quarta-feira, 28 de agosto de 2013

ouro na área do garimpo do Manelão (PA)

Oscilações climáticas Plio-Pleistocênicas e sua influência na prospecção de ouro na área do garimpo do Manelão (PA)

Valmir da Silva Souza
Professor do Departamento de Geociências da Fundação Universidade do Amazonas (DEGEO - FUA)
E-mail:vdss@unb.br
Basile Kotschoubey
Professor do Centro de Geociências da Universidade Federal do Pará (CG - UFPA)
E-mail:basile@ufpa.br

Resumo
No garimpo do Manelão, o ouro está associado a veios de quartzo encaixados na seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel. No período Plio-Pleistoceno, sob um clima úmido, desenvolveu-se sobre a seqüência São Manoel uma cobertura laterítica autóctone e imatura. Essa cobertura residual contém partículas de ouro com elevada pureza, sugerindo processos de lixiviação da liga Au-Ag ou de remobilização e redeposição do Au em ambiente laterítico. Durante o Pleistoceno, o clima tornou-se árido a semi-árido, favorecendo a erosão parcial da cobertura laterítica, através dos processos coluviais associados a enxurradas periódicas. Esse depósito coluvial recobre o perfíl laterítico, destruindo um possível padrão de dispersão geoquímica do ouro supergênico e prejudicando a prospecção geoquímica de superfície. No final do Pleistoceno e início do Holoceno, o clima úmido retorna, juntamente com os processos de intemperismo, formando stone line e latossolos. As coberturas laterítica e coluvial serviram de área-fonte para os aluviões atuais a subatuais do igarapé São Manoel, onde o ouro ocorre livre nos estratos sedimentares mais basais, formando concentrações da ordem de 10 g/ton.
Palavras-chave: oscilações climáticas, garimpo do Manelão, ouro laterítico.
Abstract
In the Manelão deposit the gold is associated with quartz veins hosted in the São Manoel metavolcano-sedimentary sequence. At period Plio- Pleistocene, under a humid climate, an autochthonous and immature lateritic cover was developed on the São Manoel sequence. This lateritic cover contains gold particules of high purity suggesting lixiviation or remobilization and redeposition processes of Au-Ag in a lateritic enviroment. During Pleistocene the climate changed to arid or semi-arid favouring the erosion of the lateritic profile through colluvial processes associated with periodical floods. This colluvial deposit cover lateritic profile destroying a possible geochemical disperson of pattern of the supergenic gold and harming the geochemical exploration surface. At the end of Pleistocene and beginning of Holocene the humid climate condition returned and associated with the intemperic processes form stone line and latosols. The lateritic and colluvial cover were the source area for the current alluvial material of the São Manoel river, in which the gold occurs free in the lower sedimentary strata and forms concentrations around 10 g/ton.
Keywords: climatic oscilations, Manelão gold deposit, lateritic gold.
Geolog
ia
Introdução
O garimpo de ouro do Manelão está localizado na região centro-leste do Pará, no município de Senador José Porfírio. É uma área de difícil acesso, sob densa cobertura de floresta, clima tropical chuvoso e relevo dominado por colinas e morros com altitudes variando entre 150 e 250 m. Destaca-se, ainda, um conjunto de serras com cristas alongadas, altitude média de 300 m e orientadas na direção WNW-ESE, as quais formam o lineamento estrutural do Bacajá, aqui denominado zona de cisalhamento transcorrente (ZCT) Bacajá (Figura 1).


Figura 1 - Bloco-diagrama esquemático da área do garimpo de ouro do Manelão, ressaltando as coberturas cenozóicas (perfis A e B) nas frentes de lavra garimpeira.

O levantamento geológico básico, a escala de semidetalhe (1:60.000), realizado em uma área de 230 km2 em torno do garimpo de ouro do Manelão, possibilitou individualizar as seguintes unidades arqueano-proterozóicas: a) Complexo Xingu (Silva, et al., 1974), que representa o embasamento polimetamórfico regional e comparece constituído por uma associação de granitóides e gnaisses de composição granodiorítica a tonalítica; b)seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel (Souza, 1995), constituída por anfibolitos, xistos e quartzito; e c) granitóide Felício Turvo (Souza, 1995), correlacionado aos granitóides estratóides da Suíte Plaquê (Araújo et al., 1988). Completam esse quadro geológico as unidades cenozóicas representadas pelas cobertura laterítica, coluvial e aluvial (Figura 1). A mineralização aurífera está associada principalmente a um sistema de veios de quartzo, desenvolvido dentro do domínio da seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel. O ouro também é encontrado sob a forma de partículas nas coberturas cenozóicas (Souza, 1995).
Esse trabalho descreve as relações litoestratigráficas entre as unidades identificadas no âmbito do garimpo do Manelão e suas influências na prospecção de ouro. A metodologia de trabalho envolveu mapeamento geológico de detalhe (1:2.000) nas escavações garimpeiras, poços e trincheiras, acompanhada de coleta de amostras de rocha, solo e concentrado de batéia. As amostras de rochas e as partículas de ouro coletadas foram submetidas à análise petrográfica através de seções delgadas, polidas e de lâminas de imersão para minerais leves e pesados, auxiliadas por difratometria de raio x. As partículas de ouro foram ainda submetidas a análises por microssonda eletrônica, objetivando carcaterizar sua composição.
 
