A crítica do jornal americano The New York Times foi contundente: “Existe um excêntrico na cidade de Apalachicola, Flórida, que pensa poder fazer gelo tão bem quanto Deus Todo-poderoso”. O excêntrico era John Gorrie, devotado médico americano que passou boa parte da vida interessado em melhorar as condições dos doentes, na maioria marinheiros sofrendo de febre amarela, que eram tratados em seu hospital. Gorrie, nascido em Charleston, Carolina do Sul, em 1803, tinha se mudado aos 30 anos para a cidade portuária de Apalachicola, conhecida por seu clima extremamente quente e úmido. A partir de 1838, ele teve a idéia de pendurar sacos de gelo nas salas do hospital, para tornar mais ameno o ar que seus pacientes respiravam.
O difícil era conseguir gelo em quantidade suficiente. Frederic Tudor, um mercador de Massachusetts, tentou resolver a questão armazenando gelo dos lagos e rios no inverno, para depois vendê-lo nas cidades quentes no verão. A conservação era feita em silos isolados com serragem. Mas a entrega era irregular e a quantidade não dava para o consumo. O preço era também exorbitante: 2,75dólares o quilo, um absurdo na época. Diante disso, em 1850 Gorrie resolveu pôr em prática seus conhecimentos de Física: construiu uma máquina a vapor que movia um pistão dentro de um cilindro. Em volta do sistema ha via um recipiente com água salgada, que congela a uma temperatura mais baixa que a água pura.
O pistão comprimia e expandia alternadamente vapor de água, que por sua vez roubava calor do meio externo – o recipiente de água e sal – para passar do estado líquido ao gasoso. Quando a água salgada não tinha mais calor para ceder ao gás, os dois se resfriavam. O ar então era liberado no ambiente, enquanto a água salgada congelava ainda outro frasco de água doce colocado no recipiente. Assim, de uma só tacada Gorrie tinha inventado o ar-condicionado e a geladeira. Ele foi também o primeiro a fabricar um aparelho comercialmente viável. A primeira apresentação pública da engenhoca se deu em 1850, no dia 14 de Julho, quando os franceses comemoram o aniversário da queda da Bastilha.
Como todos os seus colegas no mundo inteiro, todos os anos o cônsul da França em Apalachicola dava uma festa nesse dia. Mas, ao contrário dos outros anos, nenhum navio havia aportado ali trazendo um gênero de primeira necessidade para comemorar comme il faut a data nacional francesa – o gelo, indispensável para resfriar o champanhe. O pobre cônsul já se resignara a servir a bebida morna, quando quatro empregados do bom doutor Gorrie entraram no salão, cada um com uma bandeja de prata onde luzia ffi um bloco de gelo do tamanho de um tijolo. “A um gênio americano”, brindou o cônsul.
Gorie cabou obtendo a patente da maquma que até hoje obedece ao mesmo mecanismo de funcionamento – com a diferença essencial de que, com o advento da eletricidade, o sistema deixou de ser movido por uma máquina a vapor, substituída pelo motor elétrico. Mas, nos idos de 1850, o invento não chegou a impressionar os incrédulos banqueiros a quem o médico procurou em busca de dinheiro para construir uma fábrica. “Uma tonelada de gelo poderá ser feita em qualquer lugar da Terra por apenas 2 dólares”, dizia ele, em vão. Gorrie morreu desacreditado e pobre em 1855. Pouco antes, previra que seu sistema seria usado em navios e residências. A previsão começou a se cumprir por volta de 1880. Na época, mergulhada numa grave crise de abastecimento, a Inglaterra apelou à Austrália para que substituísse por carne o carregamento normal de sebo e lã de carneiro destinado a Londres.
Mas atravessar quase meio mundo com uma carga como essa era ainda algo inimaginável. Foi quando dois ingleses, Thomas Mort e James Harrison, instalaram na Austrália uma indústria para resolver o problema. Em 1879, Harrison comemorou prematuramente a partida do navio S.S. Norfolk, que levava 20 toneladas de carne resfriada com uma mistura de água e sal. O sistema, porém, não suportou a longa trajetória e a carne chegou deteriorada à Inglaterra. Só um ano depois, quando o processo de Gorrie foi utilizado, o S.S. Strathleven pôde aportar em Londres com a carga em boas condições. O povo matou o jejum de carne e até a rainha Vitória foi presenteada com uma perna de carneiro congelada.
A partir de então, o “gelo artificial”, como se dizia, passou a ser conhecido por toda a Europa. Na Alemanha, o cervejeiro Gabriel Seldmayr, dono da renomada Spaetenbrau de Munique, encomendou ao amigo Carl von Linde, talentoso engenheiro alemão, uma máquina refrigeradora que permitisse a fabricação da cerveja o ano inteiro e não só nos meses de inverno. Pois o processo adotado exigia semanas de fermentação a temperaturas próximas a zero. Von Linde aperfeiçoou a invenção de Gorrie e substituiu o vapor de água por amônia. No novo processo, quando o gás é comprimido, torna-se líquido, sendo então forçado a circular por uma condensador (a parte de fica atrás nas geladeiras modernas), onde perde o calor adquirido na compressão.
Em seguida, atravessa uma válvula de evaporação, como as que existem nos dispositivos spray, que diminui a pressão exercida sobre a amônia e faz com que ela passe novamente para o estado gasoso. Nesse momento, as moléculas de amônia em expansão precisam de mais calor para se movimentar num espaço maior. O calor é obtido do compartimento interno da geladeira, que assim acaba por resfriar-se. O gás chega então ao compressor e o processo recomeça. Aclamado por sua adaptação, Von Linde passou a interessar-se pela construção de refrigeradores domésticos. Em 1891, chegou a vender 12 mil aparelhos para cidadãos particulares.
Seu sistema ainda hoje é o mais utilizado, embora a amônia tenha sido substituída na década de 20 pelo composto clorofluorcarbono (CFC), que tem o mesmo rendimento, não é tóxico para o homem, mas descobriu-se há pouco tempo corrói a camada de ozônio que protege a Terra dos raios solares. Ainda nos anos 20, surgiram as famosas geladeiras a querosene. O combustível aquecia uma mistura de água com amônia. Essa se desprendia, sendo forçada, em estado gasoso, a passar por uma serpentina, num processo semelhante ao anterior. A máquina continua a ser usada onde não há eletricidade. Da evolução da geladeira, surgiram os freezers, que mantém o alimento congelado a uma temperatura de menos 18 graus centígrados. Para o engenheiro Walter Haddad, professor de Refrigeração da Faculdade de Engenharia Industrial de São Paulo, as máquinas de gelar do futuro utilizarão a tecnologia dos supercondutores que começa a engatinhar. “Essas geladeiras”, prevê Haddad, “usarão menos energia e serão muito mais duráveis.”
Fonte: Superinteressante
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