COMO VIVEM AS BRASILEIRAS QUE SE PROSTITUEM NAS ÁREAS DE EXPLORAÇÃO DA GUIANA FRANCESA
Uma delas orgulha-se de ter acumulado 1,5 quilo de ouro, o equivalente a R$ 300 mil; mas perdeu quase tudo em apreensões e desilusões
era palpável no loteamento clandestino do “PK 6”, refúgio de garimpeiros brasileiros localizado na Estrada de Saint-Élie, a 6 quilômetros de Kourou, na costa da Guiana Francesa. As mochilas carregadas e as “quentinhas” de arroz e frango ainda mornas foram deixadas de lado. De tocaia e com os celulares na mão, os brasileiros acompanhavam em tempo real uma nova operação das forças de ordem na região. A expedição pela floresta teve de ser adiada, ao menos naquele momento.
No quintal de seu barraco, Rosana, de 48 anos, lamentou mais uma tentativa frustrada. Ao lado de suas vizinhas, um grupo de “mulheres do ouro”, lembrou histórias dos tempos áureos do garimpo na Guiana Francesa: “Verdadeiras cidades funcionavam às cegas no coração da floresta”, disse. Nascida em Santarém, no Pará, há 14 anos tornou-se “cozinheira” — termo usado para designar as mulheres que se ocupam da alimentação e de quem se espera satisfação sexual dos homens do garimpo. Rosana orgulha-se de ter acumulado 1,5 quilo de ouro, o equivalente a R$ 300 mil. Perdeu quase tudo em apreensões e desilusões.
Desde 2008, o governo francês tem endurecido o controle na região. Diariamente, cerca de 500 homens da Gendarmaria Nacional (polícia militar francesa), das Forças Armadas e das autoridades de fronteira são mobilizados no combate ao garimpo ilegal pela Operação Harpie. De acordo com o Office National des Forêts (ONF), órgão público de controle florestal, no ano passado, 765 áreas de exploração clandestinas, 215 poços e 51 galerias de extração foram destruídos, mas apenas 5 quilos de ouro foram apreendidos.
A força-tarefa dificulta, mas não desencoraja o fluxo de imigrantes que continuam a cruzar ilegalmente a fronteira na esperança de enriquecer com a extração do minério. A ONF estima em 10 mil o número de garimpeiros ilegais em atividade no território, mais de 90% deles brasileiros — que, seduzidos pelo pagamento em euro, assumem o risco de se sujeitar à lei estrangeira. Também são atraídos pelas garantias de educação e saúde dadas pelo Estado francês. Na Guiana, o Estado oferece ajuda financeira, escola e atendimento básico de saúde mesmo às famílias em situação irregular. Na região da floresta, o atendimento por ONGs e associações como a Cruz Vermelha e a local ADER, de combate à aids, é gratuito e não faz distinção entre a população nativa e os que não possuem nacionalidade francesa.
Contudo, dentro do garimpo, a vida é de quase escravidão, relatou Rosana: “A vida no garimpo é cruel. Quem entra nesse esquema já começa devendo e trabalha dia e noite para sobreviver”. Ela explicou que, do lucro total do que é extraído, 70% vai para o dono do maquinário e o restante é dividido entre os garimpeiros e a cozinheira do acampamento. “Só dá para comer”, garantiu ela, que chegou a ficar 13 anos seguidos sem deixar a floresta. “Muitas pessoas deram a vida pelo garimpo e acabaram com o corpo jogado no leito do rio, sem nada.” Ainda assim, Rosana se disse pronta para driblar novamente o controle de fronteira e voltar para a mata, “atrás da pepita que vai mudar o destino” de sua vida.
“‘JÁ PERDI MUITO, MAS TENHO ORGULHO EM DIZER QUE É COM O DINHEIRO DE MEU TRABALHO QUE PAGO A FACULDADE DE MEUS DOIS FILHOS NO BRASIL. UM ESTUDA MEDICINA E O OUTRO ENGENHARIA AMBIENTAL’, CONTOU A AMAPAENSE NEIDE”
As adversidades da Amazônia da Guiana Francesa e o isolamento só fazem aumentar a dificuldade e a dívida dos que ali trabalham. O preço de um par de botas pode chegar a 30 gramas de ouro — o equivalente a quase R$ 6 mil. Uma garrafa de cachaça 51, que nos supermercados vale menos de R$ 10, no meio da floresta é comercializada por até 5 gramas do minério, aproximadamente R$ 1.000. Já um maço de cigarros vale 3 gramas — ou R$ 600.
