sábado, 28 de janeiro de 2017

A intrusão diamantífera Abel Régis (Carmo do Paranaíba, MG): kimberlito ou lamproíto?

Resumo
Centenas de intrusões de natureza kimberlítica ou relacionadas são conhecidas na Província Diamantífera do Alto Paranaíba, em Minas Gerais e Goiás. O pipe Abel Régis, localizado em Carmo do Paranaíba e descoberto pela De Beers na década de 1970, é um desses corpos, que tem sido, em geral, considerado como um kimberlito. Na área da intrusão, ocorrem metassedimentos neoproterozóicos do Grupo Bambuí, os quais são atravessados pelo pipe cretácico (?) de forma superficial aproximadamente circular, com cerca de 1.400 m de diâmetro. Foram distinguidas diversas fácies petrográficas no corpo, que é um dos poucos de toda a província mineral onde encontram-se preservadas feições da zona de cratera. Como o acervo de informações pré-existentes não era esclarecedor quanto à mineralogia de tal corpo, efetuaram-se também estudos com microssonda eletrônica, os quais demonstraram significativas mudanças quanto ao até então admitido. As mais importantes foram: predomínio local de Cr-espinélio sobre ilmenita entre os minerais indicadores, ilmenitas pouco magnesianas e presença abundante do K-feldspato sanidina. Essas características, somadas ao aspecto em forma de taça apresentado pelo corpo, permitem sugerir, em princípio, que a intrusão Abel Régis possa ser de natureza lamproítica.
1. Introdução
Na atualidade, centenas de intrusões de natureza kimberlítica ou parentais são conhecidas na Província Diamantífera do Alto Paranaíba, em Minas Gerais e regiões contíguas de Goiás, especialmente na faixa NW-SE, que abrange os municípios mineiros de Monte Carmelo, Abadia dos Dourados, Coromandel, Patos de Minas e Carmo do Paranaíba. Embora depósitos diamantíferos aluvionares tenham sido descobertos no país nos primórdios do século XVIII, somente no final da década de 1960 iniciou-se a pesquisa sistemática de rochas fontes primárias pelo BRGM, órgão estatal francês de mineração. Através de sua subsidiária brasileira, a SOPEMI (mais tarde encampada pelo grupo minerador sul-africano De Beers), essa empresa identificou os primeiros pipes kimberlíticos na bacia do Rio Santo Inácio, em Coromandel, onde depósitos secundários eram lavrados desde inícios do século XX.
Na Província do Alto Paranaíba, logo dezenas de outros corpos foram identificados e pesquisados. Além disso, uma outra província diamantífera foi descoberta pela SOPEMI, cerca de 200 km a sudeste da anterior, designada de Província da Serra da Canastra. Tais pesquisas levaram à definição de alguns pipes mineralizados a baixo teor, bem como ao primeiro depósito primário no país com reservas economicamente viáveis, o kimberlito Canastra-1 (Chaves et al., 2008). A Província do Alto Paranaíba abrange uma superfície com pelo menos 30.000 km². Nesse contexto, em diversos corpos onde a mineralização foi anunciada, os seus potenciais econômicos permanecem de conhecimento exclusivo das companhias portadoras dos direitos minerários, e, assim, o relacionamento entre as intrusões com os diamantes aluvionares ainda não está perfeitamente estabelecido na região como um todo.
O "kimberlito" Abel Régis constitui um desses casos. Ele foi descoberto na década de 1970 e, do mesmo modo que a maioria das intrusões da região, foi classificado como um kimberlito (Read et al., 2004; La Terra, 2006; La Terra et al., 2006), embora esses trabalhos careçam de dados geoquímicos e/ou mineralógicos pertinentes. Informações adicionais obtidas em campo revelam ainda que o corpo tem produzido regularmente microdiamantes, amostrados com o programa de sondagens efetuado (Geólogo Ricardo Prates, inf. verbal, 2007). Através do levantamento detalhado do corpo (1:5.000), que determinou sua geologia e as fácies petrográficas típicas, bem como amostragem dos principais minerais indicadores visando a detectar aspectos mineraloquímicos em análises com microssonda eletrônica, observou-se que as pesquisas anteriores foram insatisfatórias na caracterização da tipologia da rocha, levando a uma proposta de redefinição da mesma no presente artigo.

