Tráfico no parque dos Dinossauros
Mixaria no sertão e ouro no exterior: fósseis brasileiros fazem a fortuna de contrabandistas
Madrugada no interior do Ceará. No lugar do chão castigado
pela seca, cercado por mandacarus e xiquexiques, imagino uma floresta
milenar com as primeiras plantas com flores. Em grandes lagos, jacarés e
peixes primitivos disputam alimentos com répteis voadores de cristas
coloridas. Uma profusão de insetos num momento da evolução natural que
vai moldar toda a vida na Terra. E tudo acontece em solo brasileiro.
Sigo por uma estrada sinuosa, vez por outra cortada por animais que
atravessam a pista. Eles até poderiam ser dinossauros, pois três novas
espécies desses gigantes da pré-história foram descobertas na região.
Busco informações sobre o tráfico internacional de fósseis, um mercado
milionário que no Brasil tem a falta de fiscalização e a miséria como
principais aliadas. Pistas me levam a Nova Olinda e Santana do Cariri,
duas cidadezinhas a 600 quilômetros de Fortaleza, localizadas na Chapada
do Araripe, fronteira entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. O
lugar é famoso nos meios científicos por abrigar um importante depósito
natural de fósseis com espécies que viveram ali entre 65 e 135 milhões
de anos atrás.
Lentamente, o céu ganha cores fortes e vai amanhecendo. Ligo o rádio
do carro. Para minha surpresa, Red Hot Chili Peppers, U2 e The Cure
também tocam nessas bandas do semi-árido. Logo, Francisco Samuel, 12
anos, anuncia: "Casa Grande FM". A rádio, que faz parte de uma fundação
apoiada pela Unicef, vem mudando a vida das crianças com arte e
educação. Figuras como Arnaldo Antunes e Gilberto Gil já passaram pelo
local deixando algumas relíquias em CD ou vinil. No entanto, o grosso
das doações vem do exterior. É uma relação positiva para o Brasil.
Infelizmente, perto dali, o contrabando de fósseis extraídos das minas
da região vem levando, ao longo das últimas três décadas, nosso
patrimônio milenar para museus, colecionadores e pesquisadores da
Europa, Japão ou Estados Unidos. Com uma rede eficiente e bem-informada,
o comércio ilegal faz a fortuna de muitos aventureiros. Se um fóssil
importante é encontrado nas minas da região, logo os contrabandistas
ficam sabendo. Mesmo os trabalhadores mais jovens sabem diferenciar um
inseto valioso de um simples besouro ou um réptil voador de um aquático.
A descontrolada atividade extrativista e a ação dos traficantes
representam uma ameaça ao patrimônio científico-cultural do país, que
vem sendo espoliado ao longo dos anos. Um processo cruel, em que o
sertanejo vende os fósseis para matar a fome da família e o atravessador
fica rico e impune.
A Chapada do Araripe faz parte de uma região de extrema importância
científica. Milhões de anos atrás, essa imensa área (que hoje abriga
solos ressequidos - parte do polígono das secas) era formada por lagos
de água doce, alguns com mais de 100 quilômetros de extensão, que vez
por outra se comunicavam com o mar. Do solo desses antigos reservatórios
naturais - considerados únicos por sua qualidade de preservação,
variedade de espécies e quantidade de exemplares -, já emergiram fósseis
de dinossauros, pterossauros (répteis voadores), crocodilos, rãs,
tartarugas, peixes, insetos, moluscos e plantas em excelente estado de
conservação. Alguns fósseis de animais são encontrados com vestígios de
sua última refeição, além de fibras musculares ou pedaços de órgãos
internos como cérebros, ovários e intestinos. Insetos com a textura e as
cores das asas inalteradas também fazem parte dos achados. Conhecida
pelos principais naturalistas da Europa desde o século 19, a riqueza
científica da região começou a ganhar destaque às vésperas dos anos 60
através do geólogo alemão Karl Beurlen (1901-1985), fundador do curso de
geologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Fugitivo da
Alemanha da década de 1940, o professor Beurlen foi um dos pioneiros na
definição da estratigrafia (estudo das camadas do solo), sistematizando
as primeiras pesquisas da chamada "Bacia do Araripe". Meio século
depois, em setembro de 2006, durante uma conferência em Belfast, Irlanda
do Norte, a Chapada do Araripe foi oficialmente aceita como membro da
rede mundial de geoparques sob os auspícios da Unesco - o primeiro e
único das Américas. Apesar do reconhecimento, o título, pelo menos a
curto prazo, não muda a situação do tráfico.
