terça-feira, 13 de outubro de 2015

Garimpos em Diamantina abrigam histórias e esperança

Garimpos em Diamantina abrigam histórias e esperança


As águas que cortam as montanhas da Serra do Espinhaço já fizeram muitos olhos brilharem. Milhares e milhares de diamantes saíram de lá, construíram reinos, enriqueceram nações, tudo saindo dos rios, dos nossos garimpos.
O garimpeiro Belmiro Nascimento explica que o diamante não enriqueceu pessoas só na época da coroa e diz que conhece muita gente que ficou rica por causa da pedra preciosa.
Os descendentes de Belmiro chegaram à região há mais de 200 anos pra encontrar ouro e diamante. Ele cresceu no meio do garimpo, ouvindo muitas histórias.
Até hoje, pedras escondidas na época da mineração são achadas, segundo Belmiro. “Vários tesouros já foram encontrados ai no leito do rio. Os escravos ou mesmo garimpeiros da época eles escondiam essas pedras que eram encontradas dentro daquilo que a gente chama de paiol de pedra. E eles ficaram na beira dos rios, os anos foram passando, as vezes quando um garimpeiro contemporâneo não tem onde trabalhar, ele por uma questão de fazer alguma coisa, ele vai a um lugar desse e por sorte encontra essa pedra guardada lá. É um tesouro”, afirma o garimpeiro.
A natureza é generosa, mas para encontrar diamante é preciso olhar apurado e técnica. No período de seca, com as águas mais baixas, a garimpagem acontece quase sempre na beira do rio. Quando chove, o trabalho é feito nas chamadas canoas.
Parece mesmo um paradoxo. As ferramentas usadas para achar essa pedra que vale tanto são extremamente simples, rudimentares. Enxada, pá, bateia, peneira são companheiras inseparáveis de qualquer garimpeiro. Que precisa andar bem acompanhado também da sorte.
“Tem uma cultura do garimpo que fala que o diamante tem dono. Então, as vezes você vai passar por aquele diamante não vai ver. Eu venho depois de alguns dias e vou encontrar. é predestinação? talvez isso”, conta Belmiro.
Mas a técnica, o conhecimento e a experiência são fundamentais. “Muita gente fala que garimpo é sorte. É claro que a gente precisa dela, mas tem que tá aliado ao conhecimento. Alguns sinais, alguns caminhos que a natureza ensina pra gente. Se você não souber interpretar, você não encontra essa pedra”, complementa. O garimpeiro chama isto de satélite de diamante.
As dificuldades do garimpo foram um dos motivos que levaram a família de Belmiro a abrir a área também para receber turistas. No local, o trabalho é mostrado para os visitantes.

A CHAPADA DOS DIAMANTES Serra do Sincorá, Bahia

A CHAPADA DOS DIAMANTES

Serra do Sincorá, Bahia











A SERRA

    A serra do Sincorá é uma parte da Chapada Diamantina, situada na região central do Estado da Bahia, que constitui um sítio de grande beleza paisagística devido ao modelado de suas serras, que expõem vales profundos de encostas íngremes e amplas chapadas. Essas escarpas permitem o exame da sua geologia, onde tempos atrás foram explorados diamantes e carbonados.
     A serra do Sincorá está localizada na região central do Estado da Bahia, distante da cidade de Salvador, capital do estado, cerca de 400km (figura 1). Para chegar à serra do Sincorá a partir de Salvador, deve-se seguir em direção a Feira de Santana (rodovia BR-324), continuando então para sul em direção ao Rio de Janeiro pela rodovia BR-116. Cerca de 70km a sul de Feira de Santana, à margem do rio Paraguaçu, entra-se à direita pela rodovia BR-242, em direção a Brasília. Cerca de 220km adiante, chega-se à cidade de Lençóis: ai está a serra do Sincorá, que fica dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina. O acesso por via aérea é feito por linhas regulares através do Aeroporto Cel. Horácio de Matos, situado na vila de Tanquinho (figura 1).
Figura 1 - Mapa de localização da serra do Sincorá. Legenda: 1-Região da serra; 2-Rodovia pavimentada; 3-Estrada não pavimentada; 4-Rio; 5-Cidade ou vila; 6-Aeroporto.


