Decolagens sem pousos: 40 anos separam os pilotos Salgado e Luiz Feltrin. E tantos outros
Jornalismo e História
O presente caso do acidente do bimotor prefixo PT-IMN, um Baron da Jotan Táxi Aéreo, de Itaituba, pilotado por Luiz Feltrin, e que transportava quatro passageiros do serviço de saúde aos indígenas, me faz lembrar tantos outros casos idênticos ocorridos nessa mesma rota nas últimas décadas. O avião de hoje já foi localizado, um mês depois da queda em meio à mata densa perto de Jacareacanga. Mas houve casos em que as buscas demoraram anos (não perca de vista que este texto foi escrito há muitos anos, embora a questão aí abordada permaneça presente. Daí a sua atualidade relativa).
A reportagem que segue eu publiquei no jornal O Liberal, de Belém, no dia 19 de junho de 1983. Ao final do texto há observações sobre fontes e outros episódios:
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Piloto de Garimpo
O comandante Amaury Spinola Salgado acelerou os motores, pedindo máxima potência de seu Beech Craft Bonanza S35A, e decolou do aeroporto de Itaituba em direção a um dos muitos garimpos da região, transportando uma passageira e um carregamento de comestíveis. Ao contrário do que acontecera nos últimos 30 anos, o comandante Amaury não conseguiu pousar em parte alguma, apesar de ser considerado, na época, o melhor piloto de aviões pequenos que a região garimpeira sob a influência de Santarém/Itaituba conhecia.
A decolagem que não teve pouso aconteceu no dia 9 de maio de 1974 e somente dois anos e meio mais tarde o avião foi finalmente encontrado, a cerca de 30 minutos de Itaituba, na rota dos garimpos do alto Tapajós. Somente a carcaça incinerada do aparelho e pedaços de vestuário foram encontrados. O corpo do piloto e o de sua passageira continuam misteriosamente desaparecidos.
Foi a mais longa e mais volumosa operação de busca a um avião acidentado já vista na região. Durante 12 dias quatro aviões do Serviço de Busca e Salvamento, além de muitos outros aparelhos particulares, vasculharam a área, sem resultados. Finalmente, em dezembro de 1976 o garimpeiro Chico Mineiro encontrou os destroços, mas o achado não desfez de vez o mistério de dois corpos sumidos, além de terem sido encontrados vestígios de objetos pessoais.
Ocupação pelo avião
O desaparecimento do comandante Amaury foi a primeira grande baixa sofrida pelo grupo de aviadores pioneiros que, vindos de diversos Estados, mais notadamente do Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul - e também do Pará - deram início, por volta de 1960, à ocupação, pelo avião, da imensa região de garimpagem do município de Itaituba e que paulatinamente se estenderia pela zona fronteiriça dos Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
A descoberta dos garimpos do Tapajós vivia ainda seus primórdios e a aviação começava a substituir lentamente as aventuras, seguramente mais perigosas, das longas viagens de barco e canoas, maratonas que duravam até um mês, partindo de Santarém, até os locais onde se começava a arranhar a terra em busca do ouro. De acordo com os relatos de antigos pilotos, alguns deles já aposentados, pertence a um paraense a façanha de primeiro pousar numa pista de garimpo. E isso aconteceu em 1962, quando coube ao comandante Deusdedith Penna a tarefa de inaugurar a pista do garimpo do Marupá, ao comando de um vagaroso Cessna 162. Em condições infinitamente mais precárias do que hoje, a pista do Marupá, a primeira das 180 atualmente existentes, media tão somente 220 passos de comprimento. Tão malfeita era que velhos pilotos brincam, dizendo que a pista tinha três degraus e que para decolar era preciso ir pulando cada degrau, com o avião saltando até sair do chão.
Farras de loucos
A inauguração da pista do Marupá, hoje uma das melhores da área, marcava o fim de um ciclo que caracterizou os primeiros dias em busca do Eldorado nesta parte do Pará. Uma epopeia que deu os primeiros passos infrutíferos pelo ano de 1957 e que somente viria a efetivar-se em 1958, graças ao pioneirismo de dois irmãos - Nilçon Pinheiro (o ex-deputado estadual) e Edson Pinheiro (já falecido, comprovadamente por intoxicação mercurial).
Varando as matas de Itaituba, vindo do Amazonas, eles foram literalmente abrindo uma imensa picada na selva, por entre rios, igarapés e mata fechada. Depois de atingir Jacareacanga até encontrar fortes indícios de cascalho de ouro nas margens do igarapé Cuiú-Cuiú, onde se fixaram para formar o primeiro garimpo da região, espécie de posto avançado para uma corrida gigantesca que ainda está por ser estudada e revelada em seu verdadeiro significado.