Geologia do garimpo
A seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel é a principal unidade metalogenética da área, pois hospeda ouro associado a veios de quartzo. Entretanto essa unidade encontra-se encoberta pelas unidades cenozóicas, aflorando apenas ao longo das escavações garimpeiras (Figura 1).
Seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel
É constituída pela intercalação de corpos lenticulares, métricos a decamétricos, de anfibolito, biotita xisto e muscovita quartzito. Essas rochas apresentam estágios deformacionais variando desde protomilonitos até ultramilonitos, reflexos da heterogeneidade deformacional à qual foram submetidas. Anfibolito e biotita xisto exibem, ainda, zonas de alteração hidrotermal dos tipos propilítica e sericítica, desenvolvidas nas áreas de contato com os veios de quartzo.
Os anfibolitos são os principais litotipos dessa unidade. Apresentam cor verde-oliva, granulação fina a média e arranjos texturais grano-nematoblástico, nematoblástico e blastofítico inequigranulares. São constituídos pela associação hornblenda, quartzo, plagioclásio (albita-oligoclásio) e biotita cloritizada, tendo como minerais acessórios epidoto-zoizita, titanita, granada, apatita e opacos (pirita, pirrotita, ilmenita e calcopirita).
Os biotita xistos apresentam cor cinza escuro, granulação fina a média e arranjo textural granolepidoblástico inequigranular. São constituídos por quartzo, biotita cloritizada e plagioclásio (albita-oligoclásio), tendo como acessórios epidoto-zoizita, apatita, granada e minerais opacos (pirrotita, pirita, calcopirita e ilmenita).
Os muscovita quartzitos apresentam cor creme esbranquiçado, granulação média a grossa e arranjo textural granolepidoblástico inequigranular. São constituídos por finos níveis de muscovita pisciformes contornando agregados recristalizados e estirados de quartzo.
Unidades do Cenozóico
Embora o processo de lateritização seja de caráter regional, particularmente na área pesquisada, seu registro está mais bem desenvolvido sobre a seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel. Sobre essa unidade, encontra-se um manto de alteração laterítica do tipo imaturo, com espessura média de 6 metros e compartimentado, da base para o topo, nos horizontes transicional e argiloso mosqueado (Figura 1, perfil A).
O horizonte transicional apresenta espessura média de 2,5 m e preserva, parcialmente, as estruturas tectógenas e texturas de alteração hidrotermal da rocha-mãe. Preserva, ainda, o arranjo geométrico dos veios de quartzo auríferos e fragmentos da rocha-mãe envoltos em aureólas de alteração. É constituído por argilominerais, tipo esmectita e illita, além de quantidades subordinadas de vermiculita, goethita e minerais herdados da rocha-mãe, tais como hornblenda, biotita, clorita e epidoto, os quais encontram-se em desequilíbrio no ambiente intempérico. Esse horizonte evoluiu a partir da rocha-mãe inalterada e representa um estágio precoce de intemperismo laterítico, marcando uma zona intermediária entre a rocha-mãe e o horizonte argiloso mosqueado.
O horizonte argiloso mosqueado possui espessura média de 3,5 m e um contato gradativo e irregular com o horizonte transicional. Apresenta coloração amarelada com manchas e venulações de tonalidades vermelha e violeta, dispostas verticalmente e imprimindo ao conjunto um aspecto mosqueado. A densidade desse mosqueamento varia lateralmente em resposta à diversidade litológica da rocha-mãe. Esse horizonte é constituído por caolinita, quartzo e óxi-hidróxidos de ferro (hematita e goethita) e mostra-se truncado e recoberto por um nível conglomerático de natureza coluvial, marcando um contato brusco e erosivo (Figura 1, perfil A).
O nível conglomerático coluvial é irregular, descontínuo, polimítico e mal selecionado. É constituído por seixos e matacões angulosos a subangulosos de quartzo, fragmentos de brechas e da crosta laterítica ferruginosa, dispostos aleatoriamente em matriz argilosa caolinítica e mosqueada. A presença de fragmentos da crosta laterítica ferruginosa, nessa cobertura coluvial, evidencia que a cobertura laterítica subjacente chegou a desenvolver um horizonte litificado, rico em óxi-hidróxidos de ferro, na sua parte mais superior. Os seixos e matacões de quartzo são provenientes do sistema de veios encaixado na seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel e, em parte, preservados no perfil laterítico. As brechas, por sua vez, são provenientes da ZCT Bacajá, local aonde também são encontrados megaveios de quartzo leitoso e faixas de milonitos e ultramilonitos (Figura 1).
Essa nível conglomerático é sobreposto por um latossolo castanho-claro, de consistência areno-argilosa e com espessura média de 0,5 metro. Esse latossolo contém, ainda, um nível pisolítico descontínuo à base de óxi-hidróxidos de ferro (Figura 1, perfil A).
Ao longo do flat do igarapé São Manoel, encontra-se uma faixa de sedimentos aluvionares depositados diretamente sobre a seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel. Esse aluvião é compartimentado, da base para o topo, nos níveis de cascalho, argilo-arenoso e arenoso, denunciando a presença de diferentes ciclos deposicionais nessa unidade (Figura 1, perfil B).
O nível de cascalho basal com espessura média de 0,6 m é composto por seixos e matacões subarredondados a subangulosos de quartzo, fragmentos de rochas da seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel e de crosta laterítica ferruginosa, dispostos em matriz argilo-arenosa de coloração azul-esverdeada. Essa matriz é constituída basicamente por argilominerais (caolinita, illita e esmectita), quartzo, micas (clorita, muscovita, vermiculita), epidoto, zircão, turmalina, fragmentos de rochas e partículas de ouro. Os cristais de epidoto, zircão e turmalina exibem formas prismáticas euédricas a subédricas, com terminações piramidais e pouco fraturados, denunciando seu curto transporte.
O nível de cascalho basal é sobreposto, gradacionalmente, por um nível argilo-arenoso de cor azul-esverdeada, finamente laminado e com espessura média de 3 m. Apresenta a mesma composição mineralógica da matriz do nível de cascalho, além de conter lentes de seixos de quartzo, diminutos fragmentos de rochas da seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel e restos de vegetais.
O nível argilo-arenoso é sobreposto, bruscamente, por um nível arenoso de cor creme-esbranquiçada e espessura média de 0,8 m. Apresenta granulometria média a grossa, estratificação cruzada acanalada de dimensões centimétricas e é constituído por grãos de quartzo e fragmentos de rochas angulosos a subangulosos e mal selecionados.

