segunda-feira, 2 de julho de 2018

Documentário ‘Rio das Lágrimas Secas’ mostra mulheres afetadas pelo crime da Samarco/Vale-BHP


Documentário ‘Rio das Lágrimas Secas’ mostra mulheres afetadas pelo crime da Samarco/Vale-BHP

Apresentando a narrativa de mulheres afetadas pelo crime da Samarco/Vale/BHP, o documentário Rio das Lágrimas Secas fará sua estreia em sua terra natal na noite desta segunda-feira, a partir das 19h, no Cine Jardins, dentro da 13ª Mostra Produção Independente – Novos Rumos. 
O filme de 25 minutos já foi exibido na mostra La Femme Short Film Festival, no Egito, e na Mostra das Minas, em Santos (SP). Para saber mais sobre a obra, Século Diário entrevistou Sáskia Sá, diretora do filme. - O interesse surgiu por conta desse crime ambiental, que ocorreu em 5 de novembro de 2015. Lembro que quando eu vi as primeiras imagens, era uma coisa tão inacreditável, que me tocou de uma maneira muito profunda, como se algo se esgarçasse no tecido do mundo.
Eu me envolvi com as pessoas da universidade, participei de manifestações, também tentei me envolver com os grupos na época para divulgar o que estava acontecendo e cobrar as questões principais no momento, como a água que estava faltando para as pessoas.
O tempo passou e surgiu uma oportunidade quando abriu o edital da Secult [Secretaria de Estado da Cultura] e eu ainda estava com tudo isso ainda muito latente em mim e resolvi escrever o projeto para fazer o documentário. Depois começamos a nos programar para se organizar e filmar, comecei também a organizar como seria o pensamento, a construção da narrativa e do discurso desse filme.
- Por que escolheu construir um filme a partir das vozes femininas? O que isso apresenta de diferente?
- Isso tem muito a ver com minha história, especialmente a mais recente como realizadora, roteirista e diretora, em que busco priorizar as vozes femininas, o protagonismo das mulheres no meu trabalho. Eu sou roteirista e diretora mulher, sou empresária mulher, sou produtora mulher, e todo meu discurso tem se construído em torno das lutas das mulheres, e eu acredito que a luta pelo meio ambiente, pela terra, pela água, pelo território está muito presente na luta e na vida das mulheres dessas populações que têm sido afetadas por decisões governamentais que não levam em consideração as vidas das pessoas e do meio ambiente como um todo.
A gente percebe que as lutas são feitas também pelos homens, claro, mas que mulheres lutam por suas comunidades, suas famílias, por aqueles que são mais próximos. Elas lutam pela vida como ela é, a vida que é afetada realmente. Não é uma luta que é vivida na macropolítica. Geralmente as mulheres têm lutado muito mais nessa micropolítica, nos lugares onde elas conseguem lutar, onde elas estão sendo afetadas de uma maneira muito concreta. O filme faz essa opção porque a gente percebe que essas mulheres são agentes que realmente estão se mobilizando para tentar brigar pelas suas comunidades, famílias, territórios, por aquilo que elas perderam efetivamente.
Talvez porque nosso lugar de luta, de fala, de existência tenha sido sempre muito relegado à casa, territórios mais fechados, mais ligados realmente ao doméstico. Então são as mulheres que vão lutar pelos seus filhos que foram mortos pela polícia, que vão lutar pela terras que estão sendo invadidas. Os homens lutam mas também saem para resolver a sua vida, para tentar novas possibilidades e oportunidades. Aí quando você vai ver, quem sobra são as mulheres, que perdem muito mais e são mais atingidas por esse tipo destruição, que é a destruição da vida em si.
Outra coisa importante é essa questão de ter que aprender a ser atingido. Essas mulheres não eram militantes, não tinham atividade política no sentido de uma representatividade na macropolítica. Elas tinham uma vida comunitária, eram pessoas importantes dentro daquele tecido que foi destruído na comunidade delas. Quando ocorre um crime como esse, que afeta a vida dessa maneira, elas têm que aprender a ser atingidas. Isso muda também a forma com você tem que se colocar no mundo. Elas têm que mudar sua vida em função de uma luta coletiva pela sua comunidade, contra essa forma com que o capital e a industrialização conseguem afetar e destruir as vidas para ter um lucro incessante.
- Como se constrói a narrativa em Rio das Lágrimas Secas?
- Escolhi uma narrativa mais observacional no contato com as mulheres que a gente teve, as vozes que aparecem foram só delas. A opção foi de escolher três comunidades pequenas que foram afetadas pela lama do crime ambiental da Samarco. Essas comunidades são de Mariana e do distrito de Bento Rodrigues, a comunidade Krenak de Resplendor [ambas em Minas Gerais] e a comunidade de Regência, na foz do Rio Doce [Espírito Santo].
Essa escolha por pequenas comunidades também foi estratégica no sentido de que foram essas comunidades que mais perderam, que realmente tiveram seus modos de vida e relações pessoais com seu território e com o meio ambiente mais afetadas do que as pessoas que vivem nas grandes cidades. Então as perdas ali são realmente um grande esgarçamento dos modos de vida das pessoas, principalmente das mulheres e das famílias dessas mulheres.
- Como o documentário se desenvolve a partir dessas comunidades?
- Eu dividi o filme em três blocos. O primeiro é em Mariana e Bento Rodrigues. Ali a gente trabalha a questão da perda de território. É uma perda do território e da memória. Elas perderam um lugar de memória, um lugar de vida, que é onde elas viveram a vida inteira. E no início elas perdem até o acesso a esse lugar, que é o distrito de Bento Rodrigues, que foi totalmente destruído. Então histórias de vida se perderam totalmente, relações foram destruídas.
Já a comunidade Krenak perdeu uma relação com o rio, que chamam de Watu, e é muito importante para vida desse povo. Uma vida que tinha uma relação muito próxima com todas atividades que a comunidade exercia. O rio fazia parte da vida delas e elas estão alijadas daquele contato com o rio. A gente chega lá e ninguém nem encosta mais no rio, não se toca mais naquele rio. É uma dor enorme. Como as índias falavam, é como perder um parente mesmo, como perder uma vida com a qual elas se relacionavam e era importante para a união dessa comunidade.
Regência tem toda uma perda na relação de rio com o mar. E é uma perda do sonhos também, porque quem conhecia Regência tinha algo de sonho ali. Havia uma relação de subsistência, as pessoas tiravam sobrevivência da pesca. Tem também a questão dos surfistas. Ali tem toda uma outra relação com as águas que é diferente da relação das outras comunidades que foram enfocadas pelo filme.
- Que mensagem final você acha que se pode tirar da obra?
- Acho que não há uma mensagem final, porque a tragédia ainda está acontecendo. O crime ainda existe e não foi sanado, questões não foram resolvidas. Existe uma impunidade. Nossa mensagem na verdade seria de que estamos esperando e cobrando, que ninguém vai esquecer. Eu acho que é pra não esquecer enquanto esse crime continuar em andamento, porque ele ainda está acontecendo.
 Fonte: Seculo Diário

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