E foi no Cuiú-Cuiú que se abriu a terceira pista de pouso, depois da do garimpo Carneirinho. Na época, Itaituba não passava de um acanhado ajuntamento típico da beira dos rios e Santarém era o ponto preferido para os garimpeiros que desciam do alto Tapajós para reencontrar a família e fazer farras de loucos. O intenso foguetório chamava a atenção para a chegada ou a saída dos barcos “Arnaldo Pinheiro” e “Barroso Pinheiro”, que faziam a ligação até os locais de onde o transporte somente poderia ser feito em botes de casco especial para as cachoeiras da região.
Primeiros passos
Entretanto, nessa época, a ocupação dos garimpos por via aérea já ensaiava seus primeiros passos. O ouro já começava a atrair aventureiros e ainda é lembrado o Catalina PT-ANP pertencente ao quase legendário Capitão Muniz, que saía de Belém executando autêntica maratona de regatão pelo interior, quase sempre encerrando a linha em Jacareacanga. Tanto o Capitão Muniz como o comandante Rogério Abreu e o comandante Pita chegaram a pousar, do final da década de 50 para começos da década de 60, em Catalinas, em algumas áreas incipientes de garimpagem, graças à capacidade desse tipo de avião de utilizar o rio à falta de pista seca. Era a época da Sava (Serviços Aéreos do Vale Amazônico) que empregava velhos aviões alienados pela FAB.
Foi nesse tempo da pré-história dos garimpos do Tapajós que o comandante Pita, que trabalhava na Sava, encontrava-se no aeroporto de Santarém, à espera de alguns passageiros para o município de Itaituba. Ele não sabia de quem se tratava. De repente, chega um caminhão trazendo 40 porcos e dois peões. Devidamente amarrados os animais, lotaram o avião e o aparelho decolou, roncando mais por dentro que por fora. Depois do pouso pioneiro numa pista de chão, protagonizado pelo paraense Deusdedith Penna, vieram, entre 1962 e 1963, Fábio Argento Camargo, gaúcho; Irineu Morini, paranaese; o paulista José Clóvis Stangl (filho do dono da fábrica de cerveja Caracu); o paraense César Medina do Amaral e o também paraense Francisco Ferreira Lima, além do polonês Munir Yurt Sever, apelidado de Michey.
Um caboclo guiava o piloto
Se voar para os garimpos ainda é hoje uma aventura que somente o afã do ouro e da riqueza podem motivar, infinitamente maiores eram os riscos arrostados por esses pioneiros. Nos primeiros anos, era comum os pilotos levarem consigo um caboclo conhecedor das matas e dos rios. Lá de cima, ele ia identificando os acidentes geográficos que eram checados no mapa pelo piloto. Boa parte da capacidade de carga dos pequenos aviões era comprometida com latas de gasolina para garantir o retorno.
Sem os recursos mínimos - além da bússola - os voos eram feitos inteiramente visuais e qualquer mau tempo motivava um retorno imediato pela falta de pistas alternativas. Hoje, apesar dos progressos mínimos, os pilotos têm dezenas de alternativas de pouso nos toscos campos abertos na floresta. O grande número de aviões em voo diário permite a formação de uma verdadeira malha de intercomunicação no ar, de aparelho para aparelho, permitindo a quebra do isolamento e a possibilidade de localização mais rápida, em caso de acidente. Mesmo assim, continua desaparecido o piloto José Dias que, há três meses, saiu de Itaituba com dois passageiros e até hoje não há nenhum indício de seu paradeiro. Hoje, talvez, o comandante Amaury não teria passado tanto tempo desaparecido e seu caso tivesse sido envolto em menos mistérios.
Como ele, não são poucos os pilotos que morreram nesse processo desordenado de ocupação da região, com necessidade cada vez maior de atingir os pontos mais distantes e inóspitos da floresta, onde quer que vá sendo encontrado ouro. Conhecidos, e até popularizados por seus nomes de guerra, ficaram nesses caminhos, além de Amaury, o veterano comandante Peres*, acidentado quando levava o avião para manutenção, no sul, viajando em companhia da própria mãe, da esposa e dos filhos de seus sócio, Flávio Galdino, num total de nove mortos, em janeiro de 1976, bem perto de Santarém. Foi esse o mais grave e chocante desastre aéreo que Santarém já conheceu.