Muitas das raridades fósseis retiradas do solo nordestino estão
espalhadas ilegalmente por centros de pesquisas do mundo inteiro.
"Fizemos uma estimativa que aponta cerca de 20 mil exemplares de insetos
do Araripe no exterior contra 4 mil em museus e universidades do
Brasil", alerta o geólogo Alexandre Magno Feitosa, que há cinco anos vem
pesquisando no local. Sua estimativa parece tímida quando comparada com
outros dados que dizem passar dos 70 mil os fósseis contrabandeados. O
trabalho dos sertanejos que se lançam na aventura clandestina de
garimpar nossas relíquias acaba enriquecendo os traficantes de fósseis e
dando fama a pesquisadores estrangeiros. Os Estados Unidos e a Alemanha
são os principais clientes dessa máfia ainda pouco conhecida. Em países
do chamado Primeiro Mundo, um fóssil raro chega a custar US$ 200 mil.
Com a entrada dos japoneses nesse ramo, os preços no mercado
internacional dispararam. Quando o assunto é adquirir fósseis
importantes, alguns museus do Japão não têm restrições orçamentárias,
chegando a pagar mais de US$ 1 milhão pela peça. Segundo o paleontólogo
David Martill, da Universidade de Portsmouth (Grã-Bretanha), o museu de
Kyoto possui um fóssil quase completo de uma espécie de ave ainda
desconhecida que viveu no Araripe, há uns 100 milhões de anos, e foi
levado para o outro lado do mundo ilegalmente. Se confirmada a
autenticidade do fóssil que está no Japão, "ele seria o representante
mais antigo do grupo de aves descoberto no Gondwana", o supercontinente
formado pela América do Sul e África, afirma Martill.
O interesse dos contrabandistas - principalmente dos alemães - pela
riqueza científica da Chapada do Araripe começou entre as décadas de
1980 e 1990. Naquela época, o intenso comércio abastecia museus de
Hamburgo, Frankfurt e Munique. Com a chegada ao interior cearense do
alemão Michael Lothar Schwickert, um dos maiores contrabandistas de
fósseis em atuação no mercado internacional, o esquema teve o seu
coroamento, trazendo prejuízos incalculáveis para o patrimônio
brasileiro e transformando a região num núcleo de exportação. Depois de
algumas viagens "exploratórias", em que fez contatos com os caboclos da
região, Schwickert implantou um moderno sistema de coleta de fósseis que
contava com estação de rádios comunicadores, equipamentos pesados como
compressores e técnicas mais eficientes do que as utilizadas pelos
trabalhadores das minas. Ele montava as equipes e trabalhava à noite. As
peças eram enviadas para a Europa em caixotes colocados em contêineres
despachados sob o disfarce de outro material, como pedras e calcário,
nos portos ou aeroportos de Recife, São Paulo e Rio. Prendê-lo era uma
questão de honra para a polícia brasileira.
