Sobre mineração e sustentabilidade
Em sua coluna de julho, o biólogo Jean Remy Guimarães aborda
o interesse renovado pelo garimpo do ouro na Amazônia. O material
desprezado por garimpeiros há 20 anos é agora retrabalhado por meio de
processo altamente agressivo ao meio ambiente.
Com a subida do preço do ouro, a atividade mineradora ganha
novo fôlego. Áreas exploradas na Amazônia na década de 1980 voltam a dar
lugar aos mineiros, afetados diretamente pelos elementos tóxicos
envolvidos na extração de metais. (montagem: C. Almeida)
A mineração é, por natureza, atividade não sustentável. Vive da
extração de minerais cujos estoques são finitos. Uma vez exauridos, a
única opção será reciclar os metais já extraídos.
Na maior parte dos casos, busca-se extrair um elemento valioso que
está presente no minério em teores de gramas por tonelada. Para chegar
ao minério, é necessário remover quase tudo o que há no caminho e achar
onde botar tudo isso. O lugar designado para tal é adequadamente chamado
de bota-fora. É nele que se descartam montanhas de material processado,
rebaixado agora ao termo ‘estéril’.
No caso da mineração de ouro, por exemplo, gera-se cerca de uma
tonelada de estéril para se obter três gramas do precioso metal.
Dependendo de seu teor de água, o estéril é empilhado ou recolhido em
bacias de decantação, cujos diques teimam em sofrer infiltração ou,
pior, rompimento, geralmente em época de chuva.
Já as pilhas de estéril causam outro problema, a drenagem ácida. Os
minérios são frequentemente ricos em enxofre, que forma sulfatos,
combustível das bactérias sulfato-redutoras, cuja atividade incessante
gera ácido sulfúrico. O chorume formado nessas pilhas de estéril pode
ter acidez suficiente para matar dezenas de quilômetros da bacia de
drenagem a jusante.

- Os resíduos da atividade
mineradora são, em geral, empilhados ou recolhidos em bacias de
decantação. O chorume formado nessas pilhas é extremamente ácido e
nocivo ao meio ambiente.
Falei em teor de água. Água de onde e para quê? Água de onde houver,
em quantidade, para processar o minério moído, que se torna, assim, uma
polpa, que pode ser bombeada, agitada e misturada homogeneamente com
reagentes diversos. O fato de certas frações da polpa serem mais leves
ou hidrofóbicas permite também removê-las por flotação, um processo
parecido ao que se faz na cozinha com uma escumadeira.
Caramba, ainda não extraímos quase nada e já ocupamos uma área enorme
com material inservível para agricultura e geralmente inadequado para
construção, e transformamos rios de água em rios de lama. E, por
enquanto, falamos mais da física do que da química e da toxicologia do
processo.
Amalgamação e cianetação
Seguindo com nosso exemplo do ouro: há vários processos para sua
extração, mas os mais usados são a amalgamação com mercúrio metálico e a
cianetação. O mercúrio é um elemento muito peculiar, líquido e pouco
volátil à temperatura ambiente, condutor, e capaz de dissolver outros
metais.
Entre muitos outros usos, essas propriedades permitem fazer
obturações dentárias baratas e duráveis – misturando-se mercúrio, prata e
cobre – e também extrair ouro fino de solos e sedimentos. Depois de
amalgamado com o ouro e a prata ali contidos, o mercúrio é removido por
aquecimento.
Naturalmente, isto pode gerar grave exposição ocupacional e injeta
vapor de mercúrio na atmosfera, que pode se dispersar por grandes
distâncias. Também gera quantidade expressiva de material contaminado
com mercúrio metálico. Embora simples e barato, esse processo não
consegue remover mais de 30% do ouro.
Para aumentar o rendimento da extração, seus efluentes são
frequentemente submetidos à cianetação. O cianeto é bem menos
conversável do que o mercúrio. Pequenas bobeiras no seu uso podem gerar
vapores fatais, e sua liberação em corpos d’água transforma-os em
desertos por dezenas de quilômetros. Sua toxicologia é, digamos, mais
rápida e objetiva.
De draga em draga
Mas foi o processo de amalgamação que sustentou a corrida do ouro na
Amazônia brasileira durante os anos 1980. Concentrada nos rios Madeira e
Tapajós, essa corrida produziu cerca de 100 toneladas anuais de ouro e a
liberação de quantidade equivalente de mercúrio em solos, águas e
atmosfera, além de causar assoreamento de rios e modesto desmatamento.
A corrida do ouro na Amazônia produziu cerca de 100 toneladas anuais de ouro e a
liberação de quantidade equivalente de mercúrio em solos, águas e
atmosfera
Durante uma década, o garimpo de ouro ocupou um milhão de
garimpeiros, gastou mais carpete do que a construção civil e foi o
principal consumidor de motores diesel e de popa do país.
