segunda-feira, 1 de setembro de 2014

As chagas do garimpo

As chagas do garimpo

Um lugarejo de Madagáscar, na África, onde se
encontraram safiras, repete a saga de Serra Pelada

Raras atividades trazem em si contradições tão grandes quanto o garimpo. Enquanto o comércio de pedras preciosas é sempre associado a riqueza, glamour e ostentação, sua extração está ligada a condições insalubres de trabalho, miséria e violência. A transformação da vila de Ilakaka, ao sul da ilha de Madagáscar, no litoral oriental da África, é um espelho dessas mudanças provocadas pela febre do garimpo. Há dois anos, vinte casebres compunham a vila, miserável como a maior parte do país. Desde que a notícia da descoberta de uma nova e promissora mina de safiras se espalhou, mais de 100 000 garimpeiros aportaram à região, em busca de enriquecimento rápido e fácil. Com raríssimas exceções, a promessa permanece como uma ilusão inalcançável. A safira de Ilakaka reproduziu no sul da África o fenômeno que o ouro gerou em Serra Pelada, no norte do Brasil.
As safiras de Ilakaka estão num aluvião, ao longo de um antigo leito de rio. Como em todas as minas desse tipo, que têm produção farta mas vida curta, quase não há interesse de grandes mineradoras em investir na prospecção mecanizada. Como conseqüência, o formigueiro humano de garimpeiros faz a lavagem da terra à procura das safiras de forma artesanal. A prospecção é feita em valas ou em pequenos poços cavados pelos garimpeiros, com dimensões poucas vezes superiores a 5 metros quadrados, e com 10 a 20 metros de profundidade. A terra retirada de lá é depois lavada numa peneira, para que as safiras, que na maioria dos casos não chegam a 1 quilate (200 miligramas), com o tamanho de uma cabeça de fósforo, possam ser identificadas. O processo é extremamente demorado e perigoso. Quando chove, a possibilidade de desabamentos é grande. Num período de dez dias, no ano passado, dezesseis garimpeiros morreram em acidentes em Ilakaka.
O crescimento acelerado acontece sem a mínima infra-estrutura. As construções são precárias, feitas com o material descartável disponível no momento. O rio usado para a lavagem das pedras é também a única fonte de consumo de água e depósito de esgoto. As epidemias são freqüentes. No entorno da vila, proliferou rapidamente uma gama de serviços para atender os novos habitantes. São restaurantes, pequenos comércios e, para satisfazer a população quase que exclusivamente masculina, bordéis, bares e salões de jogos. A corrida pelas safiras não atrai somente garimpeiros. Compradores de pedras preciosas de diversas nacionalidades circulam pelas vilas de garimpo em busca de mercadorias. O preço pago ao garimpeiro pode ser multiplicado até 100 vezes antes de chegar ao comprador final. A movimentação de dinheiro atrai também a violência. Não são incomuns os casos de roubos, brigas e disputas a tiros pelas pedras. Por via das dúvidas, muitos compradores andam pela cidade acompanhados de guarda-costas armados.
O fenômeno da transformação de Ilakaka é quase um repeteco da saga de Serra Pelada – pode-se prever que vá se encerrar de forma igualmente melancólica. Com a descoberta de ouro no Pará, no início dos anos 80, duas cidades nasceram do nada para abrigar 400.000 homens que trabalhavam dia e noite procurando pepitas num buraco de 100 metros de profundidade. As cidades hoje estão às moscas e o veio, esgotado, foi abandonado. A prospecção de ouro em Serra Pelada gerou uma riqueza estimada em 1,5 bilhão de dólares. Pouco disso, porém, ficou nas mãos dos garimpeiros. "Como sempre, o garimpeiro permanece na miséria e quem enriquece são os intermediários", lamenta o gemólogo Rainer Schultz Güttler, da Universidade de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário