terça-feira, 2 de junho de 2015

A febre do ouro em Serra Pelada

A febre do ouro em Serra Pelada

Guto da Costa tinha pouco dinheiro no bolso e muita esperança em 1983. Havia completado 18 anos, e “de maior”, sonhava em ficar rico. Andava de namorico com a filha de um homem “bem de vida”, que não via com bons olhos aquele romance ameaçando entrar sem pedir licença na própria casa. Com os brios feridos, o coração em chamas, o corpo afogueado, Guto olhou para a imensidão à frente, observou atônito, o vai e vem de homens embrutecidos e de poucas palavras, respirou fundo e disse a si mesmo. “É aqui que vou ‘enricar’ e voltar pra casar com ela”. Vinte e nove anos depois, Guto é dono de uma pequena venda em uma vila pobre e empoeirada. Ri dos arroubos da juventude. Nunca mais voltou para casa. Nem saiu do garimpo de Serra Pelada. A história poderia ser um enredo ficcional para uma novela ou filme. Mas é real. Como reais são as histórias de milhares de ex-garimpeiros de Serra Pelada. O mergulho em apenas uma delas é mais rico do que qualquer roteiro cinematográfico, mas o cinema insiste em tentar capturar a quase inatingível essência do mais famoso garimpo de ouro do Brasil.
A empreitada mais recente será a que unirá Wagner Moura, um dos mais talentosos atores de sua geração, ao diretor Heitor Dhalia. O filme terá como pano de fundo a região de Serra Pelada. A história se passa em 1978, quando dois amigos saem do Rio de Janeiro em direção ao Pará, com a intenção de encontrar ouro em Serra Pelada, mas a cobiça pelo poder e pela riqueza vai abalar a relação da dupla. Ao divulgar o projeto, Dhalia disse que há muito a ser explorado nessa história, que marcou uma época no Brasil e ainda não foi contada nos cinemas.
Os garimpeiros não tinham noção dessa grandiosidade épica quando fincaram pés e mãos no barro da serra em busca de ouro. Não pensavam em ser protagonistas ou coadjuvantes de nada. Sonhavam apenas com o metal que mudaria as próprias vidas. Cinema, por exemplo, só os do telão meio encardido que exibia uns filmes de faroeste. “Aqui tinha o telão do cinema todo dia, e sempre tinha um artista por aqui fazendo show. Aparecia uns circos de vez em quando. Os filmes que passava no cinema, os que os garimpeiros mais aplaudia, depois passava de novo”, lembra Almir Ferreira, 71 anos num português atropelado.
Quando Serra Pelada chamou a atenção do mundo, o cinema veio atrás. “Era nosso divertimento”, diz Ferreira. “Quando Os Trapalhões vieram aqui, se melaram tudo de melechete (lama proveniente da lavagem da terra). Aí enchia o saco de folhas, saía subindo as escadas na pedra preta que nem os garimpeiros. Mas o nosso era cheio de terra. Eu achei aquilo muito bom, pra você vê como nós era importante”.
“Os Trapalhões na Serra Pelada” é um filme de 1982, dirigido por J.B. Tanko. A história é simples. Os amigos Curió, Boroca, Mexelete e Bateia aventuram-se em busca de ouro no garimpo de Serra Pelada. A mina é controlada pelo estrangeiro Von Bermann, cujas ordens são executadas pelo capanga Bira. Sedento por poder, o gringo contrabandeia o ouro e deseja apoderar-se das terras do brasileiro Ribamar, que se recusa a fazer negócio antes da chegada do filho Chicão. Mesmo sendo uma típica comédia ao estilo de Renato Aragão e companhia, a sinopse do filme apresenta as possibilidades de discussão a respeito da forma colonizadora que caracteriza a região. O capital estrangeiro dominando o local onde homens simples tentam construir sonhos a partir de uma realidade difícil.
“Sabe qual é a história mais bonita, seu moço? É quando era só nós, os garimpeiros. O cara saía por dentro da mata, com saco de ouro nas costas, com um 38 do lado e mais uns quatro companheiros. Um respeitava o outro, mas não tinha muita conversa”, lembra Luiz Fonseca Oliveira, 65 anos, enquanto senta num banco rústico fugindo do sol. “Quando tirei a carteira de garimpeiro fiquei orgulhoso. Me senti gente importante, cidadão mesmo”, ri, olhando para o boné amassando nas próprias mãos.
Novos Colonizadores
Saber que Serra Pelada e outros pontos da Amazônia voltaram a interessar ao cinema nacional desperta reações diferentes. Como os próprios garimpeiros, a Amazônia será apenas cenário ou protagonista nessa relação?