Distribuição do ouro
No sistema de veios de quartzo, o ouro é encontrado sob a forma livre, formando agregados de partículas de dimensões milimétricas, preenchendo fissuras ou dispersos na ganga quartzosa. Esse ouro apresenta grau de pureza ou fineness(1000Au/Au+Ag) médio na ordem de 860, distribuído em 85,2% Au, 13,4% Ag e 1,4% Pt, Sb, Te, Bi, Se e As (Souza, 1995).
Na cobertura laterítica, o ouro é encontrado no horizonte argiloso mosqueado e em fragmentos da crosta laterítica ferruginosa dispersos no nível conglomerático coluvial. No horizonte argiloso mosqueado, o metal ocorre sob a forma de partículas delgadas e granulares, com tamanho inferior a 1 mm. Já nos fragmentos da crosta laterítica ferruginosa, o ouro pode ocorrer, tanto sob a forma granular, como dendrítica, com tamanho normalmente inferior a 2 mm e exibindo discretas feições de corrosão e sobrecrescimento. Nesse ambiente residual, o ouro apresenta um fineness médio na ordem de 990, distribuído em 97,6% Au, 1,6% Ag e 0,8% Pt, Sb, Te, Bi, Se e As (Souza, 1995).
O elevado grau de pureza do ouro laterítico, comparado com o ouro primário, sugere que o ouro primário ou protominério foi submetido a processos de lixiviação da liga Au-Ag e outros metais ou mesmo de remobilização e reprecipitação do Au em ambiente laterítico.
No nível conglomerático coluvial, o ouro também é encontrado em partículas com elevada pureza, indicando sua natureza laterítica com posterior retrabalhamento pelo processo coluvial. Esse ouro mostra-se distribuído de modo bastante heterogêneo, associado à matriz caolinítica mosqueada e aos fragmentos da crosta laterítica ferruginosa. Contudo foram registradas ocorrências de pepitas com até 3 gramas nesse colúvio, levando garimpeiros e empresas de mineração que ali atuam a tratar essa cobertura coluvial como um depósito economicamente viável.
Na cobertura aluvial, onde estão concentradas a maioria das frentes garimpeiras, o ouro é encontrado livre, sob a forma de pepitas granulares subarredondadas, de tamanho milimétrico, exibindo superfície levemente polida e concentradas principalmente nos extratos sedimentares mais basais. A maioria das partículas desse ouro apresentam elevado grau de pureza, denunciando que esse metal é principalmente produto do retrabalhamento dos depósitos laterítico e coluvial.

Oscilações climáticas
A partir do final do Terciário e durante parte do Quaternário, a região Amazônica assistiu à instalação de um segundo ciclo de lateritização, caracterizado pelo desenvolvimento de coberturas residuais imaturas. Esse ciclo foi marcado pela alternância periódica das condições climáticas, variando entre os tipos úmido e árido, favorecendo ao surgimento de processos sedimentação coluvial (Costa, 1991).
Dentro desse contexto, admite-se que, no final do Plioceno e no início do Pleistoceno, a área do garimpo do Manelão encontrava-se sob um clima tropical úmido com cobertura de floresta e estabilidade tectônica. Essas condições favoreceram o desenvolvimento de uma cobertura laterítica autóctone e imatura, principalmente sobre os litotipos da seqüência metavulcano-sedimentar São Manoel (Figura 2A).


Figura 2 - Evolução e compartimentação das coberturas cenozóicas produzidas pelas oscilações climáticas identificadas na área do garimpo de ouro do Manelão (Modelo adaptado de Bigarella e Backer, 1975).

Durante o Pleistoceno, o clima, anteriormente úmido, tornou-se seco, com características árida a semi-árida, favorecendo a substituição da cobertura de floresta por savana e permitindo a intensificação dos processos erosivos. Sob essas condições climáticas, as chuvas torrenciais, ou enxurradas periódicas, proporcionaram a migração do regolito e a conseqüente erosão parcial da cobertura laterítica, na altura de seus horizontes mais superiores. Os detritos produzidos por esse processo foram transportados e acumulados em direção aos vales e depressões, originando depósitos coluviais de encosta de serra, formados após curto transporte e rápida deposição (Figura 2B).
No final do Pleistoceno e no início do Holoceno, o clima úmido retorna, juntamente com a cobertura de floresta, impondo uma retomada dos processos intempéricos sobre as unidades preexistentes, inclusive dos lateritos imaturos, com formação de níveis pisolíticos, stone line e latossolos. Com a instalação da rede de drenagem, as coberturas lateríticas e coluvial foram retrabalhadas, servindo de área-fonte para as faixas de sedimentos aluvionares atuais a subatuais, que constituem o flat do igarapé São Manoel (Figura 2C).