2. Localização, breve histórico e síntese geológica
A intrusão está localizada cerca de 12 km WNW da sede da cidade de Carmo do Paranaíba, meio-oeste de Minas Gerais. O centróide aproximado do corpo está em (GPS) 349400N/7901500E, zona 23 e datum Córrego Alegre (Figura 1). Na década de 1970, quando a SOPEMI (Grupo De Beers) descobriu alguns de seus afloramentos através de rastreamento de minerais indicadores e prospecção geofísica por magnetometria, eles foram designados como Abel Régis, Sucesso-1 e Sucesso-2, admitindo-se, na ocasião, a existência de três blows independentes. O primeiro nome foi tirado do proprietário da fazenda, cuja sede localiza-se no interior da intrusão.
Novas pesquisas efetuadas pela Parimá Mineração, na década de 1990, rebatizaram tais blows como Régis-1, Régis-2 e Régis-3; os dois primeiros recentemente integrados em um só corpo (Régis) pela SAMSUL Mineração a partir de dados aerogeofísicos. Essa última etapa de pesquisas incluiu seis furos de sonda rotativa, dois deles (na porção central da intrusão) recuperando microdiamantes (MD): um com 316 m de profundidade amostrou 129 MD e outro, com 251 m, amostrou 20 MD (Geólogo Ricardo Prates, inf. verbal, 2007). Doravante, a intrusão será designada conforme sua caracterização original pela SOPEMI - "Abel Régis'.
A geologia da região compreende principalmente siltitos, argilitos e diamictitos do Grupo Bambuí, de idade neoproterozóica, nos quais a intrusão encontra-se na maior parte hospedada (Seer et al., 1989; Signorelli et al., 2003; Tuller & Silva, 2003). Sobre o Grupo Bambuí, ocorrem arenitos e conglomerados do Grupo Areado (Cretáceo Inferior) além de rochas tufáceas do Grupo Mata da Corda (Cretáceo Superior). Em termos geotectônicos, o pipe está localizado nas proximidades da margem oeste do Cráton do São Francisco (Figura 1); inexistem datações divulgadas sobre o mesmo, embora outros situados nessa província diamantífera sejam datados no Eocretáceo (Svisero et al., 1983; Pereira & Fuck, 2005).

3. Aspectos geológicos da intrusão Abel Régis
A intrusão possui forma superficial aproximadamente circular com cerca de 1.400 m de diâmetro (±140 ha de área), conforme o levantamento em escala de detalhe efetuado (Figura 2). La Terra (2006) e La Terra et al. (2006) determinaram com metodologia CSAMT (controlled-source audiomagnetotellurics) o comportamento em subsuperfície do corpo, constituindo uma das raras intrusões dessa natureza no país que já foram pesquisadas com tal detalhe, tendo seus resultados divulgados. Através de duas perfilagens N-S e uma perfilagem E-W (posição dos perfis na Figura 2), obteve-se um modelamento em duas dimensões para o pipe até cerca de 300 m de profundidade (Figura 3-A), onde se configura a aparente presença de somente um conduto vulcânico. Pela comparação das formas típicas de pipes kimberlíticos e lamproíticos (Figura 3-B e C), denota-se uma forte semelhança morfológica com o segundo tipo litológico.