DESCRIÇÃO DO SÍTIO

    A serra do Sincorá está localizada na borda centro-oriental da Chapada Diamantina, aproximadamente entre as vilas de Afrânio Peixoto (antiga Estiva)  a norte e de Sincorá Velho a sul (figura 1). Sua vertente ocidental é uma escarpa quase contínua, com cerca de 300m de altura e 80km de extensão; a escarpa oriental, que domina a planície do vale do Paraguaçu (400m), atinge rapidamente a altitude de 1200m, nas primeiras cristas da serra. Assim  descreve a serra, o biólogo Roy Funch, em seu livro Um guia para o visitante da Chapada Diamantina: o Circuito do Diamante: o Parque Nacional da Chapada Diamantina; Lençóis, Palmeiras, Mucugê, Andaraí, editado em Salvador pela Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia em 1997.

Montanhas  e cachoeiras


    A serra do Sincorá compreende um conjunto de diversas serras de menor extensão com as da Cravada, do Sobrado, do Lapão, do Veneno, do Roncador ou Garapa, do Esbarrancado, do Rio Preto, entre muitas outras. Essas serras possuem picos com até 1700m de altitude e são separadas por vales íngremes e profundos como canyons
    Uma feição que se destaca na serra do Sincorá, é o morro do Pai Inácio à margem da rodovia BR-242, a norte do vale do Cercado (figura 2).


Figura 2 - Vale do Cercado, a sul  do morro do Pai Inácio, na rodovia BR-242.



    Mais ainda a norte do morro do Pai Inácio, está o morro do Camelo ou Calumbi (figura 3), e a sul, o Morrão (figura 4), cujo acesso se faz através da estrada entre a cidade de Palmeiras e a vila de Caeté Açu (figura 1).


Figura 3 - Morro do Camelo ou Calumbi


Figura 4 - Morrão

 
 
    Entre o Morrão e a vila de Caeté Açu, é cruzada a ponte sobre o rio Riachinho, onde existe um antigo garimpo de diamantes (figura 5).
 

Figura 5 - Rio Riachinho


    O principal rio desta região, é o rio Paraguaçu. Após atravessar a serra do Sincorá desde a localidade de Comércio de Fora (figura 6), ele a deixa na localidade de Passagem de Andaraí, formando a cachoeira de Donana (figura 7). Daí, o rio prossegue em busca do oceano Atlântico, na baía de Todos os Santos.



Figura 6 – Escarpa da serra do Sincorá em Comércio de Fora, a oeste da cidade de Mucugê.





Figura 7 - Cachoeira de Donana


    As rochas que afloram na serra do Sincorá, consistem essencialmente em arenitos e conglomerados. Orville A . Derby (1851-1915), geólogo norteamericano, que no início do século XX trabalhou na região, disse delas o seguinte: “ Este conglomerado representa um depósito de cascalho formado em uma época geológica remota pelo mesmo modo que se formaram, e ainda hoje se formam, os cascalhos (conglomerados incoerentes e ainda não transformados em pedra) em que os mineiros procuram os diamantes.





Figura 8 – Arenitos, isto é, rochas formadas por areias consolidadas na vila de Igatu.
 
 


Figura 9 – Conglomerados(antigos cascalhos)  intercalados com arenitos no vale do rio Combucas, a norte da cidade de Mucugê.



Diamantes

No ano de 1844, foram descobertos diamantes na serra do Sincorá, na região de Mucugê (figuras 1 e 12). A partir dessa região toda a serra foi explorada, garimpando-se diamantes desde o rio Sincorá a sul (figuras 1 e 7), até a região de Afrânio Peixoto a norte (figura 1).






Figura 10 – Como os diamantes são transportados do interior da Terra (à esquerda); Como as rochas são erodidas, liberando os diamantes, que então são garimpados nos rios (à direita).



    Esses diamantes, que deram fama e riqueza à região formaram-se em algum lugar do interior da Terra onde a crosta terrestre era bastante espessa, e foram transportados por rochas chamadas kimberlitos, que forçaram o seu caminho para a superfície (figura 10). Assim, os diamantes se comportariam como meros passageiros em uma parada de ônibus (lado esquerdo). Quando os kimberlitos que os continham alcançaram a superfície, eles sofreram processos de erosão, liberando os diamantes, que foram encontrados em areias e cascalhos de rios (lado direito). Dando uma idéia da sua raridade, Jiri (George) Strnad, geólogo canadense especialista em diamantes, estimou que em um kimberlito diamantífero exposto em uma escarpa medindo 10 x 2m, estaria contido apenas um diamante minúsculo, com um milímetro de diâmetro !

    

    Na serra do Sincorá, a fonte dos diamantes ainda é amplamente discutida. Sabe-se apenas que eles vieram do leste, mas o local exato ainda não foi definido. Os diamantes eram garimpados no cascalho produzido pela decomposição de conglomerados (figura 11), aflorantes no vale do rio Combucas (figura 12).



Figura 11 - Detalhe do conglomerado do vale do rio Combucas (figura 12), depositado por antigos rios.





Figura 12 - Rio Combucas, a norte da cidade de Mucugê, próximo à sua confluência com o rio Mucugê, local das primeiras descobertas de diamantes na serra do Sincorá.


    A cachoeira do Serrano na cidade de Lençóis (figura 13), também foi intensamente explorada. Aí, os conglomerados são formados por fragmentos de diversas rochas (figura 14). Eles foram depositados no sopé de escarpas.

Figura 13 - Cachoeira do Serrano, na cidade de Lençóis.







Figura 14 - Conglomerado da cachoeira do Serrano. Acredita-se que ele tenha sido depositado no sopé de escarpas, o que se chama de leques aluviais.


    A garimpagem também foi intensa nas regiões de Andaraí e Igatu. A figura 15 mostra os conglomerados na estrada entre essas duas localidades. O rejeito dos antigos garimpos ainda pode ser visto ao longo desta estrada, como amontoados de blocos de tamanhos e formas diversas.

Figura 15 - Conglomerados ao longo da estrada Andaraí - Igatu

    Após uma fase áurea de aproximadamente 25 anos, a garimpagem de diamantes entrou em declínio a partir de 1871. Já no século XX, houve diversas tentativas de mecanizar os garimpos, que na década de 80 foram instalados nos leitos dos rios dentro e fora do Parque Nacional. Estes garimpos, graças a uma ação conjunta de diversas autoridades ligadas à mineração e ao meio ambiente, foram fechados definitivamente em março de 1996.
     Mesmo após 150 anos de exploração dos aluviões diamantíferos, ainda existe garimpagem manual, embora em ritmo mais lento, devido à exaustão e decadência das lavras. Devido ao número ilimitado de situações geológicas e topográficas da serra, existem os seguintes tipos de garimpo manual, mencionados pelo biólogo Roy Funch, cada qual com suas peculiaridades:cascalhão, barranco, brejo, grupiara, emburrado, curriolo, engrunada, gruta, escafandro, serviço a seco, lavagem e faísca (figura 16).



Figura 16 - Representação esquemática dos tipos de garimpo manual (descrições no glossário)
    Esses fatos confirmam a afirmação de Orville A . Derby : "Quanto à riqueza mineral, a única até hoje aproveitada é a de diamantes e carbonados, e a sua constituição geológica [da serra do Sincorá] pouca esperança oferece da existência de outra...".


MEDIDAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL

    O trecho da serra do Sincorá  situado entre Cascavel e Mucugê e a rodovia BR-242, está incluído no Parque Nacional da Chapada Diamantina. A norte da rodovia BR-242, os morros do Pai Inácio e do Camelo estão dentro da APA (Área de Proteção Ambiental) de Iraquara-Marimbus.
    De acordo com informações do biólogo Roy Funch, o rio Mucugê, em cujo leito foram descobertos os primeiros diamantes, está razoavelmente bem protegido: o seu alto curso fica dentro do Parque Nacional e o baixo curso corre dentro da área do Parque Municipal de Mucugê (uma reserva com cerca de 270 hectares). Este parque ainda inclui o baixo curso do rio Combucas e vários dos seus afluentes, limitando-se com o Parque Nacional.
    Além dessas medidas, existe no município de Mucugê, o Projeto Sempre Viva. Este projeto tem os seguintes objetivos: 1) implantação de uma unidade de conservação estruturada para o ecoturismo, no Parque Municipal de Mucugê; 2) desenvolvimento de tecnologia de reprodução de plantas nativas; 3) implantação de um ; e, 4) execução de um programa de educação ambiental. A sua sede, construída no estilo dos antigos abrigos de garimpeiros, é mostrada na figura 17.




Figura 17 - Parte das instalações do Projeto Sempre Viva.



