História e embates na Serra Pelada
Foto: Reprodução
Personagem do garimpo na região fala sobre massacres, traição do governo e como era o dia-dia da massa de homens na mineração
de Brasília (DF)
A Serra Pelada, a maior cava humana de garimpo que funcionou na década de 1980 no sul do Pará resguarda uma série de personagens que perambulam pelo Brasil afora reivindicando o direito dos garimpeiros.
Na semana passada, a reportagem doBrasil de Fato acompanhou um desses homens, Etevaldo Arantes, em Brasília (DF) numa Audiência Pública convocada pelo Senador João Capiberibe para debater a temática da mineração no país. “Hoje temos a expectativa de quebrar esse contrato do governo com a Colossus e tirar ela da Serra Pelada. Temos um projeto, que seria para socializar a riqueza que tem nesse subsolo da região para todos os trabalhadores.”, diz Arantes.
Desde os dezesseis anos na Serra Pelada o garimpeiro conta na entrevista abaixo os principais embates envolvendo a região de garimpo, governo e trabalhadores da mineração. O sentimento atual é de traição: “A gente percebe que é uma jogada exclusiva do Ministério de Minas e Energia através do Lobão para tomarem a riqueza mineral da Serra Pelada”.
Brasil de Fato – Qual a sua trajetória até chegar a Serra Pelada?
Etevaldo Arantes – Minha família veio nos anos de 1970 do Espírito Santo para Marabá(PA) na busca de melhores condições de vida. Quando surge o garimpo de Serra Pelada, eu tinha apenas 16 anos. Com as regras impostas pelo major Sebastião Curió, onde menores eram proibidos de acessar a cava humana, eu me aventurei, até completar a maioridade, 13 vezes fazendo o percurso mata adentro para entrar clandestinamente. Lá dentro eu nunca fui pego pela polícia. Eu só saia quando dava saudade da família, por isso ia e voltava direto. Meu primeiro documento não foi o registro de indenidade, mas sim a carteirinha de garimpeiro.
Como era a rotina dos garimpeiros na Serra Pelada?
Como Marabá era área de segurança nacional, tinha que obrigatoriamente hastear a bandeira do Brasil às oito horas da manhã e ouvir o sermão do dia proclamado por Curió. Às dezoito horas o gesto se repetia. Normalmente o garimpo começava às cinco da manhã, quando clareava. A organização do trabalho era controlada pelo Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e existia uma divisão territorial dentro da cava humana em barrancos, que ocupavam em média dez trabalhadores. 50% do barranco pertencia aos trabalhadores, que eram chamados de meia praça, ou meeiros, e os outros 50% era do proprietário do barranco ou do fornecedor, aquele que financiava a atividade desses homens. Para vir à Serra Pelada tinha que ter autorização dada pelo Curió, quem não tinha essa autorização se arriscava vindo pela selva e furava as barreiras da polícia, por isso o garimpeiro que não tinha documento de autorização era chamado de furão. Quando esses furões eram descobertos, a polícia os pegavam somente com a roupa do corpo e soltava em outros municípios próximos.
Alcoolismo, prostituição e violência foram marcas da Serra Pelada?
A cachaça era o produto mais inflacionado na Serra Pelada. Como era proibida bebida e tudo que é proibido é mais desejado. Lá dentro tinham os contrabandistas de cachaça, que era trazida de Curionópolis e comprada com ouro. Quando a polícia pegava os garimpeiros com cachaça eles quebravam o litro na cabeça do indivíduo, botavam eles para desfi lar na rua com cabelo cortado só de um lado ou amarravam no palanque e os apresentavam todos os dias às seis da tarde como bêbados e imprestáveis. Já os assassinatos praticamente não existiam dentro do garimpo. Todas as brigas se resolviam fora de Serra Pelada, em Marabá, Curionópolis ou Parauapebas. No auge da exploração era proibido mulher e a prostituição se dava fora, nas cidades próximas. Agora, vale lembrar que o atual modelo de exploração de minério no Brasil acentua ainda mais a exploração sexual de meninas. Aonde as mineradoras chegam prolifera a prostituição, porque forma uma casta assalariada numa comunidade pobre, onde as meninas não têm um horizonte de vida favorável - sem emprego, geram a prostituição como saída de renda. Além disso, o tráfi co de drogas cresce a níveis exorbitantes.
Você viveu toda a história de Serra Pelada, do apogeu ao colapso, quais foram os maiores embates?
