Dor de barriga misteriosa
Descubra se você está no grupo de milhões de pessoas em todo o mundo que também sofrem desse incômodo.
NO OUTONO DE 2014, Martin Burridge, engenheiro aeroespacial do Reino Unido, achou que ia morrer: uma cólica súbita o fez cair de joelhos em agonia. O galês de 46 anos e dois filhos, que nunca tivera problemas digestivos, tinha tantos gases que não conseguia comer. Perdeu 16 quilos em seis meses, teve de tirar dois meses de licença e ficar deitado no sofá, incapaz de se mexer. Ele temia estar com câncer.
Em alguns dias, Luciene Farinelli, tradutora de espanhol de 41 anos, do Rio de Janeiro, tinha tanta indigestão, prisão de ventre e flatulência que inchava a ponto de parecer grávida, a barriga dura como pedra. “Minha barriga incha de tal forma que roupas mais largas ficam apertadas”, descreve. “Isso sem falar no constrangimento que sinto pelos gases. O barulho é enorme”, lamenta. Três ou quatro dias se passavam sem que ela conseguisse evacuar. Certa vez, o problema durou duas semanas. E, de repente, suava frio, sentia intenso mal-estar e uma vontade súbita de ir ao banheiro. “Já tive cólicas que davam a impressão de estar sendo perfurada”, relata. Os médicos, das mais diferentes especialidades, não descobriram nada.
Para Samuel Melo, 33 anos, pernambucano de Garanhuns, tudo começou aos 27 anos. Em 2010, o analista de sistemas foi internado com hemorragia. No hospital, os médicos chegaram a cogitar a hipótese de câncer. Samuel costumava sofrer súbitas contrações intestinais e tinha de achar um banheiro na hora, com medo de não chegar a tempo – e, às vezes, não conseguia. “Já aconteceu de ir ao banheiro 10 vezes ao dia. Eu me contorcia de dores”, recorda.
Nesses três casos, a doença misteriosa era a síndrome do intestino irritável (SII), a qual, só no Brasil, segundo estimativa da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG), atinge de 10% a 12% da população, especialmente a feminina. “A proporção é de quatro mulheres para um homem”, explica a gastroenterologista Maria do Carmo Friche Passos, presidente da FBG. Distensão abdominal recorrente, dor, diarreia e/ou prisão de ventre são as principais características, mas flatulência em excesso, cólicas, azia, náusea, vômitos, exaustão, suores, tremores e incontinência súbita também podem fazer parte do quadro. “O diagnóstico requer, no mínimo, seis meses de sintomas, pelo menos três vezes por semana”, acrescenta a Dra. Maria do Carmo.
Embora a pessoa ache que vai morrer, os exames nada encontram de errado. Especialistas dizem que o diagnóstico se baseia na presença de sintomas, no histórico de saúde e no descarte de outras doenças.
No entanto, depois de anos de negligência como campo de estudo, a pesquisa sobre a SII vem aumentando. Maria do Carmo, que também é professora no Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), observa que isso poderá ajudar bastante uma legião de sofredores. “Quem não tem SII não faz ideia do sofrimento que ela provoca. As pessoas deixam de ir a restaurantes e até de viajar. A SII compromete a qualidade de vida do indivíduo”, diz.
Felizmente, a maioria dos que apresentam a SII encontra maneiras de administrar ou reduzir os sintomas.Se você ou alguém próximo tiver SII, eis oito fatos que podem ajudar a compreender melhor a doença e controlar os sintomas:
1. Descarte outras doenças
Algumas enfermidades graves podem ter sintomas parecidos com a SII: doença celíaca, doença inflama-tória intestinal e alguns tipos de câncer. Embora sejam muito mais raras, precisam ser descartadas antes do diagnóstico definitivo.
“No caso de outras doenças gastrointestinais, há exames de imagem, laboratório, colonoscopia e tomografia, só para citar alguns recursos, que ajudam o médico na eventual confirmação do diagnóstico. No caso da SII, porém, não há exame complementar. O diagnóstico é puramente clínico”, afirma a Dra. Maria do Carmo.
Todas as diretrizes sobre a SII recomendam que os pacientes façam exames de sangue para verificar se há doença celíaca, que é a intolerância ao glúten do trigo.
O exame de calprotectina fecal, um marcador de inflamação intestinal, está sendo usado por gastroenterologistas para verificar se há doença de Crohn e colite ulcerativa.
Samuel Melo levou um ano inteirinho para descobrir o que provocava suas cólicas. Fez uma série de exames – de hemograma a colonoscopia, de endoscopia com a biópsia do duodeno a ressonância magnética com doppler do abdome total – para ver se havia câncer ou doença inflamatória intestinal, mas os médicos nada encontraram. “Em 2011, finalmente, um gastroenterologista descobriu que, além de SII, também tenho doença celíaca e intolerância a lactose”, conta.