Proprietário da empresa ms-fossil e com um esquema recheado de
colaboradores locais, entre os quais se destacam Francisco Ronaldo
Correia e Euclides Praxedes, que cobriam grande parte da Chapada do
Araripe, Schwickert chegou a solicitar uma autorização de trabalho
temporário ao governo brasileiro. No entanto, em 2002, depois de
investigá-lo desde 1996, a Polícia Federal conseguiu prendê-lo em
Fortaleza. Como não portava fósseis, terminou extraditado e responde ao
processo em liberdade. Os pesquisadores brasileiros desconfiam de que as
peças mais raras contrabandeadas do Brasil nessa época estejam na
Alemanha, principalmente em Berlim, Stutgard, Chemnitz e Bonn. Seguindo
os rastros deixados pelo traficante alemão, fui ao Museu de Ciências
Naturais de Berlim, o Museum für Naturkunde, e lá fotografei várias
peças da Chapada do Araripe que estão em destaque numa vitrine. São
fósseis brasileiros de insetos, peixes e plantas com as primeiras flores
em perfeito estado - raridades do mundo científico que o Brasil perdeu
para o contrabando. Um desses fósseis, uma planta Cratonia cotyledon de
130 milhões de anos, que está ajudando os cientistas a fechar um buraco
na história evolutiva dos vegetais, foi descrito por um trio de
pesquisadoras da Suécia e da Alemanha (Catarina Rydan, Bárbara Mohr e
Else Frills) sem a participação de brasileiros. Para entender a
importância desses fósseis, o paleontólogo Diógenes de Almeida Campos,
coordenador do museu de Ciências da Terra (RJ), ensina que o Araripe
abrigou as primeiras florestas com flores, que vão mais tarde alimentar
os mamíferos e as aves. "É essa floresta que vai moldar a vida na Terra,
permitindo o aparecimento dos primatas e do homem. São as plantas que
preparam o ambiente para depois surgirem os animais que vão estar
adaptados a ele", enfatiza.
Considerado crime federal no Brasil porque envolve o patrimônio da
União, o comércio de fósseis é legalizado em países como Alemanha,
Rússia e Estados Unidos. O Ministério da Justiça, através da Abin
(Agência Brasileira de Inteligência) e da Polícia Federal, mantém
constantes diálogos com os pesquisadores para levantar dados que possam
desencadear operações de repressão policial. A legislação que trata do
assunto no Brasil é de 1942 e limita-se a um decreto-lei assinado pelo
então Presidente Getúlio Vargas, e não estabelece regras para a
comercialização dos fósseis, prejudicando a política de repressão. Desde
1996, se arrasta no Congresso Nacional um Projeto de Lei, de autoria do
senador Lúcio Alcântara, que cria novas regras para a proteção do
patrimônio paleontológico brasileiro, mais que até hoje não foi
aprovado. Mesmo sem uma lei específica, nos últimos anos, a Polícia
Federal conseguiu apreender mais de 30 mil fósseis somente no interior
do Ceará. Para o paleontólogo Alexandre Kelnner, do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a proteção aos depósitos de
fósseis é uma preocupação cada vez maior em âmbito mundial. "Em diversos
países já existem leis que, de uma maneira ou de outra, procuram
controlar a extração de material fóssil, sendo que o êxito varia
bastante em função do estado ou país onde esses dispositivos legais são
aplicados", explica. Kelnner enfatiza que entre as diversas soluções
para amenizar o problema estão a criação de parques e o desenvolvimento
da indústria turística na região, levando uma melhora econômica para a
população. "No entanto, essas medidas precisam ser acompanhadas por
ações educativas, mais do que as punitivas, visando a conscientização da
população local sobre a importância e os benefícios que o patrimônio
paleontológico pode fornecer."
A falta de regras claras na legislação brasileira, aliada à omissão e
à irresponsabilidade de diversos países que não participam de uma
convenção da Unesco que tem como objetivo coibir o tráfico de fósseis,
piora a situação e faz com que estrangeiros usem até a internet para
comercializarem fósseis do Brasil. Em um site alemão, o Fossilien, a
Chapada do Araripe tem um link especial onde libélulas, aranhas,
abelhas, vespas e outros insetos brasileiros são vendidos entre 100 e
600 euros em fatias polidas e descritos como de grande beleza por suas
cores. Também é possível encontrar animais tupiniquins no site eBay. A
própria empresa afirma que adquiriu o material numa exposição em Tucson,
cidade norte-americana que concentra grandes feiras de fósseis. Segundo
o geólogo Arthur Andrade, técnico do Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), é possível pedir a devolução dessas peças, mas o
processo é demorado. Andrade participou de uma reunião com
representantes do Ministério Público Federal para traçar uma estratégia e
seguir o caminho da Argentina e China, igualmente roubados, e que
brigam pelo retorno de seus fósseis. Além de uma legislação ineficiente,
a comercialização de fósseis no Brasil recebe pouca atenção dos órgãos
competentes. "O problema é que ainda não valorizamos nosso patrimônio e
os órgãos de pesquisa e proteção não dispõem de recursos. A facilidade
de retirada dos fósseis é alimentada por uma lei que permite
interpretações dúbias, tratando populações pobres que têm a venda como
parte da renda mensal e quadrilhas especializadas com compradores no
exterior da mesma forma", reconhece.