Embora a maioria dos afloramentos encontre-se em adiantado estado de intemperização, foram identificadas quatro fácies petrográficas (Figura 2): (1) A fácies dominante, presente em cerca de 60% da exposição e de modo característico em suas bordas, consiste em uma brecha vulcânica compacta e pouco selecionada; (2) Localizada preferencialmente na porção centro-sul da intrusão, possuindo em torno de 30% de expressão areal, aparece uma fácies de tufos, finos até grossos, argilitizados e ricos em minerais indicadores; (3) Uma terceira fácies, de brecha grossa, é observada no bordo oeste e sudoeste do corpo, com cerca de 8% de domínio de superfície, constituindo uma zona com abundância de xenólitos crustais (principalmente quartzito e metassiltito), com blocos de material silexficado (parede da intrusão?) dispersos na superfície; (4) De ocorrência restrita a pequeno setor ao norte da intrusão (~2% de expressão areal) ocorre uma fácies de tufo acamadado, com material piroclástico (lapilli) associado.
A intrusão é uma das poucas de toda província onde ainda encontram-se preservadas feições da zona de cratera. O conduto superior de uma intrusão é de difícil preservação, por apresentar composição de material tufáceo ultrabásico que sob condições exógenas é rapidamente erodido. As crateras exibem estrutura em funil resultante de seu colapso, preenchida por sedimentos estratificados, remobilizados do próprio pipe.

4. Mineraloquímica das principais fases indicadoras
Amostragens para caracterização da mineraloquímica das mais importantes fases indicadoras do diamante foram efetuadas em três locais, duas sobre a fácies da brecha de borda e uma sobre a fácies de tufos (central), compreendendo 30 kg em cada ponto (Figura 2). Para o procedimento de coleta desses minerais, foi dada preferência aos trechos de miniravinamento sobre o corpo, onde o fator de concentração dos pesados deve chegar a pelo menos 10 vezes o da rocha, pela simples observação visual. Análises com microssonda eletrônica foram efetuadas sobre granadas, diopsídio, ilmenita e espinélio (LMA - Dep. de Física/ICEX-UFMG). No total, analisaram-se 128 grãos; em cada grão foram realizados 4 pontos de medição.
As granadas, todas identificadas do tipo piropo, foram separadas segundo distintas colorações: púrpura (29 grãos), vermelha (28 grãos) e alaranjada (21 grãos). Em geral, os dados químicos mostraram-se bastante semelhantes entre esses três tipos, não se verificando relação entre granadas de cor púrpura com maior concentração de Cr2O3, como recentemente Chaves et al. (2008) reconheceram no kimberlito Canastra-1 (São Roque de Minas).
As composições CaO x Cr2O3, para separação entre granadas de diferentes tendências químicas são apresentadas na Figura 4, onde se destaca uma população fortemente concentrada no trend G4-G5-G9 (campos mineraloquímicos conforme Grütter et al., 2004). Esses campos, em geral, caracterizam intrusões com teores desprezíveis ou inférteis em diamantes (Dawson & Stephens, 1975; Grütter et al., 2004).