“É claro que a presença de sangue em abundância nas fezes, além de emagrecimento, anemia e desnutrição, são características de outros quadros orgânicos. No entanto, muitas vezes, o indivíduo com SII restringe sua alimentação e, por esse motivo, pode apresentar alguns destes sintomas”, pondera o médico gastroenterologista Dr. Flávio Steinwurz, presidente da Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD) e diretor do Departamento de Gastroenterologia da Associação Paulista de Medicina (APM).
2. Não há só um tipo de SII
Em geral, os pacientes se encaixam em proporções iguais nos três tipos de SII: com diarreia (SII-D), com constipação (SII-C) e alternante (SII-A). Mas esses três tipos podem ter causas diferentes e com características próprias de cada indivíduo.
“A SII é uma doença funcional, ou seja, não tem uma causa orgânica detectável. Em geral, está relacionada à alteração no funcionamento e na sensibilidade do intestino. E, com frequência, está associada a problemas emocionais ou psiquiátricos, que também precisam ser investigados”, diz o médico gastroenterologista Dr. Luiz João Abrahão Júnior, presidente da Sociedade de Gastroenterologia do Rio de Janeiro (AGRJ).
A pesquisa indica várias mudanças sutis que podem estar por trás do desenvolvimento da SII, como dieta inadequada, ansiedade, estresse, alergia e intolerância alimentar, supercrescimento de bactérias, fungos e parasitas intestinais, baixa produção de enzimas digestivas e, ainda, alteração na secreção de hormônios intestinais responsáveis pela contração do cólon, como observa a médica nutróloga Tamara Mazaracki, membro da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN).
3. Existe SII pós-infecciosa
Até um terço dos casos de SII pode surgir depois de uma infecção gastrointestinal ou intoxicação alimentar causada por vírus ou bactérias. É a chamada SII pós-infecciosa (SII-PI). “Em geral, o indivíduo vai a uma festa, consome algum alimento que não deve e seu intestino nunca mais será o mesmo”, exemplifica Maria do Carmo. Um dos casos mais bem documentados de SII-PI no mundo ocorreu no Canadá em 2000, quando cerca de 2.500 pessoas foram expostas a água contaminada com as bactérias E. coli e Campylobacter. Essas pessoas foram acompanhadas durante oito anos por uma equipe de pesquisa da qual o Dr. John Marshall, gastroenterologista e pesquisador da Universidade McMaster, em Ontário, no Canadá, foi um dos líderes.
A pesquisa constatou que alguns fatores causam mais risco de desenvolver SII-PI: sexo feminino, uso de antibióticos durante a infecção, transtorno de ansiedade preexistente e suscetibilidade genética, diz o Dr. Marshall.
4. Descubra os gatilhos alimentares
Muita gente com SII acha que certos alimentos pioram os sintomas. Manter um diário alimentar ajuda a fazer o vínculo entre o que se comeu e a reação dos sintomas. “O mais importante na SII é procurar descobrir quais alimentos sensibilizam o intestino. Dentre os principais vilões, temos o leite e seus derivados, grãos ricos em glúten, excesso de cafeína, chocolate, frutas cítricas, alimentos gordurosos e frituras, e bebidas alcoólicas”, lista a médica nutróloga Tamara Mazaracki.
Nos últimos anos, uma alimentação específica desenvolvida na Austrália – a dieta com baixo teor de FODMAP – tem recebido muita atenção, e alguns estudos mostram que, em 75% dos diagnosticados com SII, essa dieta reduziu os sintomas. FODMAP é uma sigla que significa oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis. Esse nome comprido descreve tipos de carboidratos de cadeia curta, encontrados em muitas frutas, legumes, verduras, cereais e laticínios, que tendem a fermentar como açúcar no intestino e causar a produção excessiva de gazes.
“Esses alimentos devem ser eliminados do cardápio por seis a oito semanas. E, depois, reintroduzidos um a um para descobrir o que causa o problema. O grau de tolerância varia de indivíduo para indivíduo”, explica a Dra. Tamara Mazaracki.
5. Consuma as fibras certas
Durante anos, os médicos recomendaram mais ingestão de fibras, mas hoje sabe-se que elas têm de ser do tipo certo. “As fibras são essenciais para o funcionamento do intestino porque regulam o trânsito intestinal. Elas funcionam como uma esponja, que absorve água e gordura, aumentando, assim, o tamanho do bolo fecal e deixando-o mais macio e solto. Isso estimula os movimentos do intestino e ajuda na evacuação”, explica a Dra. Tamara.
Um estudo holandês do qual o Dr. Niek de Wit, da Universidade de Utrecht, participou verificou que as fibras insolúveis, como as do farelo de trigo, devem ser evitadas. Na verdade, o estudo constatou que aumentar a ingestão de farelo é pior para os pacientes com SII.
“A primeira coisa que fazemos é retirar as fibras insolúveis dos cereais, farelo de trigo e pão integral”, explica o Dr. Peter Whorwell, diretor de uma clínica de Manchester, no Reino Unido, especializada em SII.
