sábado, 12 de novembro de 2016

O Vale do Silício desconhecido

O Vale do Silício desconhecido

Cristalina (GO) - Conhecida pela abundância e pela variedade dos cristais que brotam com facilidade do chão, Cristalina (GO), a 130km de Brasília e dona da maior economia agrícola do Brasil, esconde uma riqueza potencialmente ainda maior. Bilhões de toneladas de silício com o mais elevado índice de pureza do mundo — acima de 99,99% — poderiam servir de base para o surgimento de um importante parque industrial de alta tecnologia, com impactos na balança comercial e no desenvolvimento do país.

A matéria-prima essencial para a fabricação de componentes de celulares, computadores, lâmpadas especiais e, sobretudo, painéis solares de geração elétrica continua, contudo, sendo subaproveitada ou exportada em estado bruto para outros países, principalmente a China. Mas empresários e líderes locais da cidade goiana, além de técnicos do governo, começam a buscar formas de viabilizar o sonho do Vale do Silício brasileiro, soterrado pela burocracia e pela falta de visão estratégica.

Os cristais (quartzo) encontrados em Cristalina são considerados de altíssima qualidade, mas o agronegócio e a extração de areia levaram à paralisação e até mesmo ao fechamento das minas. "Só a areia destinada à construção civil poderia ser vendida 10 vezes mais caro. Uma fábrica de painéis de células fotovoltaicas poderia viabilizar a energia solar no Brasil e ainda sanar a grave escassez elétrica da própria cidade", destaca Gustavo Rocha, geólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e um dos maiores especialistas em silício no país.

Cláudio Scliar, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e ex-secretário de mineração do Ministério de Minas e Energia, lamenta que matérias-primas tão comuns em estados como Goiás, Minas Gerais e Bahia estejam pesando na pauta de importações do país na forma de artigos de alto valor agregado. "É uma situação antiga, que tem se agravado", resume. Sabe-se que o Brasil é detentor de 95% das reservas mundiais de silício, o equivalente a 78 bilhões de toneladas.

O silício brasileiro serve de sustentação para a liderança chinesa na fabricação de supercondutores, painéis solares e componentes eletrônicos de todos os tipos. A prova disso está no volume da produção desse insumo pelo gigante asiático: a oferta mundial está na casa de 7 milhões de toneladas anuais, das quais 70% vêm da China, em torno de 5 milhões.

Rocha, do DNPM, observa que o processo de purificação do silício para o seu uso pela indústria é um processo caro e exclusivo de poucos países. Não por acaso, os maiores exportadores de manufaturados de quartzo para o Brasil foram a China (53%), a Coreia do Sul (16%), Taiwan (14%), o Japão (8%) e a Malásia (3%). Em 2012, de todas as importações de itens feitas pela indústria eletrônica do país, 84% foram, justamente, cristais com características de condutores de eletricidade.

Prospecções

O fato de ter reservas não apenas abundantes mas também as mais puras daria a Cristalina uma vantagem competitiva especial, que já chama a atenção de multinacionais, como a Siemens. Segundo a prefeitura, a marca alemã está interessada em desenvolver uma fábrica de lâmpadas LED na cidade. Também há prospecções de fabricantes de filtros especiais de água e de silicones e a preparação de uma visita de empresários locais à Califórnia, nos Estados Unidos, para buscar inspirações e parcerias no Vale do Silício original.

"É um triste desperdício usar minerais raros como ornamento de jardins ou areia de obra", protesta Simony Côrtes, diretora da consultoria Águia Ambiental. Segundo ela, não se justificam as indefinições do governo federal em relação à lavra de cristais, que não utiliza materiais tóxicos e ainda convive com a fauna e a flora do cerrado. Transformar areia, cristais e outras rochas de quartzo em pó para ser convertido em ligadas de silício é algo economicamente viável, garante ela.

No Brasil, em muitas propriedades rurais — sobretudo as localizadas numa grande área entre Minas Gerais, Goiás e Bahia —, o quartzo aflora tanto na forma de areia quanto na de rocha. William Souto, secretário municipal de Turismo e presidente da Associação de Artesãos de Cristalina, ressalta que a fartura na região permite que o garimpo ilegal do mineral resista ao tempo. "O garimpeiro ainda tem o sonho de encontrar algo especial", relata.

A maioria dos donos desses terrenos, lembram especialistas, desconhece o real teor dos seus depósitos. Muitos volumes acabam sendo vendidos com preço abaixo do potencial, mesmo sem receber qualquer refino. Boa parte dos estoques das grandes regiões produtoras foi exportada com grande intensidade nos últimos 10 anos, tornando negociantes chineses e canadenses figuras cotidianas em cidades pequenas.

Uso múltiplo

Apesar de ser o segundo elemento químico mais presente no planeta, perdendo só para o oxigênio, o silício quase nunca é encontrado isoladamente na natureza. Sempre vem combinado com outros minerais e precisa ser processado para servir a diferentes usos da indústria. Na forma mais pura (99,999%), o chamado silício metalúrgico, obtido de cristais e areias, serve à fabricação de placas solares.

