domingo, 20 de dezembro de 2015

TAPAJÓS POLUÍDO DE NOVO? NOTÍCIA DE ONTEM, NOTÍCIA DE HOJE

TAPAJÓS POLUÍDO DE NOVO? NOTÍCIA DE ONTEM, NOTÍCIA DE HOJE

Este rio continuará assim, limpo e bonito, se a agressão dos garimpos semimecanizados repetir o que fez há 30 anos, quando até as praias de Alter do Chão perderam o branco, tornando-se amareladas? E o possível efeito das hidrelétricas projetadas? É ameaça de todo lado...
Foto: MD

Algumas notícias começam a aflorar dando conta de que o rio Tapajós volta a ser atacado maciçamente pelo desvario da garimpagem semimecanizada. Como ocorreu há 30 anos, incontáveis toneladas de barrancos são desmanchadas pelos fortes jatos d'água na zona garimpeira dos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Tarirão, despejando a lama grossa e avermelhada nos rios e igarapés tributários do Tapajós. Se tamanha agressão se repetir agora, como parece já estar, com a chegada de ondas de migrantes para a região, a tragédia se somará aos prováveis efeitos danosos que poderão vir das cinco usinas hidrelétricas projetadas para a bacia do Tapajós. 
Garimpeiros desmanchando barrancos que viram lama e caem nos rios
 (Foto: Oldair Lamarque)
No dia 20 de dezembro de 1987 o jornal O Liberal publicou reportagem minha, da qual republico aqui um trecho. Naquele momento, o rio Tapajós chegou a mudar de cor, com a lama infestando o seu curso de quase 2 mil km, desde as proximidades de suas nascentes até a foz, diante de Santarém, passando por Alter do Chão cujas prias ficaram tingidas de lama, assim como todas as praias belíssimas do grande rio.

Naquela fase, eu fiz dezenas de reportagens e centenas de notícias sobre tamanha agressão que era produzida não somente pela lama, mas também pelo despejo maciço de mercúrio em toda a bacia do Tapajós, causando gravíssimas doenças, pois o mercúrio, usado para amalgamar o ouro, é o mais venenoso dos metais pesados existentes na natureza.
A situação começou a se reverter a partir do governo Collor, com a retenção da poupança, coincidindo com uma forte retração dos preços do ouro no mercado internacional. E o Tapajós foi, ao longo de 15 anos, retomando a sua coloração natural, mista de tons azulados e esverdeados, dependendo da época do ano e da claridade do sol.
Potentes dragas reviram os leitos de rios e igarapés
Tudo aquilo pode se repetir? Informações ainda por confirmar indicam que o rio, nas imediações da cidade de Itaituba, já estaria mudando de cor, tornando-se amarelado. Se comprovado, o desastre recomeça, e desta vez pode ser fatal.

A seguir, trecho da reportagem de 1987, na verdade a primeira de uma série que teve como título geral "Poluição, tristeza e morte nos descaminhos do ouro", com a qual ganhei o meu primeiro Prêmio Esso, cobiçada premiação a jornalistas brasileiros. Leia a seguir:

Mercúrio - o desastre já começou 

“... Produzam as águas répteis animados e viventes (...) Deus criou os grandes peixes e todos os animais que têm vida e movimento, os quais foram produzidos pelas águas segundo a sua espécie. E Deus viu que isto era bom” (Gênesis).

“... A terça parte das águas converteu-se em absinto e muitos homens morreram por causa daquelas águas, porque se tornaram amargosas” (Apocalipse).

O homem se confunde com a lama enquanto usa a beteia para recolher as fagulhas de ouro, com a ajuda do mercúrio que se impregna no corpo dele (fatimamissionaria.pt) 

O interior da Amazônia está sujo. A poluição chegou ao âmago das fontes de vida do “pulmão do mundo”. Ao longo das grandes veredas Transamazônica e Santarém-Cuiabá o volume de poeira é tamanho, que em certos trechos é quase impossível imaginar que ali possa existir vida humana. Há quatro meses sem chuvas, logo mais todo aquele pó penetrante se transformará em intermináveis lamaçais só comparáveis às cenas do filme que mostra a escravidão dos hebreus no Egito. Como na época dos faraós, a tristeza e o desânimo estão estampados no rosto das pessoas, cujas roupas e os corpos estão tão sujos quanto o chão que pisam e o ar que respiram.