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A “SQUATTERIZAÇÃO” da Mineração no Tapajós - Problema ou solução?

A “SQUATTERIZAÇÃO” da Mineração no Tapajós - Problema ou solução?



“Squatterização”é uma palavra de origem inglesa que significa ocupante ilegal. Quando ocorreu a primeira corrida ao ouro da Califórnia, São Francisco, hoje capital do Estado mais rico dos U.S.A., tudo começou com um acampamento de garimpeiros atraídos pelas notícias de ouro em uma fazenda local. O fazendeiro suíço que havia descoberto e desbravado as terras no início do século passado teve que ir embora e até hoje os seus descendentes procuram reaver as terras, hoje ocupadas pela linda cidade de São Francisco.

          Neste caso como muitos outros, a sociedade americana, tipicamente baseada no direito, deu razão de causa aos “Squatters”, admitindo o fato ocorrido. O que ocorre no Brasil e em particular na Amazônia não é outra coisa.
        Empresas se apossam de dezenas, centenas e até milhões de hectares de direitos minerais baseados num Código de mineração imperfeito e contornável através de artifícios legais. Na maior parte dos casos não fazem nada porque se requerer é fácil, pesquisar é bem menos e os pequenos mineradores, à procura de locais para trabalhar e instalar os seus equipamentos, depois de tentar requerer inutilmente as suas áreas de atuação, já legalmente ocupadas, decidem arriscar a ocupação ilegal esperando que a empresa que nunca apareceu não saberá de nada ou mesmo sabendo não irá se queixar.
          Entram de mansinho, declarando a quem quiser escutar que seu objetivo é extrair um pouco de ouro para pagar os custos e sair do blefe. E que se a empresa chegar solicitando sua saída esta se processará sem problemas. Não tentam enganar ninguém: no início é sempre difícil, os custos são altos e os pequenos mineradores estão com dúvidas se o investimento é realmente rentável. Constitui a primeira fase da “Squatterização”, a instalação, quando o minerador começa a atrair os amigos e os familiares em função de seu sucesso inicial. Em seguida, estamos na segunda fase da “Squatterização” a ocupação, quando o minerador procura negociar com a empresa titular se ela se manifestar, tentando ganhar tempo enquanto rapidamente os companheiros vão aumentando a ocupação até que o evento se transforme em corrida, onde os ocupantes devem lutar para resguardar os seus direitos de pioneiros.
           Tem lugar a terceira fase: A corrida, quando resguardado pela massa invasora os primeiros ocupantes passam a sentir-se mais fortes em relação à empresa, não aceitando discutir com ela e procurando lutar contra os mais fortes dos novos chegados. A empresa então vai procurar os seus direitos nos órgãos especializados: Justiça Comum, DNPM, Ministério público entre outros, recebendo muitas palavras de conforto e apoio, raramente havendo ações práticas. Cada órgão costuma atribuir responsabilidade ao outro.
          A área já está “Squatterizada” e como a autoridade não pode admitir coisa ilegal o Governo procura legalizar o “Squatt” através de medidas como: fiscalização da compra de minério, podendo inclusive cassar o direito da empresa no que se refere a Alvarás de Pesquisa, o “Squatt” se desenvolve, os pequenos mineradores mais importantes tentam se organizar, mas a classe é particularmente arredia a qualquer estrutura de organização. Após o término do ouro fácil o garimpo tende a se esvaziar; os garimpeiros irão seguir outros rumos e fofocas e suatts. Desdobra-se a quarta fase, a do abandono, na qual os buracos são deixados para traz permanecendo apenas o mito de riqueza fácil. A empresa, a não ser em casos raros, nem se aproveitará da liberação da área. O ouro superficial que já se foi e os investimentos para desenvolver uma mineração subterrânea são elevados demais, talvez com os ganhos do ouro superficial a empresa teria prosseguido com a lavra subterrânea. De qualquer maneira o Brasil ganhou algumas centenas de quilogramas de ouro embora tenha perdido uma jazida de dezenas de toneladas.
          Temos de achar soluções rapidamente para um aproveitamento mineral adequado em função das características intrínsecas das pequenas jazidas correspondentes à maioria das existentes na Amazônia e ao senso de pioneirismo que move a jovem sociedade mineral da região, pioneirismo avesso aos regulamentos burocráticos e agora incrementados por um número de pequenos empresários do sul do País que têm encontrado no ouro uma alternativa para a crise econômica que assola o País. “Squatt” ou pequena mineração são alternativas válidas? é a pergunta que se impõe, necessitando-se definir as regras do jogo ou pelo menos chegar a uma solução intermediária clara. As soluções são obviamente políticas; já falamos dos “Squatt” minerais e vale frisar que também se formam “Squatt” na área fundiária com ocupações de terrenos ociosos para construções, na área habitacional com ocupações de casas abandonadas em conjuntos habitacionáveis, na área comercial com comércios ilícitos, totalmente sonegadores. Progressivamente está se criando uma sociedade paralela, ou alternativa, como é chamada em Berlim ou Amsterdam, uma sociedade que passa a recusar as regras da outra sociedade que se sente forte, e que no caso da Amazônia Brasileira conta para se desenvolver com um rico fermento social, um extenso espaço físico e o substancial apoio de muitos políticos locais e nacionais. Devemos procurar soluções para buscar as causas, analisar os efeitos perversos de medidas políticas ou administrativas precariamente estudadas e aplicadas de forma irrealista criando problemas de ordem social, econômica e política.
          Se de um lado o pioneirismo tem valor incontestável para justificar processos de “Squatterização” em áreas ainda não assumidas, de outro lado uma lei forte e aplicada justamente, deve garantir os direitos legalmente adquiridos à luz da Constituição do País, evitando-se uma escalada de ações ilegais que massacrem o direito da lei em detrimento do exercício da força o que caracterizou no passado as sociedades primitivas.