Pilotos e anônimos
Mas morreram também os pilotos Cercazim, Marcão, Ivinho**, Lourival, Levindo, Ivan, Nelson, Catatau, Jari, Isaías, Ivan II, Jean, o francês, Gerson e vários outros. Com eles, morreram dezenas de anônimos peões, garimpeiros, comerciantes, simples passageiros, mulheres e crianças. Embora sem ligação com o garimpo, mas viajando na rota Itaituba-Santarém, até o reitor nomeado do Seminário Pio Décimo, frei Vicente Fuerst, perdeu a vida ao lado de garimpeiros, perto de Boim, no começo de 1973. Os acidentes menores, sem mortes, são incontáveis, e as histórias que correm na região são inumeráveis. Nos últimos dez anos, com o incremento da aviação local, praticamente não passa um mês sem um acidente grave nessa epopeia da qual muitos saíram para a riqueza, e muitos, para o túmulo.
Ao lado da abertura de dezenas de pistas de chão nas proximidades dos terrenos de garimpagem, a abertura das grandes rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá veio dar maior - e relativa - segurança aos voos e nelas, algumas vezes, são feitos pousos de emergência. O crescimento de Itaituba, sobretudo a partir de 1971, com a penetração das estradas, foi aos poucos transformando aquela cidade no posto avançado em direção aos garimpos, substituindo Santarém que hoje se apresenta como ponto secundário. O número de aviões estacionados no aeroporto de Itaituba é impressionante e, há algum tempo, uma revista de circulação nacional afirmou que a cidade é o núcleo urbano com o maior número de aviões per capita do Brasil, embora a estimativa seja improvável.
Segundo dados não oficiais, baseados entre Itaituba e Santarém, dedicados à rota dos garimpos, existem 170 pilotos, 20% deles originários da própria região, revezando-se no comando de 160 aviões que utilizam as 180 pistas espalhadas na área, das quais nem dez apresentam as condições mínimas de operação. Esse verdadeiro “boom” foi deslanchado, sobretudo, a partir de meados de 1964, quando a Reta (Rede Estadual de Transportes Aéreos), de Londrina, Paraná, mandou rumo ao Norte mais dois aviões. A mudança decorria da modernização das estradas no Sul do País e as empresas aéreas locais buscavam mercados mais compensadores.
Pioneiros e clareiras
Nessa segunda leva, a da Reta, vieram os pilotos Rigo Nereu Jensen, Augusto Cercazin (morto num dos desastres mais misteriosos até hoje) e Augusto Paumitesta (assassinado após esta reportagem). A primeira equipe daquela empresa já havia chegado ao vale do Tapajós em janeiro de 1964, com três Bonanza comandados por Ivo Engelbert, Rubens Jomdral (hoje comandante de Boeing 737, na Vasp) e Fábio Proença Pires. Poucos meses antes já voara na região o próprio diretor da Reta, Sidney Polis. Depois vieram outros, entre eles Galdino Flávio de Almeida, na época em que o município de Itaituba era penetrado pelos pioneiros, inicialmente abrindo clareiras e pistas ao lado dos barrancos de garimpagem.
No início, em locais onde ainda não havia pistas, as mercadorias eram costumeiramente jogadas dos aviões em direção aos barracões. Era a única maneira de fazer chegar, com certa rapidez, alimentos a grupos avançados de homens que adentravam a floresta por via fluvial. Nesse tempo, a malária e outras doenças eram uma ameaça maior que hoje, não porque fossem mais disseminadas que atualmente. Mas por causa do grande isolamento e da inexistência de radiofonias que possibilitassem a chamada de um teco-teco. Ao mesmo tempo, o avião foi fator decisivo de grande parte da penetração e expansão da área garimpeira, utilíssimo instrumento contra os perigos das enormes distâncias.
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* O comandante Peres transportou o repórter autor desta reportagem de Santarém até o canteiro da então incipiente Mineração Rio do Norte, no Rio Trombetas, cerca de dois meses antes do acidente fatal.
** O comandante Ivinho caiu num garimpo de Itaituba duas semanas após levar o repórter autor desta matéria à Serra da Lua, ou Serra do Ererê, município de Monte Alegre, viagem que resultou na reportagem “Na Serra do Ererê, a pedra dos falsos sacrifícios”, sobre as inscrições rupestres deixadas por antiga civilização. Esse sítio foi visitado, em 1992, pela arqueóloga Anna Roosevelt - rebatizado por ela como a Caverna da Pedra Pintada. Escavações na região, incluindo sítios em Santarém, levariam a pesquisadora norte-americana a afirmar, em entrevista a O Estado de S. Paulo (p.A18, 16.03.96): “O importante é que essas descobertas se opõem à teoria ainda corrente, segundo a qual a Amazônia sempre recebeu culturas de outros lugares. A cerâmica que descobrimos na região mostra o contrário: lá havia uma cultura original, com tecnologia própria...” (19.6.83).
OBS:
As principais fontes para esta matéria foram os pilotos Fábio Argento Camargo,
César Medina do Amaral e Francisco Ferreira Lima.
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