Dona Lia e seu Marão Passagens da história do velho garimpeiro e de sua inseparável esposa com a qual ele enfrentou a dura lida da vida, visitas de onça e tentações assombrosas |
Seu Marão é um diamante. À primeira vista é bruto como a pedra. Bastam, no entanto, alguns segundos de convívio para a impressão se desfazer rio abaixo. É um homem carismático, atencioso, muito, muito engraçado. Gosta de visitas. Adora conversar, contar histórias de onça e assombração. Seus olhos brilham quando lembra da noite em que uma “pé-fofo” cheirou-lhe os pés na loca onde dormia (leia O caso da onça, abaixo) e das aventuras com dona Lia, por quem se apaixonou quando menino. Tinha 11 anos. O pai era conservador, não dava folga à filha. Namorar, nem pensar. Conversavam com os olhos – adivinhavam um ao outro. Mário cresceu e virou garimpeiro. Filho de agricultor, preferiu a pedra à planta. “O diamante é mais ligeiro”, alega. Em meados do século passado, o garimpo entrou em baixa e ele pegou a estrada para São Paulo. Voltou dez anos depois – cansara da cidade grande e morria de saudades da menina, então moça formosa. Homem feito, alto, “reforçado”, com fama de valente, impressionava as mulheres. Assim, casou com Lia, discreta, miudinha, uma figura – finge que não presta atenção mas não perde uma palavra do marido. “Ela bicou pra mim”, diz ele, às gargalhadas. Dona Lia o ajudava na lavra, fazia café, “quentava” a bóia, cuidava da loca onde passavam as noites. “Foi de lá que ele veio”, conta, cabeça baixa, voz sumida, referindo-se a Zé Mário, herdeiro da paixão do pai pelas pedras. “Sabe tudo”, diz Maria Luiza, falando do irmão. Segundo ambos, o pai poderia ter ficado rico com o que ganhou no garimpo. No entanto, gastou quase tudo em farras e nos forrós que organizava em sua casa, debruçada no ribeirão. Suas festas ficaram famosas. A folia seguia até o nascer do sol. Vez em quando dona Lia substituía o sanfoneiro com seu “pé-debode” – sanfoninha de oito baixos – mas gostava mesmo era de dançar. Seu Marão não tolerava casais agarradinhos. Falta de modos. Respeito. Um dia, alguns jovens o confrontaram, aconchegando demais as meninas. Enfurecido, ele correu à cozinha, pegou um facão e voltou num pulo à sala, riscando o chão ao redor. Não deu outra! Um disparou porta afora, outros, pela janela, sumiram todos no breu da noite.
Contam muitas histórias sobre ele. Dizem que atirava nos santos que não o atendiam. Certa vez, implorou a santo Antônio uma pedra grande no garimpo. Dona Lia sempre o esperava na janela – ele sempre vinha pelo rio. Naquele dia, voltou de cara amarrada e espingarda na mão. Temendo que destroçasse a imagem de sua predileção, de quase um metro de altura, com adornos dourados, ela a substituiu por outra, menor. Seu Marão foi direto ao oratório, engatilhou a espingarda mas..., refugou. Olhou, coçou a cabeça e disse: “Olhe, menino! Vá chamar seu pai que eu quero ter uma conversa com ele”. Valente com os homens, arrojado com os santos, ele não é o mesmo com as “coisas da noite”. Evita locais ditos assombrosos, sempre passa ao largo da gameleira sob cuja fronde, segundo ele, “o coisa-ruim concede audiência”. Seu Marão viu muita coisa estranha na vida: “Um homão torto na cabeceira da ponte, um vulto esquisito na tapera do Deodato, um menino passando por mim na direção do espantoso. Não sei o que o menino viu. Só sei que o chapéu dele inchou tanto que caiu da cabeça”. À parte o oculto, ele é respeitado pelo caráter, honestidade, coragem. “Meu pai passou 70 anos atrás de ouro e diamantes, mas a maior riqueza que ele nos legou foi o exemplo. Mostrou que não é preciso muito para ser feliz.” Seu Marão sabe que os tempos de garimpo já se foram, embora de vez em quando fuja de casa com a bateia na mão. É alguém que viveu intensamente. Um homem em paz consigo mesmo, com os seus e os outros. Não reclama de nada. Não trocaria a sua vida por outra. Não mudaria nada do que fez. Não quer saber de outro lugar além de Grão Mogol. É a sua terra natal, um lugar bonito, com gente hospitaleira, prédios coloniais, ruas estreitas, cortado pelo Ribeirão Vermelho. O acesso é difícil. Quando chove é um barro só e quando não, um poeirão. A cidade fica escondida no fundo do vale, ao pé da montanha. Quem chega vê mais telhados do que muros. Em todo lugar se respira pedra. Alguma coisa brilha. |
O caso da onça |
Onça é com seu Marão. Tem 25 no currículo. Umas, viu de relance. Outras, só o rastro. Das demais, ouviu somente o esturro ou algum grunhido breve na noite. A que chegou mais perto de acabar com ele foi a que cheirou-lhes os pés quando dormia numa lapa rasa, nos áureos tempos do garimpo. “Não sei como ela chegou. O teto era baixo, não pude fazer cama alta. Tava rente ao chão. Tinha dado chuva cedo. Fiz a janta, ajeitei as coisas e me enfiei no pano. Dormia quando senti coceira no pé e um cheiro esquisito no ar. Virei devagarinho e vi um vulto se mexendo. Pensei: é um cachorro, mas era grande demais pra ser cachorro. Aí enxerguei os olhos dela faiscando no escuro. E arrepiei. Ela tava olhando pra mim! Eu tava desarmado, só com o facão, Deus e Nossa Senhora. Gritei, mas o grito não saiu. Gritei de novo e aí ecoou alto, ela assustou e foi embora. Era rajada. Uma onça comedeira – devia ter comido muita criação. Era feia demais.” |
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