Afinal, o que você acha e onde se encaixa?

Ouro no barraco

Ouro no barraco

Na balsa, peão fez uma festiva algazarra com a chegada do café. “Caranguejo” me saudou em primeiro lugar: “Ei, ‘Lampião’! Nós estamos bamburrados e as putas não sabem!”. “Chico Índio”, por sua vez, sequer esperou a voadeira encostar para me exibir a última cuiada, feita na terra rica, por baixo da sarrapilha. A tocha amarelo-vivo brilhando úmida no fundo da cuia despertou o meu contentamento, mas não excitou a minha ambição. Já estou acostumado com esses ouros comerciais. Por via das dúvidas, em respeito à alegria da peonada, descarreguei o meu trinta-e-oito para o alto, exibindo de propósito a minha rapidez no gatilho.
Depois da rajada e dos gritos de guerra de sempre, calculei de imediato que aquela puxada renderia, no mínimo, duzentos gramas, ouro suficiente para fazer uma avionada de óleo e outra de rancho. A rotina de um balseiro não permite devaneios. O rigor que a extração do ouro exige atenua com o tempo o apelo mágico do metal. O poder sedutor do ouro é parecido com a atração provocada por uma linda mulher. Seus encantos se desfazem lentamente a cada sessão de amor. “Locutor”, o terceiro mergulhador, me saudou com um martelo na mão, em pleno trabalho de despesca da caixa debaixo.
Quando o “Barbudo” estava sadio, mandei montar a cobra-fumando do outro lado da pequena ilha onde estávamos acampados. No lugar, um remanso calmo e quase escondido, existia uma praia de verão escurecida pelo esmeril de um curimã antigo. Lá estou lavando minha terra rica há mais de dois meses. O novo curimã já engordou, fez uma praia nova e está quase no ponto de uma repassagem. Vando, o dono de uma croíra quatro-polegadas, me pediu outro dia o direito de repassar minha terra. Eu lhe disse que iria esperar a estiagem se firmar para liberar o curimã para os requeiros. Vando não gostou da minha decisão, fez cara feia e me disse: “Porra, ‘Lampião’, os curimãs dos garimpos são públicos. Eu estou lhe pedindo por uma questão de educação”. Falando desse modo, ele insinuou que poderia apoitar no meu porto quando quisesse. Eu me zanguei com a mariscagem do Vando e respondi, em cima da bucha: “Esta ilha, no momento, está sob meu domínio. O porto fui eu quem fiz, a cobra é de minha propriedade e o curimã eu libero quando eu quiser, para quem eu quiser”. Acho que minha resposta foi bem entendida. Com essa estrovada, Vando ficou velhaco e mudou o seu barraco para outro canto do rio.
Esse apelido, “Lampião”, que o “Tião Fera” inventou há alguns anos, parece que me protege. Qualquer peão sabe a história do verdadeiro Lampião. No sertão da Bahia, onde nasci, a fama do Virgolino é tão grande que ninguém ousa apelidar alguém com esse nome. No garimpo, onde tudo é possível, me batizaram desse modo e não há nada que eu possa fazer para apagar esse apelido. Não tenho apelo. Vou morrer um “Lampião”.
Minha cobra-fumando já lavou muito ouro. Eu a carrego desde o rio Crepori onde, um dia, na fofoca do “Jenipapo”, despesquei com quase quilo e meio do metal. Essa lavagem, que exigiu três empanamentos, não deixou soltar um fagulho para os requeiros. A cobra é mansa de boas despescagens e os peões não se cansam de falar bem dela. A limpeza final do ouro é o momento mais delicado do garimpo. Hoje, diante desta considerável despescagem, decidi assumir a limpeza até o fim. Por uma questão de prudência e seguindo à risca os zelos que o metal exige, dei um demorado banho de fogo nas cuias e nas bateias, a fim de eliminar qualquer traço de gordura. Quando atracamos a voadeira para lavar a terra no porto do curimã, “Caranguejo” me disse que, depois da queimada, desejava ter um particular comigo. Perguntei qual era o assunto, pensando em algum problema ligado à balsa e ele me respondeu: “Eu quero apenas uns conselhos do senhor sobre uma questão de mulher”. Notei que “Caranguejo” estava preocupado, embora participasse da alegria coletiva em torno da boa despescada. Percebi também que ele me chamou de “senhor”, tratamento que peão maranhense só usa em situações muito sérias. Acho que o “Caranguejo” está envacorado por uma mulher do cabaré do “Bigode”. Mas, no momento, a minha preocupação é a empanação da cobra-fumando.
Naturalmente, e sem que eu mandasse, cada peão assumiu um posto na lavagem da terra rica. “Locutor” escolheu o desembarque do material, “Chico Índio” quis bater água e “Caranguejo” ficou na aparação da bateia. Eu, o empanador do dia, fiquei no ralo. A terra rica, que não era muito, foi lavada em pouco mais de meia hora. O trabalho maior é a despescagem. Nesse caso, sabendo de antemão que os panos estão carregados de ouro, é preciso sacudi-los com muito cuidado.
Eu disse aos meus peões que a lavagem na cobra-fumando é a missa sagrada do garimpo. Eles sorriram. “Caranguejo” interveio, comentando que estou sempre mexendo com palavras difíceis. Mas, é verdade o que eu disse. Os cuidadosos e medidos movimentos da despesca e a limpeza da terra rica são sempre acompanhados de um compenetrado clima de respeito. Quando o ouro fica visível em meio ao esmeril e começa a escorrer pelos cantos da cobra, o garimpeiro é tomado por um sentimento de embevecimento superior. Nesse momento ninguém fala. No meu caso, não tenho vergonha de dizer que fico emocionado. Na seqüência desse cerimonial, gosto de encaminhar o ouro para o balde com suaves golpes de água. Assim, o metal não bóia, desce lentamente no rumo do rabo da cobra e não perco um só fagulho do metal. Quando estamos bem mansos nesse trabalho é possível limpar o ouro sobre a cobra e evitar o azougamento. Os garimpeiros manuais sabem fazer isso muito bem.

No fim da nossa missa, quando o converseiro foi retomado com animação, lembro que o “Locutor” apontou o ouro e exclamou: “Isto aqui não é bosta-de-macaco, não, peão!” “Caranguejo”, entre outros comentários, repetiu uma frase do pessoal do baixão, sempre dita em cima de bamburro ou ourinho de vantagem: “Se algum dia já fui blefado, hoje não me lembro!”. “Chico Índio” não deixou por menos e comentou, sorridente: “Ei, ‘Lampião’, num ouro desse eu me aconsôo e fico velhinho!”. Encerrei a despesca, gritando sem inspiração: “Eta, porra! Caralho!”.

