segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O escafandrista e os diamantes

Já era tarde da noite, porém a aglomeração às margens do Rio Apucaraninha era grande. Mais de cem pessoas, desesperadas, esperavam que os bombeiros tirassem do fundo do rio um jovem que se afogara enquanto brincava com os amigos. Sem visibilidade e com o oxigênio dos cilindros se esgotando, as buscas seriam encerradas e só recomeçariam na manhã seguinte. Choro. Pai e mãe não arredariam o pé da barranca enquanto o corpo do filho não fosse resgatado.
Assustado, Oanio Silva de Souza, 37 anos, o Aninho, abriu a porta de casa para receber alguns homens afoitos que pediam ajuda. Ele era o único em Tamarana – cidade de 10,8 mil habitantes a 60 quilômetros de Londrina – capaz de fazer o que os homens do Corpo de Bombeiros não conseguiram. Sem titubear, ele acordou seu pai e fiel companheiro, Joaquim Silva de Souza, 74, e foi buscar seus equipamentos guardados em um rancho perto do Tibagi, o maior rio da região.
O dia mal havia clareado e a dupla de garimpeiros já estava em ação, mas desta vez para resgatar um corpo. “Na primeira descida, já encontrei o rapaz. Nunca fiquei tão impressionado na minha vida”, relembra Oanio, contando a primeira das várias histórias que relatou para a reportagem deBrasileiros. Essa do resgate se passou em 2005.
Encontramos Aninho e Joaquim na primeira vez que eles foram para o Rio Tibagi neste ano de 2008. As águas de março já se foram, a chuvarada passou. E é tempo de rio baixo e corredeiras mais mansas. Todo ano é a mesma coisa: abril é o mês ideal para voltar a mergulhar em busca de um sonho: o de encontrar um diamante. Em outubro volta a chover e aí o mergulho se complica outra vez.
A dupla de pai e filho, que só achamos depois de muito perguntar, se diferencia de tudo o que se vê pelos garimpos. Chama atenção o fato de eles trabalharem solitários, o que não é comum. Sempre que há notícia de diamante, ouro ou qualquer outro metal precioso em algum lugar, os garimpeiros surgem como formigas atrás de doce. Para explicar tal fato, Aninho é direto: “O nosso ponto está longe de ser o mais produtivo do Tibagi”. “Os melhores diamantes estão rio acima. Nós somos os últimos da fila. Até o final da década de 1980 tinha mais de 50 garimpeiros por aqui, agora somos apenas nós”, completa Joaquim.
Porém, o que mais impressiona é o equipamento que Oanio usa para descer até o fundo do rio, em profundidades que chegam a 12 metros: um escafandro, um dos mais primitivos equipamentos de mergulho inventados pelo homem. Para se ter uma idéia, a invenção do escafandro é creditada ao alemão Augustus Siebe, que fez o primeiro equipamento em 1839. Já faz tempo que os garimpeiros estão utilizando recursos mais modernos. Hoje em dia, há algo que eles chamam de “chupeta”, que faz o ar chegar direto à boca do mergulhador e ser bombeado por compressores mecânicos movidos a combustível ou eletricidade. No mergulho esportivo e comercial usam-se cilindros de oxigênio, que permitem ao mergulhador sentir-se como um peixe. A roupa usada hoje, então, nem se fala, é um conforto só em comparação com o escafandro.
Pesadão e desajeitado, o equipamento de Oanio foi utilizado em larga escala na primeira metade do século XX, mas agora virou peça de museu, literalmente. Na cidade que leva o mesmo nome do rio do garimpo, Tibagi, já na região central do Paraná, os escafandros estão expostos no museu que conta a história dos achados de diamantes no rio que, desde 1754, é chamado de “Eldorado” pelos garimpeiros. Aliás, na região da cidade de Tibagi, que fica rio acima em relação a Tamarana, o garimpo sempre foi intenso e continua sendo até hoje.
Contam-se centenas de garimpeiros. “Aqui tem muita gente mergulhando, mas ninguém se mete a besta com o escafandro. Esse já foi superado, ficou pra trás”, diz um ex-garimpeiro que se identifica como João, 84 anos. João do quê? “Do rio, filho, só isso”, respondeu-nos o matuto, fugindo da foto. “Isso aí não presta”, justificou para o fotógrafo, apontando a câmera. Pelo jeito, Aninho é o último garimpeiro no Paraná e talvez no Brasil que insiste no escafandro. “Pode ser que lá pro ‘nortão’ do país tenha mais alguém fazendo isso. Por aqui eu garanto que não tem”, destaca o pai do escafandrista.
Oanio e Joaquim são bons de conversa e ligeiros no serviço. Quando se fala de escafandro, pode-se falar também em peso. Só o capacete de bronze pesa 15 quilos. As peças de chumbo nele penduradas somam 60 quilos. Ao todo, Oanio submerge com 80 quilos além do peso de seu corpo. Isso sem falar da bomba manual, que fica na margem do rio: quase 100 quilos. Eles vão ajeitando tudo e conversando numa boa. Joaquim nem parece ter 74 anos. Ele vence os 50 metros de picada no mato entre o rancho e o Tibagi, carregando peso, sem nem ficar ofegante.
O resgate
O remendo com cola rápida feito no capacete de bronze denuncia a reforma. A história do escafandro de Oanio é interessante. O equipamento todo, incluindo a bomba, foi comprado na década de 1940 pelo administrador de uma pequena usina hidrelétrica que fica no Rio Apucaraninha, o mesmo onde Oanio resgatou um corpo.
O escafandro serviu para que mergulhadores fizessem reparos em uma rachadura na barragem da usina. Terminado o conserto, o tal administrador presenteou um garimpeiro do lugar com o escafandro e a máquina de bombear. Esse garimpeiro era Américo Silva de Souza, pai de Joaquim e avô de Oanio, um dos muitos e muitos baianos que foram parar nas margens do Tibagi em busca de diamantes. Contudo, Américo nunca usou o escafandro. “Ele era do garimpo de baixio, aquele que é feito em lugares onde não é preciso mergulhar”, recorda Joaquim.
O capacete seu Américo deixou guardado em casa e a bomba foi parar no meio do mato, junto com um monte de ferro-velho. Só em 1998, Oanio, que já andava garimpando nos barrancos do rio, ficou sabendo, por intermédio de um amigo de seu avô, da herança que estava escondida no matagal. Daí para virar mergulhador – e mergulhador de escafandro – foi fácil. Recuperou o capacete que estava aos cuidados de sua avó, consertou as rachaduras com cola rápida, tirou a máquina do ferro-velho e também providenciou reformas, bem à sua maneira, improvisando o necessário – uma lata de tinta, por exemplo, substituiu a camisa de refrigeração que já estava bem danificada. “Se não tem essa lata com água dentro para refrigerar o ar bombeado, o oxigênio chega lá embaixo quente demais, aí fica difícil respirar”, explica Aninho.
As peças de chumbo, usadas para que o mergulhador afunde, tinham sumido. Ele forjou novas e também refez a camisa de lona que é acoplada ao capacete. Só faltava aprender a mergulhar com aquele “trem”. Oanio levou tudo para a beira do rio, pôs o pai na bomba de ar e aprendeu a mergulhar sozinho. Ele também arranjou timburi, uma madeira especial para a confecção de barcos, e fez o bote que é utilizado para ir de um lado para o outro dentro do rio. Estava tudo certo, era só começar a garimpagem.
A vida por um parafuso
O garimpo de diamantes em um rio profundo como o Tibagi é muito interessante, ainda mais quando é feito de escafandro. O mergulhador desce até o fundo munido de sacos, os quais enche com o cascalho. Enquanto isso, quem fica na bomba não pode parar de girar a máquina nem um segundo. A vida de Oanio depende do ar que sai dali e é levado por uma mangueira até o capacete de seu escafandro. Joaquim sabe que não pode dar bobeira.
Antes de descer, Aninho se preocupa com o parafuso da braçadeira que prende a mangueira à máquina. “Isso aqui garante a vida do peão. Se é colocado de mau jeito e solta enquanto estou lá embaixo, tchau…” É a vida por um parafuso. Ter o próprio pai na bomba garante a Oanio um grande sossego para mergulhar.