A retirada dos fósseis nos municípios de Santana do Cariri e Nova
Olinda, incluídos no mapa da fome do Governo Lula, integrando a lista de
municípios miseráveis assistidos pelo programa Fome Zero, é um
subproduto da extração mineral no Vale do Cariri, uma atividade
econômica extremamente importante para a região e que utiliza
mão-de-obra sem as mínimas garantias trabalhistas. De suas minas, sai
grande parte do gesso consumido no país além das famosas lâminas de
calcário conhecidas como "pedra cariri", muito utilizadas em
revestimentos ou pisos. É por esse motivo que várias casas da região nos
remetem à pré-história: com as paredes e o chão totalmente de pedras -
não raro com pequenos fósseis de peixes. Trabalhando nas pedreiras desde
1990, José Furtuoso Sobrinho, 60 anos, passa o dia inteiro sob o sol
sem capacete, luvas, máscaras ou qualquer outra proteção. Recebe cerca
de R$ 80 por semana que não são suficientes para alimentar a família,
formada por 13 filhos - o mais velho com 28 anos. Alguns dos meninos,
dois deles menores, trabalham com o pai. José nasceu em Saboeiro, 120
quilômetros de Nova Olinda, mas teve que fugir de sua terra em busca de
emprego nas minas. Vez por outra, o reforço no orçamento familiar vem da
venda dos "peixes de pedra", retirados do solo com alavanca, marreta e
sem conhecimento técnico-científico. "Está mais difícil achar um peixe. O
camarada, às vezes, ainda encontra um bacalhau", diz se referindo à
espécie Dastilbe elongatus, um fóssil de pouco valor comercial, vendido
por R$ 20 nas minas.
Na histórica cidade do Crato - uma espécie de capital cultural do
sertão cearense - conversei com um dos precursores na divulgação e
defesa dos fósseis nordestinos, o professor Plácido Cidade Nuvens,
reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca) e criador do Museu de
Paleontologia de Santana do Cariri. Para ele, o início do tráfico de
fósseis no Ceará está ligado ao aumento no fluxo de migração dos
sertanejos para cidades como São Paulo e Rio de Janeiro no final da
década de 1950, começo dos anos 60. Foi o deslocamento dessas pessoas
para o centro-sul do país que terminou alimentando o contrabando. "Duas
figuras importante foram o cearense Milton Duarte, que morava em São
Paulo, e o comerciante Boca Rica", relembra. Na década de 1960, Duarte
estabeleceu uma grande rede de coletores responsáveis por reunir as
peças e enviar para São Paulo. As encomendas eram feitas aos
trabalhadores e agricultores da região: "Vê se tu tens aí uma pedra de
rua". No começo dos anos 70, entram novos personagens, como Françoar
Dedão, que terminou se juntando a Euclides Praxedes para coordenar os
trabalhos nas minas e coletar fósseis nos riachos da região. Atualmente,
Tim Maia, Bolinha, Edmar, Paulinho, Ronaldo e principalmente Euclides
dominam as negociações.