Considerações Finais
Dependendo das caraterísticas geológicas do depósito primário e, principalmente, da composição química e da maturidade do perfil de alteração laterítica, o ouro, nesse ambiente residual, pode estar concentrado em diferentes horizontes. Entretanto existe a tendência de o ouro concentrar-se nos horizontes mais superiores, onde suas partículas ocorrem associadas a óxi-hidróxidos de ferro e podem sofrer sobrecrescimento, aumentando sua granulometria (Mann, 1984; Webster & Mann, 1984; Benedetti & Boulègue, 1991; Bowell et al., 1993).
Tal característica tem sido utilizada como guia prospectivo nas regiões equatoriais potencialmente lateríticas do mundo, onde foi possível estabelecer, através da geoquímica de superfície, padrões de dispersão do ouro supergênico delineando a geometria aproximada do corpo mineralizado subjacente (Smith, 1989; Leconte & Colin, 1989; Porto, 1991; Lintern et al., 1997). Entretanto alguns depósitos lateríticos da África e do Brasil, em particular na Amazônia, foram submetidos a processos erosivos coluviais, sendo truncados e recobertos por material alóctone com características químico-mineralógicas distintas. Nesses depósitos, o padrão de dispersão das partículas ou a assinatura geoquímica do ouro supergênico mostram-se deslocados, difusos ou mesmo encobertos, não refletindo a real concentração do metal ao longo do perfil de alteração ou mesmo na rocha-mãe protomineralizada (Costa, 1993).
Essa situação geológica é observada no âmbito do garimpo de ouro do Manelão. O nível conglomerático coluvial, que trunca e recobre o perfil laterítico na altura de seus horizontes mais superiores, interfere negativamente nos resultados obtidos pela geoquímica de superfície. Análises para ouro, em amostras de solo coletadas no horizonte de latossolo e no nível conglomerático (Figura 2, perfil A), não apresentaram nenhum padrão de dispersão geoquímica que possibilitasse correlacionar com a concentração do metal no perfil de alteração ou na rocha-mãe promineralizada.
A presença de pepitas de ouro de tamanho anômalo, nesse conglomerado coluvial, também pode levar a erros de avaliação, durante a prospecção geoquímica de superfície. Isto porque os processos de transporte e de deposição de detritos coluviais, durante as enxurradas periódicas, ocorrem ao longo de um complexo sistema de pequenos canais entrelaçados. Nesse ambiente de sedimentação coluvial, dependendo do regime de fluxo, as eventuais partículas de ouro que estavam presentes no ambiente laterítico subjacente são transportadas e depositadas de forma aleatória ao longo desses pequenos canais. Essa forma de distribuição das partículas de ouro também não reflete a real concentração do metal no perfil de alteração ou mesmo na rocha-mãe protomineralizada.
Deve-se considerar, ainda, que, em alguns perfis lateríticos bauxíticos mais evoluídos e desenvolvidos sobre seqüências metavulcano-sedimentares arqueanas, do tipo greenstone belts, a heterogeneidade litológica da rocha-mãe pode formar barreiras geoquímicas que interferem na distribuição lateral do ouro (Davy & El-Ansary, 1986; Monti, 1988).
Essa também é uma situação geológica observada no garimpo do Manelão, onde a heterogeneidade litológica da rocha-mãe é refletida nas marcantes variações laterais de cor, textura e composição mineralógica dos horizontes lateríticos. Logo, o esclarecimento a respeito dos mecanismos de lixiviação, ou de remobilização da liga Au-Ag no âmbito do garimpo do Manelão, necessita da caracterização química do perfil laterítico.
Por outro lado, ao longo da cobertura aluvial, formada principalmente pelo retrabalhamento das coberturas laterítica e coluvial, o ouro no garimpo do Manelão ocorre livre e chega a formar concentrações próximas de 10 g/ton, atraindo a maioria das frentes de lavra garimpeira.
 

OURO EM Araras, Imbaúba, Morrinhos, Periquitos - Montezuma Cruz

Araras, Imbaúba, Morrinhos, Periquitos - Montezuma Cruz  

Vai quem quer, Tamborete, Morrinhos, Sovaco da Velha, Araras, Periquitos e Imbaúba são alguns nomes de garimpos de ouro no Rio Madeira entre os anos 1970 e 1980. Aqueles homens nômades, vindos de outros estados amazônicos engrossaram as estatísticas da malária, consumindo altos volumes de boldo, jurubeba, eparema, aralém e eparex. Esses remédios diminuíam-lhes a ânsia de salvar o fígado.
Mutumparaná, 1980: o bamburro nos aluviões era privilégio de poucos. Mesmo entrando no batente ao nascer do sol e permanecendo até o entardecer, os garimpeiros não obtinham mais que cinco gramas diárias. Numeroso grupo de blefados contrastava-se aos felizes irmãos de Serra Pelada (PA), onde havia ouro de mina.
Um ano antes, em 1979, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) estimava em 192 Km2 a reserva garimpeira do rio Madeira, cuja área e se estendia por 180 quilômetros acima de Porto Velho, reunindo cerca de 20 mil pessoas. Durante o mergulho, muitas perderam a vida em brigas fúteis, ou baleadas em tiroteio com jagunços de mineradoras e policiais.
O homem destruía o próprio homem. Ambiciosos balseiros cortavam criminosamente o mangueiro de ar dos mergulhadores, matando-os no fundo do rio. Explicava-se às custas de que e de quem alguns desses balseiros bamburravam com mais de 50 gramas. Nenhum cartório registrava óbito dessa natureza. Ficava por isso mesmo. Com raras exceções, garimpeiro não tinha parente.
No começo de outubro de 1980 fui ver o falado Sovaco da Velha, um aglomerado de casebres cobertos de palha, a 15 minutos de lancha-voadeira do vilarejo de Vai quem quer, a três quilômetros de Mutumparaná e a 163 km de Porto Velho.
A faiscação manual era movida também por motores de 32HP; o alto-falante ecoava na floresta os sucessos de Amado Batista, Reginaldo Rossi, Odair José e outros ídolos das noitadas dos prostíbulos à beira-rio. Uma grama equivalia a 1.150 cruzeiros nas lojas porto-velhenses, a maioria concentrada na Avenida Sete de Setembro. Dinheiro suficiente para o garimpeiro pagar as parcelas do tratamento farmacêutico de suas malárias ou a extração de um dente.
Na vida dura daqueles barrancos e praias insalubres, o esgoto e o lixo se misturavam ao mercúrio, de efeitos letais. Meio litro de soro custava 800 cruzeiros, a injeção de aralém, 15. Os febris bebiam muitos antitérmicos, pagando por eles entre 10 e 20 mil cruzeiros quando a doença se agravava – quase sempre.
A paranaense Cecília Brzezinski, prática em enfermagem e proprietária da uma das drogarias no Vai quem quer, apurou a ocorrência média de cinco a dez casos de malária por dia. Doenças venéreas nem se fala! Para combatê-las, usava-se a dolorosa injeção de benzetacil e os poderosos antibióticos tetrex e rifaldim. “Doeu muito?” – era a pergunta corriqueira.
A gonorréia fazia vítimas quase no mesmo ritmo da malária. Ao mesmo tempo o contrabando empurrava quilos do metal para o Exterior, principalmente via Bolívia e Peru.
A Delegacia da Receita Federal e a PF confiscavam ouro sem nota, não devolvendo o produto em hipótese alguma, mesmo que o garimpeiro recolhesse o valor do célebre IUM (Imposto Único Sobre Mineração).
Curiosa, mas lamentável a atuação da polícia rondoniense: à falta de efetivo na RF, ela se investia da competência de parar os ônibus de linha para demoradas revistas. Isso criava uma situação anômala, pois nem os fiscais de tributos davam conta de tanto serviço naquelas vilas em ebulição, no caminho para o Acre. Um deles, Manoel Rodrigues Filho, voltava desolado para Brasília. Não dera conta de cumprir a missão.

Em nome do ouro

Em nome do ouro

Às margens do rio e da lei, o garimpo de ouro flerta historicamente com a clandestinidade. Em iniciativa pioneira, Amazonas estabelece normas estaduais para regulamentar o ofício. A decisão, entretanto, incita questionamentos, sobretudo quanto ao uso do mercúrio.
Por: Henrique Kugler
Publicado em 17/06/2013 | Atualizado em 18/06/2013
Em nome do ouro
A recente alta no preço do ouro parece motivar no Brasil uma renovada sede mineradora. As leis que regem a atividade no país são várias, mas não têm dado conta de proteger garimpeiros, meio ambiente e sociedade. (foto: Dieter Hawlan/ iStockphoto)
A saga do garimpeiro já foi enredo de contos, cobiça e violência. De conflitos de terra a pecados ambientais, histórias de garimpagem têm quase sempre um coadjuvante em comum: o mercúrio – um dos metais pesados mais tóxicos para a saúde humana.
Para o cientista, é um elemento químico de 86 prótons. Mas, para o garimpeiro, é mais do que isso: é o líquido prateado responsável pela alquimia da sobrevivência. Explica-se: como agulhas em um palheiro, os minúsculos fragmentos de ouro ficam aleatoriamente espalhados pelo cascalho arenoso que o minerador retira do subsolo ou do leito dos rios. A esse material bruto é adicionado mercúrio. Líquido à temperatura ambiente – é o único metal conhecido com tal propriedade –, ele agrega os pequeníssimos grãos dourados e forma uma liga metálica. Essa mistura é então aquecida; o mercúrio evapora; e assim o ouro puro chega às mãos do minerador. Tecnologia deveras rudimentar.
Mas, onipresente na mineração artesanal de ouro, o mercúrio tem preocupado a comunidade científica desde fins da década de 1960, quando se intensificaram os estudos sobre a toxicologia desse metal. “Danos irreversíveis ao sistema nervoso, inclusive o comprometimento de áreas do cerebelo associadas a funções motoras, auditivas e visuais, são alguns dos males que o mercúrio costuma causar em seres humanos”, diz o biólogo Wanderley Bastos, da Universidade Federal de Rondônia (Unir). “Uma vez lançado no ecossistema, o mercúrio foge totalmente de nosso controle; e ainda não temos tecnologias para frear os processos biogeoquímicos de sua disseminação.”
Mercúrio
O mercúrio é um dos metais pesados mais tóxicos para a saúde humana. No garimpo do ouro, ele é usado para agregar os grãos dourados que ficam espalhados pelo cascalho arenoso retirado do subsolo ou do leito dos rios. (foto: Flickr/ p.Gordon – CC BY 2.0)

Garimpo revisitado

A relação entre mercúrio e garimpo é tema clássico para polêmicas ambientais. E a última delas – que reavivou um debate adormecido – veio à tona em maio de 2012, quando a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS) publicou uma resolução que causou celeuma entre cientistas e legisladores.
Trata-se da Resolução 11/2012. Na contramão da história, o documento regulamenta o uso de mercúrio no garimpo artesanal – quando o mundo todo se movimenta para banir ou impor restrições severas no emprego desse perigoso elemento químico.
Delicado impasse. Pois há na iniciativa da SDS uma boa intenção – pôr ordem na casa e disciplinar o garimpo no estado. Pelos rincões da Amazônia, afinal, a lavra do ouro é uma labuta que historicamente flerta com a clandestinidade. Há gerações o valioso metal dourado é via de sobrevivência para famílias que habitam as remotas paragens da planície amazônica. Mesmo assim, os estados da região jamais se engajaram na tarefa de legislar sobre a atividade. “O garimpo, portanto, acontece há décadas sem qualquer tipo de controle legal ou critério”, contextualiza o procurador da República Leonardo Macedo, do Ministério Público Federal (MPF).
Macedo: “O garimpo, portanto, acontece há décadas sem qualquer tipo de controle legal ou critério”
Eis que entra em cena a Resolução 11/2012. Com ela, o Amazonas tornou-se o primeiro estado do país a rezar uma legislação específica sobre garimpo. Nada mal, em princípio. Mas o texto desagradou a muitos. A comunidade científica não tardou a se manifestar; a sociedade civil fez-se ouvir; e o próprio MPF não deixou barato.

Lei manca

“Regularizar a atividade garimpeira e retirá-la da clandestinidade é algo louvável, mas isso não pode acontecer à custa da liberação do despejo de mercúrio nos rios e no ambiente”, lê-se na carta aberta assinada pelo físico Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia (Musa), em Manaus (AM), e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. “Desejamos alertá-lo, senhor governador, que o mercúrio é um metal extremamente tóxico, fato que não é mencionado na resolução.”
O documento foi acusado de ser permissivo – além de sugerir procedimentos de segurança pouco específicos e de duvidosa eficácia. Em linhas gerais, ele afirma que as regiões de garimpo devem ser previamente sujeitas a estudos de impacto ambiental; a origem do mercúrio deve ser comprovada; as áreas de lavra devem ser monitoradas por técnicos do estado; os rejeitos do mercúrio devem ser encaminhados à sede municipal, onde serão devidamente acondicionados; e o garimpeiro deve, obrigatoriamente, usar um equipamento chamado retorta (ou cadinho).
Candotti: “Regularizar a atividade garimpeira e retirá-la da clandestinidade é algo louvável, mas isso não pode acontecer à custa da liberação do despejo de mercúrio nos rios e no ambiente”
É um aparato metálico assemelhado a um forno, que aquece o amálgama e separa o ouro de forma segura, pois, sendo um sistema fechado, evita que o vapor de mercúrio seja emitido à atmosfera ou inalado pelo trabalhador. A retorta permite ainda reaproveitar o mercúrio que seria despejado no solo ou nas águas.
À primeira vista, a resolução soa bem razoável. Mas o preocupante não é o que o texto diz; e sim o que ele não diz. “Pois estão ausentes os mecanismos adequados de controle ambiental”, critica Macedo. Um exemplo: “Apesar de obrigar o garimpeiro a utilizar retorta, o texto ignora o processo de certificação necessário para garantir a eficiência do equipamento”, alerta o procurador.
Além disso, a resolução não proíbe o garimpo em áreas já degradadas ou em territórios onde a presença de mercúrio é naturalmente alta (ver ‘Natural ou antrópico’). “Diante das críticas, o estado do Amazonas abriu-se para o diálogo”, conta o procurador. Semestre agitado para os amazonenses: foram organizados debates, encontros e palestras para discutir o polêmico texto. “Assim conseguimos alterar a Resolução 11/2012 e substituí-la pela Resolução 14/2012”, atualmente em vigor.
Natural ou antrópico
Nos solos e rios amazônicos, que parcela do mercúrio é oriunda de atividades antrópicas e que parcela advém de condições naturais? Questão em aberto. Por suas características físicas, nossa floresta equatorial estoca quantidades naturalmente elevadas do metal – quatro vezes mais do que solos de regiões temperadas, segundo Wanderley Bastos, mesmo em áreas distantes de garimpo ou indústria. Erupções vulcânicas várias, ao longo da história geológica, emitiram mercúrio à atmosfera. Esse material foi se depositando nos solos. E a floresta amazônica, se intacta, estoca enorme quantidade mercurial. Se destruída, porém, o mercúrio ali armazenado é fatalmente carreado aos cursos d’água. “Uma vez no sistema aquático, não mais importa se ele é de origem antrópica ou natural”, diz Bastos. Nos rios ele passará da forma inorgânica para a forma orgânica, contaminando a cadeia alimentar. Sabe-se que, nos últimos 150 anos, a quantidade de mercúrio na atmosfera aumentou em mais de 300%, devido sobretudo às atividades industriais relacionadas à produção de carvão mineral.


Menos pior

O novo texto proíbe garimpo em regiões com altas concentrações de matéria orgânica – caso das áreas banhadas pelo rio Negro, por exemplo. Pois ambientes assim favorecem a reação que transforma o mercúrio metálico (Hg) em metilmercúrio (CH3Hg+) – a forma química mais tóxica do elemento. Uma vez transformado, o mercúrio é rapidamente absorvido pelos organismos vivos e incorporado à cadeia alimentar. “Acumula-se nos tecidos dos peixes e, cedo ou tarde, chega ao homem”, explica Bastos.
O novo texto prevê rigoroso controle do comércio de mercúrio metálico. E exige a certificação das retortas pelo Instituto de Pesos e Medidas (Ipem). Mas há aí um singelo entrave: “Não adianta o garimpeiro simplesmente ter a retorta, ainda que certificada; ele precisa usá-la”, enfatiza Macedo. “Em visitas a regiões de garimpo no Amazonas, averiguamos que várias balsas tinham, sim, esse equipamento. Mas estavam novos, isto é, jamais tinham sido utilizados.”
Forsberg: “A resolução é relativamente boa. Minha dúvida: sua implementação poderá mesmo ser fiscalizada?”
Se os pessimistas estiverem certos, a Resolução 14/2012 tem tudo para ser uma lei para amazonense ver. Exatamente por isso ela passará por um período de testes. “Serão três anos de avaliação”, prevê Macedo. “Se, ao longo desse período, o MPF entender que danos irreversíveis continuam sendo causados aos ecossistemas, nada impede que trabalhemos para impugnar a resolução.”
Por outro lado, se o novo texto funcionar a contento – o que requer otimismo panglossiano – ele será um marco histórico para o garimpo amazônico. “Pois será a primeira vez que o Brasil logrará êxito na regulamentação de uma atividade historicamente exercida à margem da lei”, diz Macedo, com ceticismo no tom de voz.
“A resolução é relativamente boa”, comenta o ecólogo Bruce Forsberg, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que participou das discussões e da reelaboração do texto. “Minha dúvida: sua implementação poderá mesmo ser fiscalizada?”

