smartphone – e os metais preciosos contidos nos aparelhos antigos, cujo valor é estimado em R$ 316 milhões (veja infográfico na página 48), ficam esquecidos no fundo da gaveta. Pode não parecer, mas os aparelhos eletrônicos, mesmo os mais baratos, contêm bastante ouro. É que o ouro é um excelente condutor de eletricidade e demora muito para se degradar, ou seja, é ótimo para os circuitos internos de gadgets em geral. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, existem nada menos do que 500 milhões de aparelhos eletrônicos nas casas dos brasileiros – e isso contando só os que já foram aposentados e estão sem uso. Mas a proliferação de gadgets está se tornando um problemão. “O mundo produz 41,8 milhões de toneladas de lixo eletrônico por ano”, explica Ruediger Kuehr, secretário-executivo do programa da ONU sobre lixo eletrônico. Isso dá aproximadamente 6 kg para cada pessoa – ou o equivalente a 32 iPhones. Reciclar eletrônicos é difícil, mas é necessário: inclusive porque, se não fizermos isso, uma hora não vamos mais ter como fabricar novos gadgets.
Para fazer aparelhos eletrônicos, é preciso usar mais da metade da tabela periódica. Alguns elementos são valiosos para a indústria em geral, caso do lítio, do níquel, do cobre e do paládio, além do alumínio, do ferro e de diferentes tipos de plásticos. Existem também as chamadas terra-raras – nome dado a 15 elementos: lantânio, cério, praseodímio, neodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio e lutécio. Eles são fundamentais para produzir smartphones, turbinas eólicas, carros híbridos e óculos de visão noturna.
Para cada um deles, haverá um momento em que as reservas vão acabar. Um estudo da Universidade Yale analisou 62 metais usados em smartphones e gadgets em geral – e constatou que 12 deles simplesmente não têm substituto. “Todos nós gostamos dos nossos celulares. Mas será que, daqui a 20 ou 30 anos, ainda vamos ter acesso a todos os materiais necessários [para fabricá-los]?”, questionou a cientista Barbara Reck, coautora do estudo.
A humanidade sabia que isso ia acontecer. Já em 1865, bem antes da era digital, o economista William Stanley Jevons identificou o problema. Enquanto o mundo todo dizia que a demanda por carvão diminuiria porque as máquinas estavam se tornando mais eficientes, Jevons afirmava que a evolução da tecnologia levaria os produtos a se tornarem mais acessíveis. Logo, as vendas melhorariam e o consumo de carvão aumentaria. Foi o que de fato aconteceu. Recentemente, pesquisadores do MIT analisaram o mercado atual de eletrônicos à luz dessa teoria, conhecida como Paradoxo de Jenver. Concluíram que, sim, os recursos naturais, os metais valiosos, as terras-raras, tudo isso vai ser mais consumido porque a demanda vai aumentar. “O avanço da tecnologia, por si só, não garante sustentabilidade. Pelo contrário”, afirma o especialista em engenharia de materiais Christopher Magee, um dos autores do estudo.
Outro problema é o impacto ambiental. Para extrair o 0,034 g de ouro que vai em um único celular, é necessário escavar 10 kg de terra de minas. A fabricação do aparelho todo consome 13 mil litros de água, e emite 16 kg de CO2 – a mesma poluição gerada ao rodar 320 km com um carro popular. Em suma: cedo ou tarde, vamos precisar reaproveitar o lixo eletrônico da mesma forma que hoje fazemos com as latinhas de alumínio (98% delas são recicladas).
Esse tipo de reciclagem está engatinhando, mas já existem companhias especializadas nele. No centro de reciclagem da empresa Sinctronics, em Sorocaba (SP), o processo começa pela separação das partes úteis, ou seja, peças que estejam funcionando e possam ser reutilizadas. Depois, o que sobra é processado de acordo com seu material. A fábrica começou a operar em 2012 e conta com cem funcionários, que reciclam 95% de tudo o que entra ali – os demais 5% são usados por outras indústrias, como as de cimento, para gerar calor. Nada é descartado.