Anos de retirada dos fósseis da chapada do Araripe, sobretudo dos
riachos pedregosos da região e do conjunto de minas da Pedra Branca e
redondezas, ocasionaram o esgotamento das relíquias nas jazidas
superiores, quase à flor da terra. Agora, na falta de raridades, quando
os fósseis são encontrados nas minas, terminam sendo vendidos no próprio
local por preços irrisórios. A miséria leva os trabalhadores a negociar
pequenos fósseis de peixes milenares (as "piabinhas') por R$ 0,15 a
unidade. Andando pelas minas, sufocado pelo pó branco que impregna o ar,
imagino o ambiente há milhões de anos. Os jacarés deviam infestar as
lagoas que aprisionavam milhares de peixes - espécies de água doce e
salgada, uma fartura sem precedentes. Quando um desses répteis morreu, o
lago raso pode ter feito seu corpo afundar, sendo soterrado pelos
sedimentos. O tempo se encarregou de transformá-lo em pedra. Em 1991,
cerca de 110 milhões de anos depois, José Ricardo Gonçalves Silva, com
16 anos, descobriu o esqueleto fóssil de um jacaré que pode ter morrido
exatamente como na hipótese acima.
Dois dias procurando José Ricardo, que hoje tem 35 anos e não
trabalha mais nas minas de calcário da região, e fui encontrá-lo no
sítio Guritiba, há mais de 20 quilômetros do antigo local de trabalho.
Desempregado e pai de três crianças - Giliard, 6 anos, Marifilayane, 3
anos, e Mariana, de apenas 1 ano -, ele faz todo o serviço doméstico,
responsável pela comida e por preparar os meninos para a escola. Sua
esposa, Marilene, de 33 anos, passa o dia fora trabalhando como auxiliar
de merendeira na escola do povoado. Para ajudar nas finanças da
família, eles ainda dependem da pequena plantação de feijão e mandioca.
José Ricardo conta que naquela época acompanhava o pai diariamente ao
trabalho nas minas. "Eu ajudava ele no serviço." Num sábado de folga,
enquanto o chefe da família foi à feira da cidade, Ricardo correu para
"caçar piabinhas nas minas". "Por volta das 8 da manhã, quando juntava
os 'peixes' próximos a uma rocha maior, me deu na cabeça de abrir aquela
pedra. Peguei a marreta e bati forte. Tomei um susto; era um bicho
comprido com mais de 1 metro", recorda. Na mesma hora, Ricardo gritou
para Idelino - um trabalhador conhecido da família que estava por ali:
"'Eita, parece que achei um teiú! (lagarto típico do Nordeste)'.
Escutando meu susto, Idelino disse: 'Vou pegar minha espingarda para
matar ele!', e eu respondi: 'Não precisa, é um bicho de pedra!'".
Com a experiência de quem vivia nas minas, José Ricardo colocou a
pedra com o fóssil nas costas (pesava quase 30 quilos) e correu mais de 3
quilômetros até sua casa debaixo do forte sol. Não demorou e a notícia
se espalhou pelas redondezas. "Minha casa ficou cheia de gente. Era todo
mundo em cima querendo ver o bicho. Mandei um recado para Euclides", o
conhecido atravessador de fósseis que ainda atua na região, e com o qual
José Ricardo já mantinha uma relação de comércio vendendo-lhe as
"piabinhas de pedra". Constatada a autenticidade do fóssil, um jacaré
primitivo completo, uma verdadeira raridade, o preço: cerca de R$ 16
mil, em valores atuais. "Era dinheiro para comprar quatro motos novas e
ele ainda me deu um revólver, que era meu sonho", afirma o ex-minerador.
Ricardo conta que na mesma semana Euclides repassou a peça "para um
alemão que se interessava pelos bichos", e com o lucro comprou um
veículo novo. "Era um Gol. Fazia um sucesso danado", relembra. Com o
dinheiro, José Ricardo pagou uma dívida que seu pai tinha no banco e
ainda sobrou o suficiente para comprar oito vacas leiteiras. "Das vacas,
terminei comprando um carro. Foi uma bênção aquele jacaré", comemora,
como se não soubesse que sua atitude terminou contribuindo para aumentar
o tráfico de fósseis no país.