Garimpo na lei?
Enquanto cientistas e legisladores duelam, os afeiçoados pelos aspectos burocráticos do imbróglio certamente se interessarão pelo cenário jurídico em que se insere o debate. Além da legislação estadual recentemente aprovada no Amazonas, o Brasil tem, engavetado, um eclético cardápio de leis sobre garimpo e mineração. Eis as três principais:
São documentos de abrangência federal que estabelecem diretrizes gerais sobre o trabalho da garimpagem. “Mas a legislação federal é ‘genérica’ e requer regulamentações específicas em âmbito estadual”, explica o procurador da República Leonardo Macedo. Segundo o Decreto 97.507/1989, “é vedado o uso de mercúrio na atividade de extração de ouro, exceto em atividade licenciada pelo órgão ambiental competente”. Em outras palavras, usar mercúrio é proibido – a não ser que o estado defina suas próprias regras. Daí a importância da nova resolução do Amazonas: ela traz especificidades e detalhamentos para complementar o conjunto de leis federais em vigor.


Dados aterradores

Enquanto leis e burocracias duelam, muitas regiões da Amazônia já apresentam quadros preocupantes de contaminação por mercúrio. Ao longo do rio Madeira, que passa por Porto Velho (RO) e deságua no rio Amazonas, a presença desse metal pesado no organismo dos ribeirinhos vem sendo monitorada há décadas.
Os habitantes de São Sebastião do Tapuru (AM) têm em média 62 mg/g de metilmercúrio no organismo – quando o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de apenas 7 mg/g. De municípios ao longo do curso das mesmas águas não vieram melhores notícias. Em Três Casas (AM), são 33,07 mg/g; Vista Nova (AM), 25,69 mg/g; Carará (AM), 18,13 mg/g; Santa Rosa (RO), 13,99 mg/g; Santo Antônio do Pau Queimado (RO), 14,69 mg/g; e por aí vai.
“A média de concentração mercurial nas populações isoladas do rio Madeira é de 15 partes por milhão, isto é, o dobro do valor considerado normal pela OMS”, preocupa-se Bastos.

Veja os dados completos no mapa interativo
‘Contaminação por mercúrio’


Mercúrio e saúde

Existem duas maneiras de se medir a quantidade de mercúrio no organismo humano. Se o vapor do metal é inalado, sua presença será detectada na urina. Mas, se ingerido a partir de peixes ou demais alimentos contaminados, será aferido em amostras de fio de cabelo.
“São quadros toxicológicos diferentes”, detalha Bastos. O mercúrio inorgânico – isto é, o vapor do metal inalado durante a queima do amálgama para separar o ouro – provoca danos aos rins e ao sistema respiratório. “Apesar de garimpeiros ainda sofrerem desses problemas, eles já foram muito mais comuns nas décadas passadas”, lembra o pesquisador da Unir.
“Na Amazônia, quanto mais isolada a população, maior seu consumo de peixe”
Hoje, pesquisadores preocupam-se especialmente com a forma orgânica, o metilmercúrio, que praticamente não é excretada. É um processo lento e cumulativo: o elemento permanece no organismo pelo resto da vida. “Por isso a contaminação por mercúrio é um grave problema de saúde pública há mais de 50 anos”, escreve a bióloga Sandra Hacon, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Retardo mental, paralisia cerebral, surdez, cegueira e disartria em indivíduos expostos ainda no útero materno; e danos sensoriais e motores graves em indivíduos expostos na idade adulta” são alguns exemplos de males elencados pela bióloga da Fiocruz.
“Na Amazônia, quanto mais isolada a população, maior seu consumo de peixe”, diz Bastos. No Brasil, a média nacional é de 60 a 90 g diárias. Mas cálculos da equipe da Unir constataram que, em algumas regiões amazônicas, o consumo de pescados per capita chega a 406 g ao dia. “Desconheço alguma população no mundo que apresente uma média tão elevada”, surpreende-se o pesquisador.
Peixes amazônicos
O mercúrio ingerido a partir de peixes, consumidos em grande quantidade pelas comunidades amazônicas, permanece no organismo pelo resto da vida, podendo acarretar danos sensoriais e motores graves em indivíduos expostos. (Angela Peres, Secom-Acre/ Flickr – CC BY 2.0)
“Mas há aqui uma interrogação”, comenta Bastos. “Mesmo sendo o mercúrio um elemento neurotóxico, algumas populações não apresentam os efeitos clássicos da toxicologia mercurial”. Pesquisadores acreditam que outros componentes da dieta dos ribeirinhos possam atenuar os danos esperados. “Uma hipótese é que o selênio, presente na castanha-do-pará e frutas locais, evite quadros de contaminação por mercúrio”, arrisca o biólogo da Unir, lembrando que essa é ainda uma questão em aberto.

