domingo, 14 de dezembro de 2014

O velho do rio Garças

O velho do rio Garças




Antes mesmo dos primeiros raios do sol ‘seo’ Alcides Silvino da Conceição mergulha nas águas limpas do rio Garças, que passa ficando. “Este é o meu rio”, comenta com um sorriso banguela. Após o banho caminha lento ladeira acima até o barraco onde mora, à beira da estrada poeirenta nas imediações de Tesouro. Com a mão esquerda ‘passa’ o café no coador de pano. Bebe duas canecas lentamente. Quebra o torto com carne-de-sol, arroz, feijão e farinha de mandioca. Repete os cafezinhos. Pega a trilha e, 200 metros depois, está no Travessão Ximberlim, onde ganha o pão e se ilude à espera da danada bamburra que não vem.

‘Seo’ Alcides é bem mais moço que Satu. Tem 75 anos e a saúde é abalada. Uma cascavel picou seu pulso direito há 30 anos. Desde então tem a mão ‘lerda’. Para complicar não enxerga mais do olho direito. Sozinho no mundo, tem somente a benção do Senhor Bom Jesus da Lapa, que não nega proteção ao garimpeiro.

Mesmo debilitado, ‘seo’ Alcides trabalha. Pega no pesado com se os anos não tivessem passado, como se a cascavel tivesse errado o bote e seu olho direito visse todas as luzes do mundo. Mais que conformado, esse goiano de Santa Helena e celibatário por opção é otimista. “Ainda tenho muito trabalho pela frente”, aposta, enquanto demonstra como trela o cascalho com a suruca de seu jogo de velhas peneiras.

Tesouro estava no auge quando ‘seo’ Alcides chegou por lá em 1957 e encontrou pioneiros remanescentes que compartilharam com Antônio Cândido de Carvalho, o Carvalhinho, a fundação da então vila no município de Alto Araguaia e que em 1943 passaria a pertencer a Guiratinga.

O nome do lugar foi escolhido pelo garimpeiro João José de Moraes, o lendário Cajango, que acreditava na existência de tesouro em diamante no subsolo e leitos dos rios da região. Cajango percorreu Mato Grosso e Goiás divulgando o potencial mineral de Tesouro. Com isso atraiu aventureiros, comerciantes, prostitutas, caixeiros viajantes, farmacêuticos, criadores de gado.

No prolongado ciclo do diamante que se arrastou por quase um século, Tesouro era verdadeira Meca. Suas lojas vendiam os cortes de tecidos mais finos da moda no eixo Rio-São Paulo. Perfumes e lingerie franceses apimentavam castas senhoras em seus leitos conjugais. O carteado corria solto. O bom malte escocês aquecia os corações nos bailes na cidade e nas vilas de Batovi, Cassununga, Coréia e outras naquele município e na vizinha Guiratinga. A música da sanfona de mestre Lídio Magalhães e do saxofone do maestro Marinho Franco era bálsamo para o corpo moído da garimpeirada.

Mesmo sendo morador antigo ‘seo’ Alcides chegou bem depois da grande chacina de Tesouro. Em 1936, um fato isolado e de triste memória para a população cobriu de sangue um dos cabarés. Um soldado destacado na cidade e que teria se sentido ofendido por uma prostituta, foi ao comando da Polícia Militar em Cuiabá e retornou integrando uma soldadesca comandada por um tenente. A reação dos policiais em desagravo ao companheiro de farda foi trágica: na calada da noite, enquanto pares dançavam e casais se entregavam, o prostíbulo foi cercado pela tropa, invadido e, em seguida as mulheres, frequentadores e funcionários foram executados a tiros. Ainda hoje, há quem sustente que 45 pessoas tombaram na fuzilaria. O comerciante e ex-vereador Salvador Lopes Torres, de 80 anos e nascido naquele lugar, conta o que ouviu do pai: a polícia requisitou cidadãos para carregar os corpos ao cemitério, onde inclusive feridos teriam sido sepultados. Um dos encarregados do sepultamento teria ouvido soldados dizendo que, após a última remoção do cabaré, tais pessoas também seriam abatidas. Diante dessa ameaça e tendo a escuridão da noite por aliada, os carregadores se escafederam.

A casa palco da tragédia, à Rua Ponce de Arruda, foi demolida. Em seu lugar surgiram outras duas, divididas por uma parede. Um desses imóveis pertence ao comerciante e comprador de diamantes João Moreno de Lima, nascido em Manga, Minas Gerais e residente na cidade há mais de 50 anos. Moreno é uma das pessoas mais conhecidas e respeitadas do lugar. Conhece como ninguém o passado da região e tem o hobby de colecionar materiais fossilizados.
 
Teimosia no rio Itiquira

 “O diamante ‘tá’ aqui”. Insiste o garimpeiro inativo Alípio Pereira da Silva, mostrando o leito do rio Itiquira, nas imediações da cidade à qual o rio empresta o nome.

Alípio tem 63 anos. Se fosse burocrata seria coroa, estaria aposentado há longo tempo. Porém, é garimpeiro e nessa profissão somente se aposenta quando o corpo baixa sepultura, a doença inferniza ou alguma barreira ambiental o deixa, temporariamente, inativo.

Garimpeiro com passagem pelos quatro cantos de Mato Grosso, Alípio já correu atrás da pedra boa com escafandro no fundo do rio Paranatinga, em Paranatinga. Batalhou em Juína, mas não gosta do diamante industrial que é a base da atividade mineral naquele município. Correu pra lá e pra cá. Voltou para Itiquira, sua terra adotiva e de coração, porque na verdade a parteira o recebeu em Alcantilado, uma vila que teve famoso garimpo pras bandas de Guiratinga.

Novamente voltar a garimpar no rio Itiquira é o sonho de Alípio, tarimbado nessa arte e que sonha acordado em pegar um diamante de 10 quilates para dar a grande virada em sua vida.

Ao lado da cidade havia o Garimpo da Prainha, “isso por volta de 1969” – recorda. Alípio não sabe dizer quantos meses trabalhou na Prainha, mas lembra bem que o leito do rio foi deslocado para a esquerda, mas sem comprometer seu curso e corrente livre. “Hoje a gente não pode nem falar um ‘a’ sobre garimpar que o Ibama chega e bota pressão”, lamenta.

Itiquira, nos bons tempos do garimpo, era uma cidade sem violência. “A gente deixava a porta encostada, as chaves ficavam na ignição dos carros, ninguém roubava nem furtava. Quem botasse a mão do alheio caía no porrete, pois a povo não aceitava isso”, revela.

A Itiquira dos garimpeiros também foi engolida como Poxoréu e Guiratinga. Hoje, o município é um dos principais pólos do agronegócio com grandes lavouras de soja, algodão, milho safrinha, cultivo de seringal, beneficiamento de látex, rebanho bovino e, mais recentemente, também aquecido pela geração de energia de origem hidráulica.

A teimosia de Alípio em garimpar pode até levá-lo novamente à atividade que sempre garantiu o pão de cada dia de seus filhos, porque o ciclo da garimpagem passou, mas ainda permite novas tentativas de se fazer fortuna da noite para o dia. Mesmo assim é bom levar em conta a sabedoria de Satu, o decano de Poxoréu, “profissão de garimpeiro não dá segunda safra”.

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