quarta-feira, 15 de julho de 2015

Beiradeiros da Volta Grande: o aventureiro

Beiradeiros da Volta Grande: o aventureiro
Pelo que Marcela vai contando durante a viagem pelo rio, o desafio de seu trabalho é grande. Ficar preso à terra não faz parte dos sonhos de nenhum beiradeiro. A maioria ali conheceu e viveu o garimpo, mudou de fonte de renda conforme a força do vento (ouro, seringa, castanha, caça, pesca, construção) e não está habituada a ficar tão presa a mesma atividade, ao seu ritmo lento. Embora acumule muitos saberes e não levem uma vida nada fácil, os ribeirinhos nunca viram as suas terras como os agricultores tradicionais.
Seu Jessé Oliveira Aranha, de 46 anos, é um exemplo dessa dificuldade. Ele está na Ressaca desde 2012, quando foi realocado. Sua casa anterior foi largada para trás devido às obras da UHE Belo Monte. Quando nasci, já tinha muito ouro em Itatá. Era bravo explorar na época, assisti a morte de muitos índios e cristãos, conta ele enquanto senta na rede e sua esposa me traz um bolo macio de mandioca, perfeito para acompanhar o café. Seu Jessé acaba de voltar de Belém, onde passou por uma retirada cirúrgica de um tumor na cabeça e sessões de quimioterapia. Minha vida foi garimpo,só estudei até a terceira série… Hoje é diferente, meus filhos estão estudando. Tem uma certa dificuldade em contá-los…Tenho aqui quatro filhos e uma neta, mas tem mais três filhas em Altamira… Acho que é isso.
O rio Xingu, cenário da viagem (Norte Energia/ Divulgação)
O rio Xingu, cenário da viagem (Norte Energia/ Divulgação)
Ele terá de se mudar novamente devido às obras de uma mineradora. Mas suas terras para plantio não são ali, estão mais adiante. Marcela tenta falar das mudas de cacau, estavam enviveiradas, já foram plantadas? Não todas, ele diz, pedi a meu irmão que visse isso pra mim, completa, e o olhar volta-se para mim e para o chão, alternadamente: Isso aqui é tudo ouro embaixo, diz com os olhos brilhando.Mas larguei o garimpo em 97, agora não pode mais, lamenta-se. Olha de novo para Marcela e atira: eu queria que meu irmão cuidasse disso pra mim (referindo-se ao cacau). Volta ao garimpo: em 97 eu parei porque um túnel em que a gente estava desabou com quatro homens dentro… um estava ao lado, já ia entrar e, de repente.. Só meu irmão se salvou, os outros três morreram… Fiquei impressionado, sei lá, larguei o garimpo. E os olhos brilham de novo: mas conheço dois que ganharam muito e se garantiram, conseguiam segurar o ouro que garimpavam.. E, na seqüência, emenda: agora já tem cacau, queria criar novilhos. E olha para Marcela: acho que os vizinhos tão pegando o cacau lá, eu não posso ir, se meu irmão não for eles pegam, né?
Pergunto sobre Belo Monte. Ele não vê muita diferença, acha que é o progresso chegando. Diz que a água está um pouco diferente, não sobe nem desce em demasia. Preocupa-se com a piracema, com os peixes que vão para as águas rasas desovar.Especialmente o curimatá, é tão bonito ver aquilo.Vamos ver como vai ficar. Acha que a agricultura, com essa assessoria técnica, vai tirar a terra da penúria, especialmente pelo cacau. Só faz ressalvas ao transporte para as escolas. A Norte Energia pôs escola pra índio lá longe daqui, por ser índio, né? Nossos filhos pegam barco ou voadeira pra ir estudar. E sobre a mineradora que vai se instalar na região, notei um centro de capacitação profissional na ilha. Ele vai aproveitar? Eu quero que minha filha vá lá e aprenda algo. Mas não é para garimpar, não podemos mais. Se fosse…
Eu o olho na rede esticado, se recuperando da doença grave que teve, e pergunto se voltaria para o garimpo, se fosse possível, mesmo depois do trauma de 97. Ele negaceia, não diz que não ou que sim. Pergunto para pensar no que lhe sobrou de anos de garimpo. Pensando bem, avaliando… Sobrou só eu mesmo! E gargalha. Depois abre um sorriso de quem conhece algo que eu não sei, e completa: e minha experiência, né? A vida que tive. Insisto na possível volta. Os índios têm garimpo, eles podem fazer isso nas terras deles. Armados, não deixam ninguém entrar. Mandei falar com M… (o indígena responsável pelo garimpo que ele afirma conhecer), se ele precisar de investimento, sondagem, eu entrava de parceiro… E ri largamente, sabendo que eles não irão querer sócios.
Na despedida, me deixa um sorriso enviesado, de quem se senta na mesa de jogo e mostra o gosto de correr o risco. Fico com a sensação de que, em silêncio, Seu Jessé diz que sua vida valeu a pena – e que jamais poderia ser de outra forma.

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