Mapa da mina

No Brasil, a produção industrial de ouro – a extração em minas de grande porte – concentra-se nos estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia. Mas, ao falarmos da extração artesanal, a geografia é outra. Mato Grosso, Pará e Rondônia são os principais estados onde se concentra o garimpo de ouro. Destaque para as bacias dos rios Tapajós e Madeira.
Importante: nas grandes indústrias, a obtenção do ouro não utiliza mercúrio. Mas sim cianeto. Esse composto químico – formado por ligações entre átomos de carbono e nitrogênio – é diluído em uma solução aquosa, que, despejada sobre o minério bruto, provoca reações químicas capazes de diluir os fragmentos de ouro. O metal é então incorporado à solução líquida, e, em seguida, separado por um processo eletrolítico.
Há quem cogite o uso de cianeto – como alternativa ao mercúrio – também no garimpo artesanal. Substituição questionável. “É um processo bastante complexo que, além de exigir cálculos apurados, requer muitos cuidados; e o cianeto também é altamente tóxico”, comenta o cientista político Armin Mathis, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que há tempos dedica-se ao estudo das relações sociais no garimpo. Cenário que nos remete a uma legítima dúvida: quantas pessoas, atualmente, trabalham no garimpo de ouro?
“Não existem dados oficiais sobre o número de pessoas ligadas à mineração de ouro”, informou o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). “E os números extraoficiais são bastante divergentes.” O que se sabe é que existem, hoje, 853 registros de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) – documento que permite a extração de ouro em garimpo. E, no momento, o DNPM analisa mais de 16 mil pedidos de permissões desse tipo – solicitadas por empresas ou indivíduos desejosos de tentar a sorte, ou a sobrevivência, na lavra do ouro.
Queima do ouro
Queima do ouro. De acordo com o Departamento Nacional de Produção Mineral, não existem dados oficiais sobre o número de pessoas ligadas à mineração de ouro no Brasil. Pesquisador da UFPA estima que haja atualmente cerca de 20 mil pessoas trabalhando diretamente no garimpo. (foto: Marieke Heemskerk)
“Imagino que existam, hoje, algo em torno de 20 a 30 mil pessoas trabalhando diretamente com o garimpo”, estima Mathis. Sejam quais forem os números, é certo que estão aumentando. A recente e assombrosa alta no preço do ouro parece motivar uma sede mineradora sem precedentes na última década.

Alternativas

“Sou favorável à não utilização de mercúrio em qualquer processo, seja industrial ou artesanal”, defende Wanderley Bastos. “Quanto menos emissões de mercúrio, menos riscos para o ecossistema e os seres humanos.” Para alguns, entretanto, não há alternativas para substituir esse metal. Será? “Alternativas nós temos; mas nenhuma delas é de fácil implementação”, comenta o procurador Leonardo Macedo.
Macedo: “Alternativas nós temos; mas nenhuma delas é de fácil implementação”
“Existem técnicas gravimétricas”, lembra Bastos. São métodos que permitem ao garimpeiro separar o ouro do sedimento em uma espécie de mesa vibratória, que ao vibrar separa o cascalho, que é leve, do ouro, mais pesado. Impasse: essas mesas funcionam melhor em terrenos estáveis, e não nas balsas usadas para dragar o leito dos rios.
Apesar disso, há casos de sucesso. Em Humaitá (AM), a Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam) já usa essa tecnologia em algumas balsas. “Os riscos ambientais são minimizados por se tratar de uma separação mecânica, e não química”, diz Geomário Leitão, gerente da cooperativa. “O governo poderia estimular estudos nessa direção”, sugere o biólogo da Unir. Mas, mesmo assim, problemas como erosão podem continuar.

Mercado e conspiração

A Organização das Nações Unidas (ONU) vem coordenando esforços para reduzir ou até restringir as vendas de mercúrio metálico no mundo. “Mas esses esforços vêm sendo frustrados, em parte, por um lobby bastante forte dos países em desenvolvimento; e o Brasil é um dos que lideram essa pressão”, alfineta Bruce Forsberg, do Inpa. “Mas, como sou gringo, não posso opinar muito”, brinca ele, que é estadunidense.
Forsberg diz que os maiores interessados em restringir uso e produção de mercúrio são os próprios Estados Unidos – que têm um belo estoque desse metal, estratégico para fins militares. “Se as minas de mercúrio ainda em operação, na China, na Rússia e na Espanha, encerrarem suas atividades, será um ótimo negócio para os norte-americanos, que terão domínio sobre esse mercado”, matuta o ecólogo do Inpa. Seriam, pois, os debates sobre mercúrio uma conspiratória estratégia geopolítica? “Depende do quão desconfiado você é”, ri Forsberg.
No território da diplomacia, entretanto, otimistas veem promissoras notícias. “O Brasil vem participando da preparação de um instrumento global juridicamente vinculante sobre mercúrio”, disse Letícia Reis de Carvalho, diretora do Departamento de Qualidade Ambiental, do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Em janeiro passado, representantes de 140 países se reuniram em Genebra (Suíça) para finalizar um documento que orientará políticas internacionais acerca da utilização de mercúrio em garimpo. Estamos falando da Convenção de Minamata – que entrará em vigor em outubro deste ano –, da qual o Brasil será provável signatário.
Carvalho: O governo acredita que formalizar a atividade, diminuir drasticamente a emissão e buscar alternativas propiciará resultados contra o uso indiscriminado do mercúrio no garimpo
A convenção fala em “taxas de redução”. Carvalho destaca alguns itens: o texto recomenda ações para eliminar processos de amalgamação de minério e queima a céu aberto; prevê formalização da atividade garimpeira e adoção de estratégias para reduzir a exposição ao mercúrio; e, é claro, incentiva estudos sobre alternativas aos métodos tradicionais da lavra garimpeira.
“Controlar o uso do mercúrio no garimpo artesanal de ouro é um desafio para o Brasil”, afirma Carvalho. “O governo acredita que formalizar a atividade, diminuir drasticamente a emissão e buscar alternativas propiciará resultados contra o uso indiscriminado desse metal no garimpo.” Mas, um momento... O que dizem, afinal, os próprios garimpeiros? “Algum dia o senhor imagina trabalhar sem mercúrio?”, perguntou Leonardo Macedo a um deles. “Não”, respondeu o velho homem. “Sou garimpeiro há 30 anos, e tanto meu pai quanto meu avô sempre usaram mercúrio. Foi sempre assim”