançada do jeito que está, se a gente não partir para os acordos a gente não vai ter uma solução para isso.
Graça – O acordo segura aqui essa planta, mas não impede que dessa mesma planta seja feito um medicamento...
Christiane – Mas isso tem de estar previsto...
Graça – Mas não tem jeito, isso é complicado demais, porque aí é a criação do pesquisador. Ele pegou a molécula, modificou, é criação dele. Não é mais da natureza ou do país, é criação dele.
E qual seria a melhor solução?
Graça – Primeira coisa: opinião pública. É a própria mídia divulgando o problema da biopirataria. As pessoas devem saber que plantas, florestas, não são para serem derrubadas. Ainda é comum ouvir o pessoal do interior dizer “vou limpar aquela área”, como se mata fosse sujeira. Primeiro é isso, desenvolver a consciência ecológica com relação às plantas medicinais, valorizando também as tradições. Chamar a atenção para esses fatos é muito importante porque a população fica alerta e toma mais cuidado antes de contar os seus segredos para os estrangeiros. Não sei como está a situação na Amazônia, porque lá ainda tem muita gente isolada, mas eu acho que deve estar melhorando.
Christiane – É, os pesquisadores estrangeiros têm sido punidos por atividades ilegais. Há 20 anos, estrangeiros vindos principalmente dos EUA faziam o que queriam no Brasil porque não existia pessoal técnico especializado nessa área de meio ambiente. E essa tradição de receber bem estrangeiros, que é uma tradição nossa, eu acho que foi mal utilizada em muitos casos. Isso está sendo olhado agora com um pouco mais de cuidado.
Graça – Mas também é preciso ter cuidado para não entrarmos em uma paranóia. Pesquisadores bons, que trabalham em conjunto com instituições brasileiras, estão receosos de vir ao Brasil porque têm medo de ser presos! E não é possível estudar a nossa flora sem alguma colaboração externa. É preciso lembrar também que, muitas vezes, os próprios brasileiros vendem as plantas, não é só o estrangeiro que é o vilão.
Christiane – Não, de jeito nenhum, mas eles têm de cumprir a legislação. Por exemplo, há uma resistência muito grande dos estrangeiros que chegam aqui através de convênios com instituições científicas brasileiras em atender as exigências para fazer remessa de material para o exterior. Você estava falando da burocracia, o Ibama não tem, o que a gente exige, por exemplo, é o projeto de pesquisa para analisar e dar a licença. Então, o mesmo projeto solicitado por uma instituição de financiamento é pedido pelo Ibama. A pessoa não precisa fazer nada mais do que já fez. Baseado nisso é emitida a licença de um mês, um ano; se precisar, renova.
Graça – Voltando à pergunta, a opinião pública é fundamental. Claro que a fiscalização ajuda, mas muita coisa mudou porque o povo está atento, está aprendendo a valorizar mais o que é da terra. E ninguém valoriza uma coisa que não conhece.
Christiane – É a participação da sociedade.
Graça – Segunda coisa para reverter esse quadro é o investimento em pesquisa. A história da Farmacopéia brasileira ilustra bem a situação das plantas medicinais nativas. Farmacopéias são livros oficiais em que são descritos os medicamentos autorizados a serem comercializados. Vários países têm suas farmacopéias como os EUA, o Japão, Inglaterra, etc. A Farmacopéia brasileira tem quatro edições: 1929, 1959, 1977 e agora a 4.ª edição que vem sendo editada desde o ano 2000. Em 1929, a maior parte dos medicamentos utilizados era de base natural. Essa primeira edição tem umas 700 monografias (descrições de drogas vegetais). Dessas, cerca de 200 são para plantas nativas do Brasil, usadas na medicina tradicional da época. O resto é planta exótica, os portugueses viajavam muito e introduziram aqui espécies de outros continentes. Em 1959, foi feita a segunda edição. Esse é o período pós-guerra, e durante a Segunda Guerra Mundial houve um avanço enorme da síntese orgânica, que levou ao desenvolvimento de vários medicamentos. Cerca de 80% dos medicamentos que encontramos nas farmácias hoje são obtidos a partir da síntese. Ao invés de 700 monografias, essa edição traz apenas 200 e, dessas, cerca de 40 são plantas nativas do Brasil.
Por que tiraram as outras plantas?
Graça – Ninguém sabe, talvez porque os medicamentos industrializados eram mais eficazes e fáceis de administrar. Em 1977, o país já havia se industrializado. Em Minas Gerais houve muitos progressos no campo da mineração, da siderurgia, e as florestas foram destruídas, o desinteresse da população pelas plantas medicinais cresceu – isso virou assunto de gente “atrasada”. Esta terceira edição da Farmacopéia trouxe 23 monografias de plantas medicinais, sendo que apenas quatro eram brasileiras: o guaraná, o jaborandi, o maracujá e a ipecacuanha. As outras monografias são para plantas importadas. A quarta edição que está sendo preparada já tem a preocupação de incluir dados sobre plantas nativas do Brasil. Além da ipecacuanha e do jaborandi, ela traz monografias para o guaraná e para a espinheira-santa. A falta de monografias de plantas nativas está ligada à falta de estudos científicos sobre tais espécies. Então, outra coisa necessária para proteger a nossa flora é um inventário dessas plantas. A primeira Farmacopéia foi editada no governo do presidente Arthur Bernardes, o uso dessas plantas já foi oficializado no Brasil. Por isso, elas jamais poderiam ter sido patenteadas. Muitas plantas precisam ainda ser estudadas e descobertas.
Christiane – Redescobertas, né?
Graça – Não, o princípio ativo tem de ser descoberto. A planta existe e o povo usa, nunca deixou de usar, mas o princípio ativo ninguém conhece. Esse é o investimento em pesquisa. Então, além da opinião pública, do investimento em pesquisa e da legislação, óbvio, é bom lembrar que nós não estamos começando do zero. Não precisa entrevistar um índio para saber como ele usa determinada planta, existem muitos dados que podem dar suporte às pesquisas e à legislação. No caso da Farmacopéia brasileira, o governo já endossou que essas plantas brasileiras são úteis como medicamento, está aqui, registrado. Mas existem outras plantas que não estão descritas lá, como o açaí, o cupuaçu, a espinheira-santa. A espinheira-santa é outro grande exemplo para nós. Ela foi patenteada pelos japoneses em 98. Essa planta é usada contra gastrite e os estudos que revelaram, confirmaram essa ação, foram todos feitos em São Paulo por um pesquisador da Escola Paulista de Medicina. Só que, naquela época, o que a gente fazia? Publicava, publicava tudo. Ele publicou, os japoneses repetiram os estudos lá, modificaram um pouco e patentearam o produto. Na patente é descrito que se trata de uma invenção e que “essa é uma planta usada na medicina popular do Brasil e conhecida como remédio específico contra a úlcera gástrica”.
Maria das Graças Lins Brandão, pesquisadora da UFMG
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Christiane – Uma coisa boa hoje é que a biodiversidade tem recebido mais atenção do povo. De uma hora para outra todo mundo começou a falar em biodiversidade, existem estudos, ONGs que mostram o que é isso...
Parece que a Eco-92 foi um marco nessa questão da biodiversidade, foram aí que surgiram as primeiras leis, correto?
Christiane – Sim, as primeiras convenções, as mais importantes que existem hoje, surgiram naquele evento. E o povo tem de dar crédito à nossa biodiversidade. Assim como acontece com a flora, na fauna é a mesma coisa. Hoje, se você vai aos restaurantes mais requintados do Rio de Janeiro ou de São Paulo, você pode comer uma carne do pato Cairina moschata, um pato silvestre nosso. Mas o que aconteceu? Na década de 40, os franceses levaram esse pato para a França e, mais como um trabalho zootécnico, sem nada de transgenia, eles transformaram a carne, que é escura e por isso pouco atrativa, em carne branca. Tinha muita gordura no peito, que é a parte que se come mais, e eles diminuíram isso em 40%. E agora você tem uma nova modalidade daquele mesmo pato, que era selvagem, e a gente tem de importar as matrizes e a carne a preço de ouro, de uma espécie brasileira. Da mesma forma, a gente está pagando preço de ouro por ovos e filhotes de avestruz, sendo que nós temos a ema, que é similar, tem as mesmas características em termos de carne, e que não é pesquisada como o avestruz. Por que a gente não investe em pesquisa dos nossos animais? Agora, de uns 10, 15 anos para cá, vários pesquisadores têm trabalhado animais da nossa fauna para produção comercial, não só de carne, mas óleo, pele, etc. Já temos criadores de jacaré, capivara, paca, caititu, entre outros.
Os pesquisadores estão mais conscientes de que devem proteger suas descobertas?
Graça – É muito difícil saber o que é patenteável e o que é publicável. Por exemplo, eu, particularmente, gostaria de publicar tudo, acho que a ciência é feita para a humanidade, para as pessoas tirarem proveito. Mas isso não pode mais ser feito. Ao mesmo tempo em que as universidades e os órgãos de fomento cobram publicações, existe essa questão da proteção dos resultados. A orientação é que primeiro devemos depositar a patente para somente depois publicar. Mas fazer a patente é ainda difícil e demorado no Brasil. Hoje, os pesquisadores estão atentos a essa questão da patente, existem os escritórios, as próprias instituições estão oferecendo assessoria para desenvolver a patente, a FAPEMIG tem o dela, a UFMG também, mas tudo ainda é muito lento perto da quantidade de resultados que existem e que precisam ser publicados.
Quais outras plantas genuinamente brasileiras foram patenteadas lá fora?
Graça – A copaíba é um exemplo. Essa é uma planta que existia também na Mata Atlântica mas hoje é encontrada somente na Amazônia. Ela produz um bálsamo que é altamente antiinflamatório. Relatos históricos de 1560 revelam que os índios curavam as feridas de flechadas com bálsamo de copaíba. O produto foi patenteado no estrangeiro. Essa é outra questão interessante. Toneladas de bálsamo de copaíba são exportadas anualmente pelo Brasil e nada pode impedir que, no estrangeiro, este material seja estudado e patenteado. Acho que isso não caracteriza uma biopirataria, o produto é exportado. Outro problema são os mercados e feiras populares. Existem pesquisadores estrangeiros que simplesmente compram o material e o estudam nos seus laboratórios. O material não foi adquirido? Por que ele não pode estudá-lo?
Christiane – Eu achei interessante isso que eu li, um fóssil foi levado para fora do país e foi descoberta nele uma planta de 130 milhões de anos. Só que não fala que isso foi levado ilegalmente do Chapadão do Araripe, no Ceará. Quer dizer, são peças de material biológico que eles levam...
Graça – O ipê-roxo é outro exemplo. Sua casca é uma das mais contrabandeadas, são toneladas que saem do país anualmente. Existem várias patentes internacionais com os produtos da planta, todas voltadas para o tratamento de câncer. Esses exemplos demonstram que é necessário, de fato, conter a saída de material biológico do país, mas a questão é cheia de nuances, e somos um país que ainda está aprendendo a ser país.
Christiane – Com certeza, estamos aprendendo a valorizar o Brasil. Até pouco tempo a gente não via esse tanto de bandeira brasileira, a gente não tinha orgulho de empunhar a bandeira. Para a cultura isso é muito importante.
Graça – Isso que a gente está falando sobre a população valorizar as plantas, eu acho que não é só a população em geral, não. A maior parte dos profissionais da área de saúde também não valoriza. Outro dia, estive em um programa de televisão junto com alguns médicos e eles nem queriam ouvir falar sobre as plantas e raízes que a população, especialmente a mais carente, utiliza. Eles acabaram comigo e com as plantas. Muitas vezes a gente fala do povo enquanto os próprios profissionais de saúde não valorizam o que é do país.
Christiane – A própria formação do profissional já é deficiente. Existem algumas escolas, por exemplo, cuja orientação é contra a pesquisa, acham que pesquisador vive de órgãos governamentais, recebendo dinheiro. Esse tipo de coisa tem de ser incluído na formação. Hoje, o Ibama tem um centro que cuida da questão das plantas medicinais e ornamentais. O enfoque, até então, eram as plantas madeiráveis, mas tem de abrir porque esse é um campo importantíssimo do patrimônio genético brasileiro. O centro dá apoio, inclusive, ao fomento do estudo dessas plantas.
Graça – Queria falar também do captopril que é, hoje, o anti-hipertensivo mais vendido no mundo. Ele foi obtido do veneno da jararaca brasileira. Na hora em que a cobra pica, dá uma hipotensão, a pressão cai. A partir dessa observação, o remédio foi desenvolvido. E é aquela história: eles ficaram com o remédio e a gente ficou com as jararacas. Esse é só mais um exemplo, existem vários outros casos assim. É preciso que o brasileiro valorize a nossa biodiversidade, e o país deveria colocar isso como prioridade não só tentando organizar, mas fomentando as pesquisas.
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