Depois de separados, os plásticos são triturados e derretidos. Uma máquina extrusora, que parece um funil gigante, transforma o material numa espécie de macarrão grosso, que é esfriado em água e depois picado em pedacinhos minúsculos. Esse plástico vai para máquinas injetoras, que criam peças novas, como alças para embalagens de papelão ou peças de impressoras – a HP é uma das maiores parceiras da companhia.
Já o metal é levado a um moinho, onde passa por um processo de separação magnética. O ferro cai numa bandeja e segue para empresas de materiais de construção. O alumínio e o cobre são vendidos para parceiros, que os fundem. O que sobra de plástico preso ali segue para aquele outro processo.
Você deve estar se perguntando: e o ouro? Ele está dentro das placas de circuito impresso, que não são processadas no Brasil. Elas são vendidas para as únicas cinco usinas de reciclagem no mundo devidamente equipadas para extrair o metal amarelo, na Alemanha, na Bélgica, no Canadá, na Suécia e no Japão. É isso mesmo: nós não ficamos com o ouro. “Eu consigo extrair ouro de uma placa. Já fizemos isso em laboratório. Mas os ácidos que usamos são muito poluentes. Para compensar os riscos ambientais, precisaríamos de um volume muito maior de placas”, explica Carlos Ohde, diretor da Sinctronics. O processo só vale a pena quando é realizado em larga escala: cada fábrica especializada nessa tarefa lida com 18 mil toneladas por mês – mais que o dobro de tudo o que o Brasil inteiro recicla em um ano. “Mesmo que todo o Brasil mandasse seus circuitos para cá, não seria suficiente”, afirma Carlos.
É por isso que apenas meia dúzia de empresas de países desenvolvidos (como a belga Umicore, líder mundial) recebem placas do mundo inteiro. “O Brasil ainda não possui tecnologia para extrair os metais das placas de circuito impresso [em larga escala]. O investimento necessário é muito alto”, reforça Daniela Moraes, professora de gestão da produção no Instituto Federal do Espírito Santo.
Reciclagem do mal
Tem gente que tenta extrair os metais preciosos na marra. É o que acontece em Guiyu, na China. Oficialmente, é o maior centro de reciclagem de e-lixo do planeta, com 60 mil pessoas processando 8 milhões de toneladas de peças eletrônicas por ano. Na prática, é um dos lugares mais poluídos que existem. Ali, famílias trabalham separando as peças, e depois cozinham tudo o que é pequeno demais para abrir. Incluindo os circuitos.
Cenário parecido é observado em Baotou, também na China, capital mundial da exploração de terra-rara, onde a falta de cuidado com o meio ambiente expõe os 2,3 milhões de habitantes da região a chuvas ácidas e água contaminada com urânio.
O resultado é ouro, sim. Mas o processo libera gases tão tóxicos que 80% das crianças dessas regiões estão contaminadas com chumbo no sangue. A reciclagem sem o menor cuidado acontece também na Índia, no Paquistão e na África – especialmente em Gana, na Nigéria e no Quênia. Em Nova Déli, 25 mil pessoas trabalham processando lixo eletrônico – tudo sem a menor proteção.
Desde 1989 existe a Convenção de Basileia, que estabelece normas globais para o manejo de equipamentos eletrônicos e restringe a exportação deles. Os Estados Unidos, que estão entre os maiores exportadores de lixo eletrônico do mundo, não assinaram a convenção nem aprovaram novas leis que buscavam melhorar esse quadro. De toda maneira, em vários países os próprios fabricantes são pressionados a criar programas de reciclagem. A Apple, por exemplo, tem o seu. Em 2015, recuperou uma tonelada de ouro – tudo vindo de gadgets reciclados.
No Brasil, desde 2010 os fabricantes são obrigados por lei a pegar de volta eletrônicos usados (você pode entrar em contato com eles e solicitar a devolução). Mas quase ninguém sabe – e, por isso, reciclamos apenas 2% de nosso e-lixo.
O mais impressionante é que, desse total, apenas 1% vem dos consumidores. Todo o resto da reciclagem, 99%, é feito a partir da sucata eletrônica fornecida por grandes empresas. Elas têm todo o interesse em reciclar lixo eletrônico – porque já perceberam que ele, mais do que um abacaxi ambiental, também pode ser uma verdadeira mina de ouro.
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