Lendas ou não, tem muita gente da região de Tibagi que conta sobre mergulhadores de escafandro que morreram sem ar no fundo do rio porque os colegas da superfície simplesmente pararam de bombear. Segundo os causos, as mortes aconteciam por ambição. O mergulhador enche os sacos com cascalho e esses vão sendo içados por cordas até a superfície, onde o material é lavado e separado. Quando acontecia de subir um diamante junto com o cascalho podia acontecer também de o pessoal da superfície resolver deixar o mergulhador sem ar, afinal seria um a menos para rachar a grana da pedra preciosa.
Prestes a começar a garimpar pra valer na temporada 2008, Oanio e Joaquim ainda não escolheram quem vai ser o parceiro que vai ficar responsável por puxar o saco para cima. Em outras temporadas, o terceiro membro da equipe chegou a ser dona Maura, a matriarca da família. “Já fizemos uns garimpos muito doidos aqui: a mãe na bomba, o pai no saco e eu no mergulho”, diverte-se Aninho, cheio de bom humor e fazendo pose com o chapéu sobre o capacete do escafandro.
Enquanto não formam a equipe pra valer, pai e filho cuidam de ajeitar a balsa que levam para o meio do rio, onde fixam todos os equipamentos, facilitando o trabalho. O mergulhador chega a passar até uma hora na profundidade das águas, que às vezes estão bem geladas, com visibilidade quase zero. Só em dias de água muito limpa é possível ver alguma coisa. O serviço é feito praticamente pelo tato. A solidão é total e o medo existe, sim. “O meu maior medo é alguma pedra do barranco do rio se desprender e me esmagar lá no fundo. Também tenho medo de perder a escada que me ajuda a voltar para a superfície”, revela Oanio, sem esconder a tensão.
O que garante que pode haver algum diamante misturado ao cascalho são as “pedras informes”. Os nomes são interessantes: campina azul, amendoim-roxo, lacre, ferragem de bronze, ferragem de jabuticaba, granada… Aos olhos de um leigo não passam de pedras, mas aos olhos dos homens do garimpo são a esperança da fortuna.
Cigarro de 10 mil-réis
Formados pela “faculdade da realidade”, os homens da família Souza sustentam a tradição do garimpo, mas nenhum deles foi apenas garimpeiro na vida. Américo, o baiano precursor, abriu no enxadão as estradas de terra de Tamarana. Joaquim sempre foi da lavoura e do diamante. Oanio faz de tudo um pouco. É eletricista, mecânico, pedreiro, marceneiro, pescador profissional e até se meteu a montar a antena da única rádio da cidade, coisa que ninguém mais tinha conseguido fazer.
No bate-papo na varanda do rancho, foi impossível deixar de perguntar sobre as pedras encontradas. Afinal, esse garimpo de escafandro rende ou não rende algum dinheiro? “Sobre o garimpo se fala, mas sobre o que produz não se fala. No nosso caso, posso dizer que é apenas um esporte”, rebate Oanio, sem esconder que lhe faltam as devidas licenças do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para pesquisar diamantes. No entanto, ele tem uma permissão do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) para tal atividade.
Por sua vez, Joaquim revela que os diamantes o ajudaram a criar os seis filhos, porém nunca achou nada de excepcional. Mas já teve gente que achou. “Lá se vão algumas décadas que um amigo meu achou um veio de diamante que deu pra encher uma garrafa de 1 litro com as pedras, mas ele ficou doido, fazia cigarro com notas de 10 mil-réis. Esbanjou todo o dinheiro”, recorda.
Já voltando para casa, mesmo sem ver diamante algum, o que se pode dizer é que a paisagem que cerca os garimpeiros solitários de Tamarana é um verdadeiro tesouro. Pertinho deles, um salto do Rio Apucaraninha enche os olhos com seus 110 metros de queda-d’água. Ao redor do rio onde garimpam, montanhas e chapadões de pedra encantam quem é acostumado a ver somente concreto. Não é à toa que eles se declaram felizes.

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