Segundo Mitchell e Bergman (1991), as composições dos clinopiroxênios não servem para diferenciar claramente kimberlitos do grupo II de lamproítos. Entretanto Mitchell (1986) fornece uma tabela com duas médias de composições de diopsídios derivados de kimberlitos do grupo II, com conteúdos de CaO por volta de 25% (Tabela 1), muito diferentes das médias encontradas na intrusão Abel Régis e, por exemplo, no lamproíto "clássico" de Leucite Hills (EUA). Ressaltem-se, ainda, os conteúdos de Cr2O3 desse mineral na intrusão estudada, bastante elevados, seja para lamproítos, seja para kimberlitos do grupo II.
Um outro aspecto mineralógico interessante diz respeito à relativa maior abundância de Cr-espinélio (cromita) sobre ilmenita na fácies de tufos, de ocorrência incomum em kimberlitos (Mitchell, 1986). Normalmente, espinélios de kimberlitos e lamproítos seguem dois trends mineraloquímicos distintos, ambos representados nas amostras do corpo Abel Régis (Tabela 2). Cromitas associadas com diamante possuem altos conteúdos de Cr2O3 e MgO, respectivamente maiores do que 62% e 12% em média, além de depleção em TiO2 (Dong & Zhou, 1980; Gurney & Moore, 1991). Dois grãos analisados do mineral revelaram tais características, sendo fortes evidências de material de manto superior, provavelmente relacionados com a presença de (micro) diamantes.
As ilmenitas de kimberlitos, em geral, possuem um característico alto conteúdo de MgO, que pode alcançar até próximo de 25% (Mitchell, 1986), enquanto as de lamproítos tendem a apresentar valores mais baixos desse óxido (Mitchell & Bergman, 1991). A média de ±7,5% reconhecida na intrusão Abel Régis, compara-se à de lamproítos australianos (Tabela 3). Em adição, observam-se, também, nessa tabela, as semelhanças notáveis dos valores de FeO e MgO do mineral em lamproítos em comparação aos dados analisados no corpo Abel Régis.
Nos três pontos amostrados, observaram-se, com relativa abundância, grãos (com até cerca de 1 mm de diâmetro) de um mineral esbranquiçado-leitoso, de forma esférica ou semi-esférica, identificado com difração de raios X como sanidina. Esse mineral, analisado posteriormente com microssonda eletrônica (ponto REG), apresentou semelhança química muito forte com espécimes descritos nos lamproítos de Leucite Hills (EUA), Kapamba (Zâmbia) e West Kimberley (Austrália) (Tabela 4).
O zircão foi observado sobretudo no ponto SUC, identificado através de análises com EDS. Apresenta-se em prismas tabulares euédricos a subédricos, de coloração incolor-amarelada, sendo que o maior cristal encontrado alcançou o notável comprimento de 0,5 cm.

5. Discussões sobre a morfologia do corpo e sua química mineral
Algumas considerações devem ser destacadas sobre a intrusão Abel Régis:
  • Sua forma muito alargada em superfície, com cerca de 1,4 km de diâmetro, é contrária à da grande maioria dos kimberlitos da mesma região (p. ex., Svisero et al., 1983, 1986; Pasin, 2003; Chaves, 2008; Chaves et al., 2008).
  • Seu curto espaço de afunilamento em subsuperfície, demonstrado pela modelagem geofísica, permite o reconhecimento de uma forma típica "de taça".
  • A relativa abundância de espinélio sobre ilmenita; o primeiro mineral é um indicador somente acessório na maioria dos kimberlitos.
  • A mineraloquímica dos indicadores, notadamente diopsídio e ilmenita, de grande semelhança com espécimes já descritos em lamproítos.
  • A presença do K-feldspato sanidina. Intrusões kimberlíticas são notoriamente pobres em minerais potássicos, os quais caracterizam as lamproíticas. Esses aspectos, integrados, permitem sugerir que a intrusão estudada possua uma afinidade lamproítica, embora, inibidora a tal aspecto, destaca-se a presença de granadas piropo, incomuns em lamproítos (Mitchell & Bergman, 1991).

    6. Considerações finais
    Embora rochas kimberlíticas sejam conhecidas no país desde a década de 1960, ainda são escassos os estudos a respeito das centenas de intrusões que ocorrem na porção sul do Cráton do São Francisco, em Minas Gerais e imediações. Na realidade, todos os corpos conhecidos até a década de 1990 eram descritos indiscriminadamente como kimberlitos. Depois da descoberta do lamproíto diamantífero de Argyle (Austrália), diversos questionamentos foram levantados e deste modo muitas das intrusões conhecidas foram reinterpretadas como kamafugitos ou mesmo lamproítos.
    No presente estudo, o conjunto de informações apresentado sugere fortemente uma mudança no status da tipologia da intrusão Abel Régis, de kimberlítica para lamproítica. Os dados quanto à morfologia do pipe e seus principais aspectos mineralógicos coadunam com tal hipótese. Embora ocorram diversos afloramentos expostos na superfície, todos eles apresentam-se bastante intemperizados, prejudicando estudos geoquímicos na rocha que poderiam consolidar essa nova interpretação. Nesse sentido, está-se tentando, junto a SAMSUL Mineração, a obtenção de amostras de testemunhos de sondagem, no sentido de se efetuarem as análises pertinentes.
     
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