O garimpo de fósseis no araripe acontece em diversas camadas
geológicas, principalmente numa área que pertenceu a um grande lago com
abundância de peixes. As peças desse período são atrativas e têm melhor
cotação comercial no mercado de suvenires. Alguns fósseis apresentam
formas tridimensionais. São exatamente essas peças que interessam ao
artesão José Cavalcanti Lima, 69 anos, mais conhecido como Zé das
Pedras. Certamente, ele é o mais folclórico traficante de fósseis do
sertão. Nasceu em Juazeiro do Norte depois que seu pai chegou ao Ceará
como devoto do padre Cícero e nunca mais deixou a região. Zé das Pedras
já foi indiciado em 12 processos por contrabando de fósseis. Responde a
todos em liberdade, mas como deixou de comparecer a duas audiências teve
sua prisão decretada e passou quase um mês preso. "Fui parar na
penitenciária, junto com bandidos de todo tipo", explica. Ainda hoje na
ativa, Zé das Pedras começou a "caçar fósseis" com 18 anos de idade e
não vê nada de errado na atividade. "Até a Polícia Federal sabe disso",
conta ele ao me oferecer um fóssil em plena praça na cidade do Crato. Ao
ser questionado se não era crime vender os fósseis, ele se saiu com uma
explicação inusitada: "Ora, quando eles apreendem as peças, elas
terminam jogadas num depósito velho, ralando. Eles não sabem zelar". Zé
das Pedras evita circular nos municípios de Nova Olinda e Santana do
Cariri - provavelmente porque ficaria muito visado. Ele prefere oferecer
os fósseis em cidades como Juazeiro do Norte e Crato. Campeão de
prisões, ele vive perambulando pelos hotéis ofertando o produto aos
turistas. Com o tempo, terminou se especializando em forjar as peças
utilizando superposição de fósseis. Mesmo sem ter noção de anatomia, ele
consegue reproduzir peças interessantes.
Ao contrário de Zé das Pedras, que já chegou a ser preso várias vezes
e trabalha com pequenos fósseis - a maior parte deles sem muita
importância científica -, a artesã Urânia Gusmão Corradini, de São
Paulo, tem uma trajetória diferente. Há mais de dez anos, ela é suspeita
de vender fósseis raros ilegalmente no Brasil e no exterior sem maiores
problemas com a Justiça. Corradini até chegou a ser processada por
furto e receptação de fósseis - na época, parecia que a polícia tinha
desarticulado um imenso esquema com ligações em diversas partes do mundo
-, mas logo foi absolvida por alegar em sua defesa que não sabia que
estava cometendo um crime, segundo o juiz da 7ª Vara Criminal Federal,
Márcio Rached Millani. Em sua casa na capital paulista, ela mantém mais
de 5 mil peças retiradas ilegalmente das jazidas brasileiras e que
formam seu duty free particular. São fósseis de grandes peixes,
dinossauros, pterossauros, jacarés, tartarugas e insetos - muitos ainda
inéditos para a ciência. Corradini atua em duas frentes: centralizando
as compras no interior do Brasil e abastecendo o contrabando
internacional. Em alguns casos, a cotação é feita na região em que o
fóssil foi achado. Por telefone, Urânia fornece o valor e fecha o
negócio. Outra linha de atuação da traficante é vender os fósseis mais
valiosos para cientistas inescrupulosos, principalmente do exterior.
Parte importante dos fósseis que corradini mantém em sua posse foi
retirada ilegalmente da Chapada do Araripe e poderia estar no Museu de
Paleontologia de Santana do Cariri, considerado referência científica e
turística na região. O museu conta com uma rara coleção do período
Cretáceo com quase 7 mil exemplares em ótimo estado de conservação. Tudo
começou em 1969, quando o professor Plácido Cidade Nuvens, em visita à
Inglaterra, foi ao Museu Britânico de História Natural, em Londres. "Lá,
vi as peças que na minha infância, em Santana do Cariri, eu costumava
procurar no riacho São Gonçalo nas proximidades da casa de minha avó.