A prostituição, também a preço de ouro, foi o que atraiu Marli ao meio da mata. Aos 12 anos de idade, ela deixou a cidade de Itaituba, no Pará, por uma aventura em Oiapoque, no Amapá, na fronteira com a Guiana Francesa. Atuou em bares da região até ser chamada para trabalhar como prostituta em uma zona de garimpo. “Um programa custa 4 gramas de ouro. Às vezes você pode fazer três seguidos na mesma noite. É um salário que jamais ganharia no Brasil”, contou. Deportada três vezes, Marli lembrou os riscos que enfrentou para voltar à floresta: “Só não fui presa porque estava grávida e eles não conseguiram encontrar a pedra que escondi na vagina”, contou. Ela se viu forçada a mudar de vida após tomar um tiro no pé — de um fuzil calibre 12 — ao se recusar a manter relações com um garimpeiro “apaixonado”. Com as marcas no corpo e hoje casada com um marceneiro, Marli, que vive num vilarejo próximo a uma zona de garimpo, teme não conseguir sustentar os seis filhos e ter de voltar para a vida de outrora.
A resiliência de mulheres como Marli chamou a atenção do subtenente da Legião Estrangeira Fernando V. (em razão de regras internas, ele não pode ter seu sobrenome revelado). A serviço da tropa militar há mais de 20 anos, o brasileiro atuou em missões de apreensão em Sophie, a 30 quilômetros da comuna de Saül. “A ordem é queimar tudo que se encontra na floresta para acabar com a atividade ilegal e resgatar as pessoas desse regime de dominação. Mas elas se recusam a deixar o local, dispostas a passar às vezes dias sem comer, na esperança de que os militares não achem as reservas escondidas na mata”, disse o subtenente. “A cada final de missão, assim que os helicópteros decolam, os acampamentos logo são reconstruídos e as atividades voltam ao normal. Um trabalho sem fim para os homens da Operação Harpie”, reconheceu. Em janeiro de 2019, um mapeamento aéreo da ONF identificou 132 áreas de garimpo — dez a mais que o estudo precedente, de outubro de 2018, trazia.
A amapaense Neide, de 40 anos, é uma das pessoas que não se sentem desmotivadas a recomeçar mesmo depois de os militares queimarem os garimpos ilegais. “Já perdi muita coisa, sofri violência, fui presa duas vezes, mas mesmo assim voltei. Tenho orgulho em dizer que é com o dinheiro de meu trabalho que pago a faculdade de meus dois filhos no Brasil. Um estuda medicina e o outro engenharia ambiental”, contou. “Casada” com dois homens do garimpo, Neide cuida do transporte de mantimentos e presta serviços sexuais aos parceiros em troca de ouro. “Existe muita rivalidade e ameaças nesse meio. A jornada é muito desgastante. Eles chegam a peneirar mais de 12 horas seguidas sem achar nada”, disse.
Desde 2003, mais de 29 mil hectares de floresta foram destruídos na Guiana Francesa em decorrência do garimpo, legal e ilegal, de acordo com o órgão ambiental local — o equivalente à área de Belo Horizonte, Minas Gerais. Desde 2009, mais de 20 autorizações para a exploração legal de minérios na floresta foram concedidas pelo governo francês, e 15 novos pedidos estão em curso, agora na gestão de Emmanuel Macron. O presidente francês, um dos principais críticos da política ambiental do governo Bolsonaro, tem sido criticado por organismos ambientais em seu país por fazer a defesa da Amazônia brasileira sem mencionar os problemas enfrentados pela Guiana Francesa.
A atividade clandestina, que usa mercúrio para formar amálgamas e assim identificar melhor os pequenos grãos de ouro, contaminou mais de 3.300 quilômetros de rios, provocando a asfixia de plantas e peixes e doenças. “É como deparar com um lixão no meio da mata”, disse o legionário Fernando. Em volta dos acampamentos, a quantidade de detritos acumulados contrasta com a pureza da selva virgem. Nas áreas de garimpo, verdadeiras crateras de lama contaminada por carburantes impedem a regeneração da floresta. É nesse ambiente de putrefação que as brasileiras da Guiana Francesa veem um futuro de ouro.
Fonte: ÉPOCA
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