Nossa historia desde o princípio foi marcada por muita luta. Para começar, em 1982 o governo federal quis fechar o garimpo da Serra Pelada, e o povo se rebelou saindo para Parauapebas, Curionópolis e destruíram o cartório dessas cidades, mantiveram preso por alguns dias diretores da estatal Vale e um major da polícia. E depois dessa manifestação conseguimos retomar a região para garimpar. Aí, desde então o governo autorizava um ano e depois tinha mais uma briga para conseguir mais um ano de autorização, e foi seguindo dessa forma. Até que em dezembro de 1987, os garimpeiros foram fazer um protesto na ponte rodoferroviária de Marabá. Pararam o trem da Vale e a pista por três dias. A Polícia Militar e o Exército interviram e fizeram uma ação extremamente violenta, chegaram atirando por cima de helicóptero, por baixo com os soldados nos barcos, além de cercarem a ponte por terra. Das dez mil pessoas que estavam lá, ofi cialmente só se contabiliza uma morte, mas no nosso registro verificamos que morreram 105 pessoas. Esses garimpeiros assassinados pelo Estado ficaram como desaparecidos e até hoje nós brigamos para identifi car onde foram jogados os mortos. A única informação que tivemos é que todos foram enterrados juntos, numa vala só. Hoje, nosso inimigo palpável é a canadense Colossus que está levando todo nosso ouro embora. Os garimpeiros não podem passar nem em frente aos portões da mina, porque outro massacre poderá acontecer.
O que Serra Pelada significou à região amazônica?
Serra pelada acabou ficando como um bloco de resistência, que hoje faz esse enfrentamento ao grande capital e se tornou um símbolo histórico pela quantidade de homens que por lá passaram. Porém, a Serra Pelada sempre serviu de interesse para promoção de indivíduos na política brasileira. Ademais, o país nos anos 1980 passava por grande dificuldade pela falta de emprego e o garimpo foi a grande saída para situação. E, por fim, penso que o próprio sistema militar, que pregava na época terras sem homem para homens sem terra, utilizou o garimpo para povoar a Amazônia brasileira.
Ainda se garimpa manualmente na Serra Pelada?
Com a mesma massa de homens não, mas clandestinamente muitos garimpeiros ainda tiram seu sustento de outros lugares da Serra Pelada.
Qual a principal dificuldade de organizar os garimpeiros para reivindicação de seus direitos?
Os garimpeiros são um grupo de nômades e quase sempre têm pouco conhecimento cultural ou pedagógico, tornando-se presas fáceis para serem enganados. Outra dificuldade de unir a classe é a dispersão desses sujeitos pelo mundo, pois tem garimpeiro empresário, pastor, padre, policial, fazendeiro. Ai você chama um cara desses para ficar debaixo da lona, participar do acampamento, ele não vem. Então como o grupo social da categoria é amplo e diversificado dificilmente você vai conseguir trazer para mesma luta.
Como tem sido a relação da população de Serra Pelada com a mineradora canadense?
A pior possível. Eles têm proibido os trabalhadores de plantarem em seus próprios lotes, destroem casas e utilizam da violência da escolta privada para espalhar o medo. Porém, muitas pessoas tem visto com bons olhos esse empreendimento, porque Serra Pelada é um lugar que não tem emprego e os postos de trabalho são basicamente na prefeitura, nas cooperativas e agora na empresa. E nossa juventude apenas preparada para ser empregada, para servire, quando encontra um patrão, obviamente fica satisfeita, empolgada mesmo com a chance de conseguir uma vaga na Colossus, seja mínima. Ou seja, eles tiraram nosso sustento e nesse modelo de exploração mineral só tem lugar para os profissionais do Rio de Janeiro, Minas Gerais e de fora do país. Se propaga muito para comunidade, mas nada de efetivo.
Quanto a Colossus já tirou de ouro nessa retomada da Serra Pelada?
Não se sabe quanto até agora a Colossus extraiu de ouro, pois não há nenhum acompanhamento por parte do governo. Nossa avaliação é a seguinte: nos anos 1980 nós trabalhávamos em média de quatro meses por ano, o restante era um período de inverno constante com muita chuva. Com pá e picareta nós tiramos 43 mil quilos de ouro em seis anos. O governo na época diz que o mesmo total foi contrabandeado. Na montoeira do rejeito, como o trabalho era feito totalmente artesanal e sem produtos químicos, calcula-se que tenha sido jogada uma média de 20 a 30% do ouro fora. Nesse rejeito, depois de um tempo achavam pepitas de ouro de meio quilo, de dois quilos trezentas gramas. Ou seja, sem instrumentos mecânicos tiramos mais de 100 mil quilos de ouro. Dá para acreditar que a Colossus em seis anos não tirou nada de um túnel de dois quilômetros com 350 metros de profundidade, utilizando de tecnologia avançada? Eles dizem que não acharam nada!
Os garimpeiros se sentem traídos pelo governo brasileiro?
Claro! Essa exploração está acontecendo há 33 anos, se o Estado tivesse interesse de intervir nessa mina de maneira mecanizada, era natural que ao longo desses anos preparasse a população de garimpeiros para trabalhar de outra forma, que não mais manual. A gente percebe que é uma jogada exclusiva do Ministério de Minas e Energia através do Lobão para tomarem a riqueza mineral da Serra Pelada. Eles só liberaram o alvará de pesquisa quando o esquema com a Colossus já estava pronto para a exploração da mina.
E o futuro dos garimpeiros de Serra Pelada?
Difícil responder qual o nosso futuro. A princípio, pela implantação do projeto da mineradora, que já domina muita coisa. Mas hoje temos a expectativa de quebrar esse contrato do governo com a Colossus e tirar ela da Serra Pelada. Temos um projeto, que seria para socializar a riqueza que tem nesse subsolo da região para todos os trabalhadores.
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