Foi uma grande surpresa", conta. Plácido estudava sociologia na Itália e
naquele instante teve a idéia de criar um museu na sua cidade natal.
"Voltei decidido a montar a coleção." Em 1982, eleito prefeito do
município e para comemorar o 85 º aniversário da cidade, ele inaugurou o
museu formado unicamente com peças da região. "Comprei alguns fósseis
dos caboclos e ganhei muitos outros. O objetivo era preservar as peças
na própria cidade." Com o espírito de pesquisador, Plácido começou a
articular sucessivas excursões de cientistas brasileiros ao interior
cearense, entre eles Diógenes de Andrade, Paulo Brito e mais
recentemente Alexandre Kelnner. Para o professor, a Chapada do Araripe é
um livro cheio de informações que ainda não sabemos ler. O problema,
diz ele, é que o tráfico tem arrancado páginas dessa história. "Ficamos
50 anos com apenas alguns peixes, e agora com as descobertas de novas
espécies e sua imensa diversidade fica claro o pouco que conhecemos
sobre a evolução. Trabalhamos para que os pesquisadores brasileiros
incrementem suas pesquisas e possam conter a saída ilegal dos fósseis."
Apesar do contrabando, felizmente são os cientistas brasileiros que
estão à frente dos principais trabalhos com os fósseis nordestinos,
sobretudo os mais raros. Alexandre Kellner, especialista em
pterossauros, com trabalhos reconhecidos pela New York Paleontological
Society e pelo American Museum of Natural History, deve muito do seu
sucesso às relíquias do Ceará. Os estudos, sob a coordenação de Mary
Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), que procura entender o
surgimento das primeiras plantas com flores, um momento decisivo para a
evolução natural, também merecem destaque. Para entender a importância
da Chapada do Araripe no âmbito internacional, falei com Gero Hillmer,
diretor do museu de paleontologia da Universidade de Hamburgo, na
Alemanha. Considerado um dos maiores especialistas em paleontologia do
mundo, Hillmer vem desde 2005 trabalhando em parceria com os
pesquisadores brasileiros na implantação do geoparque no Araripe. Com a
experiência de quem já escavou nos sítios paleontológicos mais
importantes da Alemanha, ele me explicou que vários aspectos
caracterizam essa região do Brasil, entre eles o magnífico estado de
conservação dos fósseis e a evolução dos insetos, paralelamente ao
surgimento das primeiras plantas com flores. "Certamente, foi a presença
do pólen e do néctar, novidades na natureza naquela época, que atraiu
tamanha diversidade de insetos", complementa. O pesquisador é apenas
mais um entre tantos especialistas que visitam o Araripe em busca de
pistas para entender como diferentes circunstâncias, entre elas a
salinização que impediu que plantas e animais fossem decompostos,
garantiram a conservação de variadas espécies. Só no ano passado,
cientistas de 32 países estiveram na região em busca de pistas para
entender o processo.
De passagem pelo Araripe junto a pesquisadores europeus, o cônsul
honorário da Alemanha no Ceará, Dieter Gerding, se mostrou preocupado
com a questão. "O interminável drama do contrabando de fósseis, do qual
os trabalhadores das minas são apenas vítimas, e que envolve não somente
o desenvolvimento da ciência, mas, sobretudo, a integridade do
patrimônio brasileiro, exige que ações sejam adotadas o mais rápido
possível", afirma. Até porque a história do tráfico de fósseis nessa
área vem de muito longe. Entre 1817 e 1820, enquanto cruzavam o Brasil, o
zoólogo Johann Baptiste von Spix e o botânico Carl Friedrich Phillipp
von Martius receberam de presente, em Oeiras, então capital do Piauí, o
fóssil de um peixe oriundo da Chapada do Araripe. O desenho do animal,
publicado em 1823 num livro da série Reise in Brasilien, que aborda a
viagem dos naturalistas europeus, é tido como o início da paleontologia
nacional - e, por conseqüência, do contrabando. Um tipo de crime
abastecido pela miséria e que parece não ter fim no Nordeste brasileiro.