Nos núcleos populacionais as águas servidas misturam-se à poeira fina. Os igarapés vão minguando e muitos já desapareceram. Das queimadas vem o forte cheiro da mata em chama e a fumaça traça no horizonte a mancha cinzenta da falta de perspectivas que redunda no abandono dos lotes e no prosseguimento de uma marcha sem destino que fatalmente levará aos garimpos da região ou às periferias não menos imundas das cidades mais próximas. Embora nem sempre miseráveis, no sentido da pobreza absoluta, milhares e milhares de brasileiros atraídos pelas falsas promessas de uma colonização “à la diable” e pela ilusão do ouro nos garimpos de Itaituba, estão chafurdando na imundície de uma fronteira que não mostra sinais de futuro e dias melhores.

A garimpagem, a grande e tortuosa oportunidade para homens e mulheres desesperados e sem alternativas na atividade agrícola, é hoje a mais aterrorizante fonte de uma poluição ainda mais perversa e devastadora. Toneladas incontáveis de barrancos já rolaram para dentro dos rios e igarapés cujos leitos já foram revirados pelas dragas. O rastro da destruição já mudou a cor de muitos cursos d’água, matou-lhes a vida, contaminou seus peixes, afetando rios maiores como o médio Tapajós, cujas águas estão hoje totalmente descaracterizadas, turvas. Um grande esgoto em formação.

Ao lado da poluição física dos rios, desce a avalanche mortífera resultante do derrame e da vaporização de toneladas de mercúrio, o mais venenoso dos metais pesados, empregado na garimpagem como meio para juntar as fagulhas do ouro no fundo das bateias e que depois será queimado, na separação dos dois metais. Estima-se que, nos últimos dez anos, com o empobrecimento de antigos veios aluvionares, mais mercúrio vem sendo empregado, chegando a superar, em volume, o ouro extraído. “Por cima”, como se diz na região, a média pode estar entre um quilo e um quilo e 200 gramas de mercúrio para um quilo de ouro.

A serem aceitáveis as estimativas sobre o volume de ouro extraído anualmente dos quase 300 centros maiores de garimpagem de Itaituba, infere-se que, de 1983, até agora, algo em torno de 250 toneladas de mercúrio foram disseminadas nas águas e no solo (no mundo, são empregadas 10 mil toneladas de mercúrio na mineração, na indústria e nas atividades agrícolas). No vale do Tapajós a mineração vem de 1958. Na verdade, não existem dados sobre a contaminação no interior da Amazônia. Mas já se sabe que a contaminação existe, que é grave, volumosa e seus efeitos começam a ser detectados cientificamente.

É certo que hoje uma parte da população dos municípios de Itaituba, Aveiro e Santarém está comendo peixe contaminado pelo metilmercúrio, o veneno decorrente das transformações químicas que o metal sofre após a manipulação, embora a fauna, como um todo, não esteja ainda afetada em níveis superiores ao que suporta o organismo humano. Contradizendo a opinião de muitos que ainda teimam em afirmar que “esse negócio de poluição é coisa da cabeça de ecologista”, um exame laboratorial realizado na semana passada revelou que um tucunaré, capturado no Tapajós, perto de Santarém, apresentava contaminação mercurial, embora em níveis aceitáveis, segundo parâmetros estabelecidos em alguns países desenvolvidos.

Há menos de um mês, outro exame efetuado em cinco amostras de peixes capturados um pouco acima de Itaituba, revelou que a carne de um pirarucu apresentava 1.088 ppb (partes por bilhão) de mercúrio, isto é, mais que o dobro do aceitável para consumo humano, que é de 500 ppb, conforme a literatura a respeito do assunto, existente em outros países. O problema ainda é muito pouco pesquisado no Brasil, mas é aceito o princípio segundo o qual nos peixes contaminados é encontrada uma variação que pode ir de 10% a 80% de metilmercúrio, a forma mais perigosa do mercúrio, capaz de devastar o organismo humano .

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