O velho do rio Garças
Antes
mesmo dos primeiros raios do sol ‘seo’ Alcides Silvino da Conceição
mergulha nas águas limpas do rio Garças, que passa ficando. “Este é o
meu rio”, comenta com um sorriso banguela. Após o banho caminha lento
ladeira acima até o barraco onde mora, à beira da estrada poeirenta nas
imediações de Tesouro. Com a mão esquerda ‘passa’ o café no coador de
pano. Bebe duas canecas lentamente. Quebra o torto com carne-de-sol,
arroz, feijão e farinha de mandioca. Repete os cafezinhos. Pega a trilha
e, 200 metros depois, está no Travessão Ximberlim, onde ganha o pão e
se ilude à espera da danada bamburra que não vem.
‘Seo’
Alcides é bem mais moço que Satu. Tem 75 anos e a saúde é abalada. Uma
cascavel picou seu pulso direito há 30 anos. Desde então tem a mão
‘lerda’. Para complicar não enxerga mais do olho direito. Sozinho no
mundo, tem somente a benção do Senhor Bom Jesus da Lapa, que não nega
proteção ao garimpeiro.
Mesmo
debilitado, ‘seo’ Alcides trabalha. Pega no pesado com se os anos não
tivessem passado, como se a cascavel tivesse errado o bote e seu olho
direito visse todas as luzes do mundo. Mais que conformado, esse goiano
de Santa Helena e celibatário por opção é otimista. “Ainda tenho muito
trabalho pela frente”, aposta, enquanto demonstra como trela o cascalho
com a suruca de seu jogo de velhas peneiras.
Tesouro
estava no auge quando ‘seo’ Alcides chegou por lá em 1957 e encontrou
pioneiros remanescentes que compartilharam com Antônio Cândido de
Carvalho, o Carvalhinho, a fundação da então vila no município de Alto
Araguaia e que em 1943 passaria a pertencer a Guiratinga.
O
nome do lugar foi escolhido pelo garimpeiro João José de Moraes, o
lendário Cajango, que acreditava na existência de tesouro em diamante no
subsolo e leitos dos rios da região. Cajango percorreu Mato Grosso e
Goiás divulgando o potencial mineral de Tesouro. Com isso atraiu
aventureiros, comerciantes, prostitutas, caixeiros viajantes,
farmacêuticos, criadores de gado.
No
prolongado ciclo do diamante que se arrastou por quase um século,
Tesouro era verdadeira Meca. Suas lojas vendiam os cortes de tecidos
mais finos da moda no eixo Rio-São Paulo. Perfumes e lingerie franceses
apimentavam castas senhoras em seus leitos conjugais. O carteado corria
solto. O bom malte escocês aquecia os corações nos bailes na cidade e
nas vilas de Batovi, Cassununga, Coréia e outras naquele município e na
vizinha Guiratinga. A música da sanfona de mestre Lídio Magalhães e do
saxofone do maestro Marinho Franco era bálsamo para o corpo moído da
garimpeirada.
Mesmo
sendo morador antigo ‘seo’ Alcides chegou bem depois da grande chacina
de Tesouro. Em 1936, um fato isolado e de triste memória para a
população cobriu de sangue um dos cabarés. Um soldado destacado na
cidade e que teria se sentido ofendido por uma prostituta, foi ao
comando da Polícia Militar em Cuiabá e retornou integrando uma
soldadesca comandada por um tenente. A reação dos policiais em desagravo
ao companheiro de farda foi trágica: na calada da noite, enquanto pares
dançavam e casais se entregavam, o prostíbulo foi cercado pela tropa,
invadido e, em seguida as mulheres, frequentadores e funcionários foram
executados a tiros. Ainda hoje, há quem sustente que 45 pessoas tombaram
na fuzilaria. O comerciante e ex-vereador Salvador Lopes Torres, de 80
anos e nascido naquele lugar, conta o que ouviu do pai: a polícia
requisitou cidadãos para carregar os corpos ao cemitério, onde inclusive
feridos teriam sido sepultados. Um dos encarregados do sepultamento
teria ouvido soldados dizendo que, após a última remoção do cabaré, tais
pessoas também seriam abatidas. Diante dessa ameaça e tendo a escuridão
da noite por aliada, os carregadores se escafederam.
A
casa palco da tragédia, à Rua Ponce de Arruda, foi demolida. Em seu
lugar surgiram outras duas, divididas por uma parede. Um desses imóveis
pertence ao comerciante e comprador de diamantes João Moreno de Lima,
nascido em Manga, Minas Gerais e residente na cidade há mais de 50 anos.
Moreno é uma das pessoas mais conhecidas e respeitadas do lugar.
Conhece como ninguém o passado da região e tem o hobby de colecionar
materiais fossilizados.
Teimosia no rio Itiquira
“O
diamante ‘tá’ aqui”. Insiste o garimpeiro inativo Alípio Pereira da
Silva, mostrando o leito do rio Itiquira, nas imediações da cidade à
qual o rio empresta o nome.
Alípio
tem 63 anos. Se fosse burocrata seria coroa, estaria aposentado há
longo tempo. Porém, é garimpeiro e nessa profissão somente se aposenta
quando o corpo baixa sepultura, a doença inferniza ou alguma barreira
ambiental o deixa, temporariamente, inativo.
Garimpeiro
com passagem pelos quatro cantos de Mato Grosso, Alípio já correu atrás
da pedra boa com escafandro no fundo do rio Paranatinga, em
Paranatinga. Batalhou em Juína, mas não gosta do diamante industrial que
é a base da atividade mineral naquele município. Correu pra lá e pra
cá. Voltou para Itiquira, sua terra adotiva e de coração, porque na
verdade a parteira o recebeu em Alcantilado, uma vila que teve famoso
garimpo pras bandas de Guiratinga.
Novamente
voltar a garimpar no rio Itiquira é o sonho de Alípio, tarimbado nessa
arte e que sonha acordado em pegar um diamante de 10 quilates para dar a
grande virada em sua vida.
Ao
lado da cidade havia o Garimpo da Prainha, “isso por volta de 1969” –
recorda. Alípio não sabe dizer quantos meses trabalhou na Prainha, mas
lembra bem que o leito do rio foi deslocado para a esquerda, mas sem
comprometer seu curso e corrente livre. “Hoje a gente não pode nem falar
um ‘a’ sobre garimpar que o Ibama chega e bota pressão”, lamenta.
Itiquira,
nos bons tempos do garimpo, era uma cidade sem violência. “A gente
deixava a porta encostada, as chaves ficavam na ignição dos carros,
ninguém roubava nem furtava. Quem botasse a mão do alheio caía no
porrete, pois a povo não aceitava isso”, revela.
A
Itiquira dos garimpeiros também foi engolida como Poxoréu e Guiratinga.
Hoje, o município é um dos principais pólos do agronegócio com grandes
lavouras de soja, algodão, milho safrinha, cultivo de seringal,
beneficiamento de látex, rebanho bovino e, mais recentemente, também
aquecido pela geração de energia de origem hidráulica.
A
teimosia de Alípio em garimpar pode até levá-lo novamente à atividade
que sempre garantiu o pão de cada dia de seus filhos, porque o ciclo da
garimpagem passou, mas ainda permite novas tentativas de se fazer
fortuna da noite para o dia. Mesmo assim é bom levar em conta a
sabedoria de Satu, o decano de Poxoréu, “profissão de garimpeiro não dá
segunda safra”.
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