“A região nunca saiu de foco, o que acontece é que os interesses dos ‘colonizadores’ de nossa sociedade moderna mudam de acordo com o que os convém em dado momento de espaço e tempo”, analisa o professor e videomaker Guto Nunes. “Do ponto de vista profissional pode ser uma boa resposta, desde que eles utilizem em suas produções, produtoras independentes e mão-de-obra profissional e a força braçal e intelectual do nosso povo”, diz.
Diretora do documentário “Serra Pelada: Esperança não é sonho”, Priscila Brasil não gosta quando falam em “redescoberta amazônica”. “A expressão é cheia de uma submissão da qual eu não gosto. Vários já se inspiraram nesse universo, cada um de um jeito, cada um na sua lógica. Uns enxergam a selva de uma maneira mais brutal, outros de uma maneira mais contemplativa, outros veem quase um zoológico gigante, tipo Simba Safari, que só falta rolar ar condicionado”, critica.
A supremacia do olhar estrangeiro
“É preciso mais que um dia para entender a história dos garimpeiros”, diz, com ar de quem viu muito, Pedro Bacabal, 53 anos. Homem de riso fácil que zomba do próprio destino, Bacabal chegou ao garimpo com 23 anos. Ganhou e perdeu dinheiro. Batendo com o cabo de uma enxada no chão, como a pontuar as palavras, enfatiza que em Serra Pelada os homens todos deixaram escorrer a juventude. “Como é que vou explicar isso ao senhor?”, questiona-se. “Eu acho que mesmo na melhor das produções ainda existe um olhar estrangeiro, os protagonistas são de fora, uma lacuna que só vamos talvez superar com nossas produções locais. O que me preocupa é se reforçarem o olhar do exótico, do coitadinho. Isso sempre me irrita”, diz Segtowick.
“Tem quem ache que a Amazônia tem vocação para cenário de filme - mas o cenário exuberante é um coadjuvante mal pago, infelizmente”, diz a jornalista, produtora e fotógrafa Maria Christina. “Embora eu deva concordar que a história ainda por ser contada deve ser efetivamente contada, seja em filmes ou obras literárias, o melhor era mesmo que nos deixassem em paz. Ilusão, claro, porque a região precisa de divisas, e minha indignação com toda a exploração que sofremos (cuja conta vamos pagar ad infinitum) me faz desejar que fôssemos invisíveis”, complementa.
Terra de feitos épicos (e homens invisíveis)
Invisibilidade social parece ter sido sempre a marca dos garimpeiros de Serra Pelada. Mesmo que tenham produzido feitos épicos. “O garimpo tirou uma serra de um lado e colocou em outro. Isso não é pra qualquer um”, bate no peito Manoel Martins de Oliveira, um homem que chegou ao garimpo em dezembro de 1980. Dizia-se que o ouro de Serra Pelada pagaria a dívida externa brasileira. Mais de três décadas depois, Antonio Bernardo, o Godô, luta aos 64 anos, contra uma hanseníase que lhe insiste em pregar peças. A última foi uma ferida no rosto. O curativo imenso esconde a chaga. Pobreza e doença se tornaram companheiras dos ex-garimpeiros. Juntam-se à saudade, a uma melancolia resignada, a um bom humor de quem viu e viveu boas aventura e à incerteza dos dias que restam.
“A gente fez parte do Brasil. Eu sei disso”, diz o ex-garimpeiro que só atende pelo nome de Nick. É o pseudônimo que ele descobriu para dar vazão ao lado artista. Nick é pintor. Exibe os quadros com orgulho. A febre do ouro passou. Para ele não volta mais. Não?
Nos fundos da Loja Kaleny, bem no centro da vila de Serra Pelada, duas fotos chamam a atenção. Numa está a clássica imagem do formigueiro humano que foi o garimpo nos anos 80. Ao lado, uma foto com dois homens, sujos de lama da cabeça aos pés, outra imagem bastante difundida de Serra Pelada. É quase impossível reconhecer que o rapaz de 23 anos que posa com ar de esperança na foto, em um dia perdido de 1985, seja o mesmo proprietário da loja que vende de tudo um pouco. Cláudio Moraes tem hoje 49 anos e criou as duas filhas na vila de Serra Pelada. “Não enriqueci, ganhei problema de hérnia de disco, de coluna, mas sei que fiz parte de uma história bonita do Brasil”, diz. Cláudio Moraes está relativamente estabilizado. Não precisa diretamente do ouro do garimpo, mas quem disse que deixou de sonhar em voltar à ativa? “Daqui não arredo pé. Se esse garimpo voltar a dar ouro de novo, quero estar aqui”, afirma. Alguém registraria a cena?

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