Saiba de onde veio o ouro das medalhas olímpicas e paralímpicas
Estreita e pedregosa, a estrada de terra serpenteia uma zona rural onde pastam vacas e ovelhas. O sol da manhã dá um tom reluzente à folhagem de araucárias, eucaliptos e pinheiros nas margens do caminho. À direita da estradinha, surge, de repente, um plano inclinado que desce até um buraco na terra, sumindo na escuridão. Aberto no meio do nada, é uma passagem para outro mundo, no qual duas centenas de pessoas trabalham no subterrâneo, onde se escondia o grande mistério da Olimpíada e da Paralimpíada do Rio: a origem do ouro usado na mais cobiçada das medalhas dos Jogos.
Era um segredo tão bem guardado que nenhum dos atletas sabia de que lugar o metal precioso vinha. Funcionários do Comitê Rio-2016, salvo alguns diretores, também não. Poucos que trabalham na Casa da Moeda, responsável pela fabricação das 4.924 medalhas entregues no Rio, conheciam a resposta. E até moradores da cidade onde o ouro foi extraído não imaginavam que o metal tinha saído de lá. O mapa da mina parecia enterrado por piratas em uma ilha deserta, mas, no apagar da tocha, O GLOBO descobriu que, apesar das boas lembranças cariocas, é de Campo Largo, no Paraná, que os campeões levaram sua melhor recordação.
Na pacata cidade, que fica a 40 quilômetros a oeste de Curitiba, vivem pouco mais de 100 mil pessoas, entre elas muitos curitibanos em busca de sossego. Ao chegar lá, percorre-se mais 50 quilômetros até uma região de nome singelo, São João do Povinho, onde a Mineração Tabiporã se instalou no início dos anos 1980. Única mineradora de ouro ativa no Sul do país, é uma empresa de pequeno porte se comparada a gigantes estrangeiras da indústria do metal que operam em Minas Gerais. Sai de suas minas menos de uma tonelada por ano, enquanto outras produzem dez vezes mais. A Tabiporã é a menor das oito firmas habilitadas no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) do Ministério de Minas e Energia a extrair ouro no Brasil — o 11º maior produtor do mundo, com 80 toneladas por ano. Mas ela foi escolhida pelo comitê organizador dos Jogos e pela Casa da Moeda especialmente por produzir ouro sem uso de mercúrio no processo.
“Ninguém aqui sabe disso. O senhor tem certeza?”indaga o taxista Jobarino Feltrim, de 73 anos, que chegou a Campo Largo quando a cidade tinha apenas três ruas, há quatro décadas, e as pessoas iam à missa a cavalo ou de carroça.
Surpresos ao serem procurados pela reportagem, os sócios da Tabiporã não concordaram em abrir as portas da empresa, alegando preocupação com a segurança pessoal. Até o ano passado, a mineradora tinha mais de 500 funcionários, como a própria informava em sites de ofertas de emprego. Quase todos vinham de outras regiões, inclusive do exterior, a exemplo de um numeroso grupo de haitianos. Recentemente, com um corte radical na folha de pagamento, a maioria acabou demitida. Os alojamentos onde os trabalhadores viviam, no terreno imenso da Tabiporã, dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), foram fechados.
Hoje, a empresa prefere contratar pessoas de Campo Largo. Mas de forma discreta, pois continua convivendo com uma sombra. No subterrâneo da Tabiporã, nem tudo reluz: nos últimos cinco anos, segundo o juiz trabalhista Marlos Melek, foram três mortes de trabalhadores na mina — todos caíram em buracos abertos por detonações. Mas há pelo menos mais uma morte conhecida, a do trabalhador Denilson Antonio Rodrigues, de 35 anos, que morreu esmagado por uma pedra a 350 metros da superfície.
Poucos sabem, mas a mineração de ouro no Brasil começou no litoral do Paraná e de São Paulo, perto de 1570, antes do início da exploração em Minas Gerais, onde as primeiras lavras foram identificadas em 1697. Eram terras da então Capitania de São Vicente. O mais antigo mapa cartográfico da Baía de Paranaguá, de 1653, revela que havia minas por todos os lados. Segundo o arquiteto e historiador Nestor Goulart Reis, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), havia 150 minas de ouro entre São Paulo e o norte de Santa Catarina. E, do litoral, garimpeiros avançaram para Curitiba. O morro atrás do Parque Barigui, mais importante parque da cidade, era região aurífera.
“Curitiba nasceu como vila de garimpo”, afirma o geólogo Gil Piekarz, que trabalha na Mineropar (o serviço geológico do Paraná). “Ela parece um queijo suíço, com uma infinidade de túneis. Mas a tecnologia atual está se esgotando. Os veios de ouro não são uniformes, é uma questão geológica complexa”, explica.
Seu colega Antonio Liccardo, professor de geologia da Universidade de Ponta Grossa, afirma que, com o início do ciclo do ouro em Minas Gerais, houve um enorme contingente que deixou o Paraná em busca de riqueza. Era a fome de ouro:
“O Paraná foi pioneiro na tecnologia de exploração. Tudo que começou aqui foi desenvolvido depois em Minas Gerais e em outras regiões”.
É curioso que o passado da região esteja vinculado às medalhas olímpicas de 2016 — que custam em torno de US$ 600 dólares e têm apenas 1,3% do metal precioso, sendo o resto uma mistura de prata e bronze reciclados. Quando a Casa da Moeda e o Comitê Rio-2016 assinaram o acordo com a Tabiporã, sob condição de sigilo, ninguém fazia ideia do ciclo do ouro paranaense. Mas muitas cidades do estado devem ao ouro sua fundação, como Bateias, Ouro Fino e Campo Magro, onde fica o Rio Conceição. Na beira dele vive a família Danrat, descendente de alemães e do homem mais famoso do Paraná na segunda metade do século XVIII: Gaspar Correia Leite, um dos maiores exploradores de ouro da época.
Herdeiros de explorador vivem na área
Em uma casa modesta no bairro de Conceição dos Correias, Rosemari Ribas Danrat guarda um tesouro histórico: uma lata com mais de 200 anos, naturalmente enferrujada, onde estão documentos como registros de compra de escravos, uma oração para curar dor de dente escrita em 1801 e certidões diversas, como a de óbito de Gaspar. Rosemari foi escolhida por sua sogra, Florisbela Alves de Góes, para cuidar da lata após a morte dela.
“Não herdamos nada do Gaspar além de um pedaço de terra, onde plantamos hortaliças orgânicas. Nosso ouro é essa lata — afirma a guardiã no dia da festa da Nossa Senhora da Luz. — Gaspar trouxe uma imagem dessa santa, que nós guardamos até hoje. Reza a lenda que meu bisavô roubou o ouro que havia dentro dela, pois a santa é oca”, diverte-se ao contar.
A comunidade achava que a história era devaneio da família, mas a Igreja Católica confirmou, nos anos 1970, a veracidade dos documentos.
“Já montamos três peças nas escolas de Campo Magro contando a história. Ela não pode ser esquecida”, diz Rosemari.
Até hoje há quem acredite na existência de panelas de barro cheias de ouro enterradas ao pé de araçás a mando de Gaspar, que acumulou fortuna incalculável. Contam que ele mandava matar um escravo e o enterrava junto com as panelas de barro, para proteger o ouro. Muitos acreditam que o ouro só pode ser encontrado depois da meia-noite. Até hoje, há quem procure os tesouros.
Fonte: Época Negócios
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