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Ouro verde-amarelo do sertão
   
Cristalina (GO) - A explosão de um vulcão ocorrida há milhões de anos em Cristalina presenteou a cidade goiana com uma fonte volumosa e variada de cristais, conhecidos mundialmente pela predominância de suas seis faces características, e de areias ricas em silício puro. Como se não bastasse tudo isso, uma reserva de quartzo transparente localizada em uma longa fenda de extração dentro de uma mina a céu aberto da cidade se tornaria fonte para uma pedra única.

Exposto acidentalmente à radiação gama de cobalto-60, técnica usada para desinfetar frutas frescas para a exportação, o cristal aparentemente igual a qualquer outro ganhou uma exclusiva tonalidade verde-amarelada. Patenteada pelo empresário Eduardo Fernandes, da mineradora Areal Minas Goiás (AMG), como green gold (ouro verde, em inglês), o mineral modificado virou objeto de cobiça internacional, sobretudo de norte-americanos, chineses e indianos.

"Esse cristal verde-amarelado ou amarelo-esverdeado se mantém a aparência constante, independentemente da luz incidente. Em razão das cores que carrega, gosto de chamá-lo de a pedra do Brasil", conta orgulhoso Fernandes, conhecido em Cristalina como Duda, um misto de empreendedor e cientista. Ele lembra que o nome veio, em 1997, da reação espontânea de um especialista logo após ser apresentado a uma coleção do material, exposta pela AMG numa feira internacional de minerais em Tucson, Arizona (EUA). O empresário denuncia o uso ilegal de sua marca e tentativas fracassadas de reproduzi-la.

Apesar de todo o entusiasmo com uma descoberta que hoje lhe proporciona uma coleção variada de joias e objetos de decoração antes mesmo da frase this is a green gold (isso é um ouro verde), Duda vê um futuro ainda mais promissor em sua atividade com o uso de silício para placas de geração fotovoltaica. "Esse vale é o Oriente Médio do século 21", profetiza.

Prisma

Simony Côrtes, diretora da consultoria Águia Ambiental, informa que 13 mineradoras atuam hoje em Cristalina, todas com direito de lavra protegido pela lei e com atividade condicionada à recuperação de áreas degradadas. Ela explica que a concentração de empresas em um ramo antes dominado pelo garimpo pulverizado e marginal deixou menos evidente a rica variedade de pedras encontradas na região, com cores e tamanhos diversos, de grande interesse comercial.

Esse perfil da cidade, conhecido há um século, explica a presença constante de mercadores de fora, sobretudo chineses, e o domínio de diplomatas residentes em Brasília na lista dos principais clientes. Por essas razões, a pesquisadora defende maior promoção do cristal brasileiro, ainda visto apenas como "primo pobre do diamante", embora tenha graus de dureza e transparência bem próximos do "primo rico". "Mesmo após tanta exploração, só 30% dos volumes em Cristalina foram extraídos", acrescenta.

Quatro perguntas para Luiz Carlos Attié , Prefeito de Cristalina

Ter o maior PIB agrícola do Brasil acabou ofuscando de vez com a vocação mineral de Cristalina?

Os cristais da cidade despertam curiosidade internacional desde o começo do século passado, quando franceses vieram em busca de pedras preciosas. O surto exploratório dos anos 1960 perdeu fôlego, mas a mística e o comércio em torno dos variados cristais sobreviveram. Vivemos hoje um bom momento na economia local, marcado pela alta produtividade do campo e pela instalação de multinacionais do agronegócio. Mas essa prosperidade pode ficar ainda mais sustentável com o resgate da tradicional atividade mineradora, associada a investimentos em alta tecnologia baseada no quartzo.

Por que o silício de elevada pureza encontrado no município ainda não atraiu grandes projetos?

Marcas sofisticadas da indústria, como a alemã Siemens, vêm prospectando negócios em Cristalina nos últimos anos. Mas certas decisões de investimento ainda dependem de definições da política ambiental do país, da aprovação pelo Congresso do novo marco da mineração e das obras na BR-040, leiloada à iniciativa privada. Vamos, sim, criar o Vale do Silício brasileiro, com o quartzo sendo convertido em itens eletrônicos e painéis solares, agregando conhecimento. Sonho até com uma bolsa de valores sediada aqui e voltada para a cotação internacional do silício metalúrgico.

Quais são as estratégias da administração municipal para fazer esse sonho se tornar realidade?

Está sob análise do Congresso a autorização para a União criar em Cristalina a primeira zona de processamento de exportação (ZPE) de Goiás, impulso importante para beneficiar em grande escala o nosso quartzo. Como área de livre comércio, a ZPE atrairia também mais empresas competitivas globalmente. Investimos em ensino superior, no artesanato de pedras e no diálogo com novos tipos de negócios com silício, como fabricantes de filtros de água e de painéis solares. Mas reconheço que a escassez de eletricidade ainda é nosso maior gargalo.

O senhor teme que burocracia e falta de visão possam fazer a região perder o bonde da história?

Como administrador público, procuro na minha longa experiência de empresário inspiração para induzir progresso com caminhos novos, mesmo que não pareçam óbvios. Conhecida nacionalmente pela agropecuária, Barretos (SP), por exemplo, é hoje um dos principais centros de referência em medicina do país. Se explorarmos uma reserva natural de quartzo gigantesca, que pode ser vista até mesmo do espaço, com investimentos que respeitem o meio ambiente e agreguem conhecimento local, além de aproveitar vantagens como a localização estratégica na malha rodoviária, chegaremos lá.

Correio Braziliense

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