No entanto, ingerir mais fibras solúveis, como as do farelo de aveia ou de suplementos, pode melhorar os sintomas. Em quem tem diarreia, a fibra solúvel absorve o excesso de água. Em quem tem prisão de ventre, ela retém água e torna as fezes mais macias.
“Não se trata de excluir todas as fibras. No caso do glúten, que pode causar diarreia, gases, constipação e dor abdominal, há diversas opções, como chia, linhaça, farinha de coco, de feijão, de grão-de-bico e de amêndoas”, enumera a Dra. Tamara.
6. Veja fatores psicológicos
Embora o estresse e a ansiedade possam piorar os sintomas da maioria dos pacientes, os médicos não deveriam desdenhar a síndrome como meramente “psicológica”, orienta o Dr. Flávio Steinwurz, presidente da Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD).
Mas, embora hoje a explicação puramente psicológica da SII esteja desacreditada, ele observa que a pesquisa mostra uma forte ligação.
“Os fatores psicológicos parecem ser importantes no desencadeamento e no agravamento dos sintomas da SII. O hipotálamo, que é o centro processador de emoções do sistema nervoso central, tem, através do sistema parassimpático, ligação direta com o trato gastrointestinal. Isso facilita a compreensão de que fatores emocionais podem atuar no intestino e alterar a motilidade dele”, detalha
o Dr. Steinwurz.
o Dr. Steinwurz.
Algumas pessoas com SII podem ter o intestino hipersensível, mais reativo ao estresse e à ansiedade. É o caso de Samuel Melo. “Basta ter algum problema emocional, como uma prova na faculdade ou uma reunião no trabalho, para meu intestino ficar desregulado”, queixa-se o rapaz. “Quando isso acontece, tenho que tomar um ansiolítico para cumprir minhas obrigações.” Tratamentos como a terapia cognitivo-comportamental, as técnicas de relaxamento e, principalmente, a hipnose podem ajudar a acalmar o intestino nervoso.
“Do ponto de vista científico, é difícil mensurar o benefício de tratamentos psicoterápicos. Mesmo assim, acreditamos que o apoio psicológico pode ser útil ao paciente. No Brasil, ainda não temos experiência com hipnose e técnicas de relaxamento para casos de SII”, afirma o Dr. Steinwurz.
7. Tome probióticos
Acredita-se cada vez mais que
alguns pacientes, em especial os que têm SII pós-infecciosa, apresentam algum distúrbio das colônias de bactérias boas que residem no intestino e ajudam a digestão dos alimentos. “Probióticos são bactérias vivas que, quando ingeridas, povoam nosso intestino e transformam uma microbiota (colônia de bactérias) intestinal doente em outra, saudável. Isso reduz o processo inflamatório e normaliza o funcionamento do intestino”, diz o Dr. Luiz João Abrahão Júnior. “Há vários probióticos no mercado. Embora eles sejam vendidos sem receita, sua escolha deve ser feita por um médico. A escolha inadequada pode piorar os sintomas, em vez de amenizá-los”, alerta o gastroenterologista.
alguns pacientes, em especial os que têm SII pós-infecciosa, apresentam algum distúrbio das colônias de bactérias boas que residem no intestino e ajudam a digestão dos alimentos. “Probióticos são bactérias vivas que, quando ingeridas, povoam nosso intestino e transformam uma microbiota (colônia de bactérias) intestinal doente em outra, saudável. Isso reduz o processo inflamatório e normaliza o funcionamento do intestino”, diz o Dr. Luiz João Abrahão Júnior. “Há vários probióticos no mercado. Embora eles sejam vendidos sem receita, sua escolha deve ser feita por um médico. A escolha inadequada pode piorar os sintomas, em vez de amenizá-los”, alerta o gastroenterologista.
Muitos pesquisadores da SII preveem que, no futuro, probióticos especialmente projetados serão usados para substituir as bactérias boas que faltam no organismo.
8. Procure apoio
Os pacientes com SII podem se sentir muito sozinhos. Falar de problemas digestivos em público ainda é tabu. No entanto, as comunidades sobre SII estão proliferando na internet.
No Brasil, a rede social Facebook tem pelo menos dois grupos formados por portadores da síndrome. O mais numeroso deles, administrado por Samuel Melo, já tem mais de 7 mil membros. “Tenho procurado levar uma vida mais tranquila e com uma alimentação mais saudável. Por orientação médica, cortei glúten, lactose e feijão do meu cardápio. Conviver bem com a SII não é fácil, mas é possível”, avalia Samuel.
“Infelizmente, ainda não podemos falar em cura da SII. Mas, em controle dos sintomas”, ressalta a Dra. Maria do Carmo. “Se o paciente tomar as devidas precauções, como reduzir o nível de estresse ou combater a dor com antiespasmódicos, a vida pode melhorar bastante. Se não melhorar 100%, ao menos ele aprenderá a conviver bem com os sintomas.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário