A febre do ouro em Serra Pelada
Guto da Costa tinha pouco dinheiro
no bolso e muita esperança em 1983. Havia completado 18 anos, e “de
maior”, sonhava em ficar rico. Andava de namorico com a filha de um
homem “bem de vida”, que não via com bons olhos aquele romance ameaçando
entrar sem pedir licença na própria casa. Com os brios feridos, o
coração em chamas, o corpo afogueado, Guto olhou para a imensidão à
frente, observou atônito, o vai e vem de homens embrutecidos e de poucas
palavras, respirou fundo e disse a si mesmo. “É aqui que vou ‘enricar’ e
voltar pra casar com ela”. Vinte e nove anos depois, Guto é dono de uma
pequena venda em uma vila pobre e empoeirada. Ri dos arroubos da
juventude. Nunca mais voltou para casa. Nem saiu do garimpo de Serra
Pelada. A história poderia ser um enredo ficcional para uma novela ou
filme. Mas é real. Como reais são as histórias de milhares de
ex-garimpeiros de Serra Pelada. O mergulho em apenas uma delas é mais
rico do que qualquer roteiro cinematográfico, mas o cinema insiste em
tentar capturar a quase inatingível essência do mais famoso garimpo de
ouro do Brasil.
A empreitada mais recente será a que
unirá Wagner Moura, um dos mais talentosos atores de sua geração, ao
diretor Heitor Dhalia. O filme terá como pano de fundo a região de Serra
Pelada. A história se passa em 1978, quando dois amigos saem do Rio de
Janeiro em direção ao Pará, com a intenção de encontrar ouro em Serra
Pelada, mas a cobiça pelo poder e pela riqueza vai abalar a relação da
dupla. Ao divulgar o projeto, Dhalia disse que há muito a ser explorado
nessa história, que marcou uma época no Brasil e ainda não foi contada
nos cinemas.
Os garimpeiros não tinham noção dessa
grandiosidade épica quando fincaram pés e mãos no barro da serra em
busca de ouro. Não pensavam em ser protagonistas ou coadjuvantes de
nada. Sonhavam apenas com o metal que mudaria as próprias vidas. Cinema,
por exemplo, só os do telão meio encardido que exibia uns filmes de
faroeste. “Aqui tinha o telão do cinema todo dia, e sempre tinha um
artista por aqui fazendo show. Aparecia uns circos de vez em quando. Os
filmes que passava no cinema, os que os garimpeiros mais aplaudia,
depois passava de novo”, lembra Almir Ferreira, 71 anos num português
atropelado.
Quando Serra Pelada chamou a atenção do
mundo, o cinema veio atrás. “Era nosso divertimento”, diz Ferreira.
“Quando Os Trapalhões vieram aqui, se melaram tudo de melechete (lama
proveniente da lavagem da terra). Aí enchia o saco de folhas, saía
subindo as escadas na pedra preta que nem os garimpeiros. Mas o nosso
era cheio de terra. Eu achei aquilo muito bom, pra você vê como nós era
importante”.
“Os Trapalhões na Serra Pelada” é um
filme de 1982, dirigido por J.B. Tanko. A história é simples. Os amigos
Curió, Boroca, Mexelete e Bateia aventuram-se em busca de ouro no
garimpo de Serra Pelada. A mina é controlada pelo estrangeiro Von
Bermann, cujas ordens são executadas pelo capanga Bira. Sedento por
poder, o gringo contrabandeia o ouro e deseja apoderar-se das terras do
brasileiro Ribamar, que se recusa a fazer negócio antes da chegada do
filho Chicão. Mesmo sendo uma típica comédia ao estilo de Renato Aragão e
companhia, a sinopse do filme apresenta as possibilidades de discussão a
respeito da forma colonizadora que caracteriza a região. O capital
estrangeiro dominando o local onde homens simples tentam construir
sonhos a partir de uma realidade difícil.
“Sabe qual é a história mais bonita, seu
moço? É quando era só nós, os garimpeiros. O cara saía por dentro da
mata, com saco de ouro nas costas, com um 38 do lado e mais uns quatro
companheiros. Um respeitava o outro, mas não tinha muita conversa”,
lembra Luiz Fonseca Oliveira, 65 anos, enquanto senta num banco rústico
fugindo do sol. “Quando tirei a carteira de garimpeiro fiquei orgulhoso.
Me senti gente importante, cidadão mesmo”, ri, olhando para o boné
amassando nas próprias mãos.
Novos Colonizadores
Saber que Serra Pelada e outros pontos
da Amazônia voltaram a interessar ao cinema nacional desperta reações
diferentes. Como os próprios garimpeiros, a Amazônia será apenas cenário
ou protagonista nessa relação?
“A região nunca saiu de foco, o que
acontece é que os interesses dos ‘colonizadores’ de nossa sociedade
moderna mudam de acordo com o que os convém em dado momento de espaço e
tempo”, analisa o professor e videomaker Guto Nunes. “Do ponto de vista
profissional pode ser uma boa resposta, desde que eles utilizem em suas
produções, produtoras independentes e mão-de-obra profissional e a força
braçal e intelectual do nosso povo”, diz.
Diretora do documentário “Serra Pelada:
Esperança não é sonho”, Priscila Brasil não gosta quando falam em
“redescoberta amazônica”. “A expressão é cheia de uma submissão da qual
eu não gosto. Vários já se inspiraram nesse universo, cada um de um
jeito, cada um na sua lógica. Uns enxergam a selva de uma maneira mais
brutal, outros de uma maneira mais contemplativa, outros veem quase um
zoológico gigante, tipo Simba Safari, que só falta rolar ar
condicionado”, critica.
A supremacia do olhar estrangeiro
“É preciso mais que um dia para entender
a história dos garimpeiros”, diz, com ar de quem viu muito, Pedro
Bacabal, 53 anos. Homem de riso fácil que zomba do próprio destino,
Bacabal chegou ao garimpo com 23 anos. Ganhou e perdeu dinheiro. Batendo
com o cabo de uma enxada no chão, como a pontuar as palavras, enfatiza
que em Serra Pelada os homens todos deixaram escorrer a juventude. “Como
é que vou explicar isso ao senhor?”, questiona-se. “Eu acho que mesmo
na melhor das produções ainda existe um olhar estrangeiro, os
protagonistas são de fora, uma lacuna que só vamos talvez superar com
nossas produções locais. O que me preocupa é se reforçarem o olhar do
exótico, do coitadinho. Isso sempre me irrita”, diz Segtowick.
“Tem quem ache que a Amazônia tem
vocação para cenário de filme - mas o cenário exuberante é um
coadjuvante mal pago, infelizmente”, diz a jornalista, produtora e
fotógrafa Maria Christina. “Embora eu deva concordar que a história
ainda por ser contada deve ser efetivamente contada, seja em filmes ou
obras literárias, o melhor era mesmo que nos deixassem em paz. Ilusão,
claro, porque a região precisa de divisas, e minha indignação com toda a
exploração que sofremos (cuja conta vamos pagar ad infinitum) me faz
desejar que fôssemos invisíveis”, complementa.
Terra de feitos épicos (e homens invisíveis)
Invisibilidade social parece ter sido
sempre a marca dos garimpeiros de Serra Pelada. Mesmo que tenham
produzido feitos épicos. “O garimpo tirou uma serra de um lado e colocou
em outro. Isso não é pra qualquer um”, bate no peito Manoel Martins de
Oliveira, um homem que chegou ao garimpo em dezembro de 1980. Dizia-se
que o ouro de Serra Pelada pagaria a dívida externa brasileira. Mais de
três décadas depois, Antonio Bernardo, o Godô, luta aos 64 anos, contra
uma hanseníase que lhe insiste em pregar peças. A última foi uma ferida
no rosto. O curativo imenso esconde a chaga. Pobreza e doença se
tornaram companheiras dos ex-garimpeiros. Juntam-se à saudade, a uma
melancolia resignada, a um bom humor de quem viu e viveu boas aventura e
à incerteza dos dias que restam.
“A gente fez parte do Brasil. Eu sei
disso”, diz o ex-garimpeiro que só atende pelo nome de Nick. É o
pseudônimo que ele descobriu para dar vazão ao lado artista. Nick é
pintor. Exibe os quadros com orgulho. A febre do ouro passou. Para ele
não volta mais. Não?
Nos fundos da Loja Kaleny, bem no centro
da vila de Serra Pelada, duas fotos chamam a atenção. Numa está a
clássica imagem do formigueiro humano que foi o garimpo nos anos 80. Ao
lado, uma foto com dois homens, sujos de lama da cabeça aos pés, outra
imagem bastante difundida de Serra Pelada. É quase impossível reconhecer
que o rapaz de 23 anos que posa com ar de esperança na foto, em um dia
perdido de 1985, seja o mesmo proprietário da loja que vende de tudo um
pouco. Cláudio Moraes tem hoje 49 anos e criou as duas filhas na vila de
Serra Pelada. “Não enriqueci, ganhei problema de hérnia de disco, de
coluna, mas sei que fiz parte de uma história bonita do Brasil”, diz.
Cláudio Moraes está relativamente estabilizado. Não precisa diretamente
do ouro do garimpo, mas quem disse que deixou de sonhar em voltar à
ativa? “Daqui não arredo pé. Se esse garimpo voltar a dar ouro de novo,
quero estar aqui”, afirma. Alguém registraria a cena?
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