No rio Madeira, grandes dragas e balsas foram improvisadas com
flutuadores de todo tipo, dos barris de óleo amarrados uns aos outros
aos grandes cilindros metálicos encomendados em pequenas metalúrgicas.
Cobertos com piso de madeira e lona, abrigavam equipes de quatro a seis
pessoas, que trabalhavam, comiam e dormiam a bordo e se deslocavam ao
sabor do teor de ouro no sedimento do rio.
Em pontos mais atraentes, as dragas e balsas se acotovelavam tornando
quase possível a travessia do rio sem molhar os pés, pulando de draga
em draga. Armazéns, bordéis, restaurantes, postos de venda de gasolina,
diesel e mercúrio eram flutuantes e tão móveis quanto os seus clientes.
Já no Tapajós e em Serra Pelada, o garimpo era de terra firme e
deixava marcas mais visíveis, como as grandes cavas empapadas de água.
Por que esse cenário épico não foi tema de algum filme à la
Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é uma pergunta que não quer calar.
Em plena crise inflacionária oficial, essa economia paralela, porém
muito concreta, era regida pelo ouro e os estabelecimentos não tinham
caixa registradora, mas sim balanças de precisão. Uma cerveja ou maço de
cigarro, 1 grama de ouro. Um programa, 2 gramas, e assim por diante.
Uma cerveja ou maço de cigarro, 1 grama de ouro. Um programa, 2 gramas, e assim por diante
Tudo isso era ilegal, já que ninguém tinha autorização de lavra, só
de prospecção, e o uso de mercúrio no garimpo não era autorizado. Mas
com 100 toneladas anuais de ouro, quem vai se importar, não é mesmo? E
as 100 toneladas anuais de mercúrio? Eram importadas, já que não temos
jazidas desse metal multiuso no Brasil. Importadas para “uso
odontológico” ou “usos não especificados”. Haja obturação, mas ninguém
estranhou.
O garimpo voltou
Mas aí a queda brusca do preço do ouro fez ‘tcham’, o plano Collor
fez ‘tchum’ e a partir de 1990 a atividade garimpeira desabou, assim
como a visibilidade do tema. Mas nada é para sempre, a não ser a morte e
a extinção. Os preços do ouro vêm subindo forte nos últimos anos. O
garimpo voltou. Não à ribalta, mas às ribeiras.
Todo mês alguma draga é abalroada no Madeira por um barco de
passageiros ou uma balsa de transporte. Não tem onde reclamar, afinal,
não deveriam estar ali. Mas no garimpo há trabalho, come-se carne e
pode-se sonhar com riqueza num pais ainda campeão de desigualdade.
E assim, com a subida da cotação do ouro, o estéril de ontem virou
matéria-prima. No Tapajós, o material desprezado pelos garimpeiros de 20
e poucos anos atrás é agora retrabalhado com cianetação. Sem alarde
midiático nem documentário da BBC.
No Madeira, grandes hidrelétricas estão em construção no trecho que
sofreu garimpo nos anos 1980 e só no futuro saberemos que efeito isso
terá sobre os níveis de mercúrio em peixes, nas próprias represas e rio
abaixo.
No Peru, a região de Madre de Dios é cenário de uma corrida do ouro
localizada, mas muito intensa, em áreas cuja drenagem flui para o nosso
pais. E todas as áreas auríferas estão em exploração crescente, no mundo
todo, e novos projetos se multiplicam.

- Líquido, pouco volátil à
temperatura ambiente e capaz de dissolver outros metais, o mercúrio tem
sido usado na extração do ouro. O governo do Amazonas acaba de autorizar
o seu uso nos garimpos do estado, a despeito dos efeitos altamente
nocivos. (foto: Wikimedia Commnos)
No Brasil, o governo do estado do Amazonas deu sua contribuição ao
debate autorizando o uso de mercúrio nos garimpos do estado, quando
muitos visitantes da Rio+20 não haviam ainda feito as malas. Só saiu em
versões
on-line de alguns jornais.
Mas não se preocupe, será exigido um relatório de impacto ambiental.
Difícil vai ser o preenchimento do quadro “local da atividade”. Afinal,
não há espaço suficiente no formulário para escrever “onde houver ouro,
num trecho de 900 quilômetros do rio Madeira, a partir da divisa do
estado, e em afluentes no mesmo trecho”. E tudo isso só faz algum
sentido, se fizer algum, caso haja alguma presença do estado nos locais
em questão.
Algo me diz que não vai ser o caso. Vamos acabar sendo abalroados por
um documentário da BBC ou algo parecido. Mas com tanto ouro, quem se
importa, não é mesmo?