As leis do garimpo

As leis do garimpo

É público e notório que a sociedade do garimpo não segue as leis convencionais seja a da cidade ou do campo; tem a sua própria lei que a despeito de suas qualidades e problemas está regendo a vida de centenas de milhares de homens e mulheres da Amazônia.
          Lei, ou melhor, código foi criado pela prática, pela necessidade de sobrevivência em condições adversas dos homens que vivem o fenômeno do ouro brasileiro. Nasceu este código ético sem ser imposto por nenhuma autoridade, ou seja, naturalmente. Só é comparada a velha lei da costa oeste da América do Norte tão decantada pelos inúmeros filmes e livros, retratando essa época de pioneirismo.

          A lei não é escrita, divulga-se oralmente. As cláusulas principais desta lei ou código de vida são:
1.     – Direito de propriedade:
- É dono o cidadão que descobriu, comprou ou construiu a seu custo e está assumindo a propriedade em questão. Comprar e não assumir não implica em propriedade; a propriedade da descoberta vale na medida em que o descobridor tem condições de assumir o empreendimento implícito;
- não é necessário usar guarda-costas, segurança, sistema de alarme no garimpo todo mundo porta cordões de ouro e pepitas bem á vista, pois por tradição não há ladrões. O preço deste crime é o justiçamento primário;
- a demarcação do território é valida, sendo respeitada, mas a condição de que a dimensão da área assinalada corresponde à capacidade de trabalho do pretendente. Se esta for muito maior, a pressão dos vizinhos será forte demais e o demarcador deverá ceder parcelas ou sua área será redimensionada.
- o fenômeno de relacionamentos, amizade, boa vizinhança é a melhor garantia do direito de propriedade. O garimpeiro – descobridor procura resguardar seu quinhão, associando com amigos dividindo o bolo, visando consolidar forças para garantir suas áreas de atuação.
Tenta se com a penetração da Lei brasileira nos garimpos, utilizar outros meios para delimitar propriedades, como requerimentos de PLG e Terra Legal e abertura de campos de capim, violando outras leis, as de meio ambiente.
Quando a lona de um barraco é desmontada  nos garimpos de fofoca, o barraco não é mais do seu construtor, mas de qualquer um que o cobrir de novo.
Curimã de terra firme é do garimpeiro que o produziu, o curimã de balsa ou draga é de todos, mas só se a balsa ou draga já tiver saído do local.

2.     – Da relação entre as pessoas:
- O homem que necessitar da companhia de uma mulher, vai à currutela e lá estabelece as bases de seu relacionamento sendo o acordo fielmente mantido pelas partes envolvidas.
- O homem pode levar uma mulher para o seu barraco no “baixão”, transformando-a assim em sua companheira ocasional por alguns dias ou semanas e deverá recompensá-la no final da estadia com uma parcela substancial dos seus ganhos em ouro, mas devera negociar com o dono do cabaré.
- A mulher que dançar e beber com um homem na boate do garimpo, não poderá trocar de parceiro, salvo se o primeiro desistir dela, caso contrário a pena é de uma multa a ser paga ao primeiro homem; Essa regra criada para evitar tiroteios é controlada pelo cabereizeiro que indemnizara o primeiro parceiro da mulher com bebidas e outra mulher,  tudo descontado na conta da mulher infiel.
Mulher é propriedade do dono do cabaré, já que ele pagou para ela entrar de avião e mais outras despesas; ela poderá se liberar se pagar o seu próprio passo, senão ela será vendida a quem pagar o peso em ouro exigido por ele; o dono do cabaré determina o valor em função dos dotes da mulher, somados com as despesas de viagem e eventual consumo de medicamentos. Muitos donos de cabarés são donas, mulheres. O fato de ser vendida por um bom ouro é uma honra para a mulher,
Mulher pode sair da boate se pagar a multa por dia ou noite; essa multa foi instituída para evitar o desvio do uso da mulher.
Se a mulher conseguir com a saída dela, trouxer um cliente bamburrado até a boate, a multa será perdoada;
- Os jogos a dinheiro implicam em sérios compromissos. O não pagamento de uma divida de jogo leva à morte;
- Não se mata um homem pelas costas, salvo se o mesmo é um assassino e está sendo justiçado.
Algumas regras, em relação à mulher caíram em desuso nos locais de fácil acesso;

      3.  – Do dia a dia:
         - Avisar quando chega ao barraco: bater palmas ou gritar um Olá bem alto, é
                 suficiente;
-O Reco do fundo da canoa é da cozinheira;
- As regras de hospitalidade do resto do Brasil são mantidas; sempre há café e feijão para os visitantes
- A cozinheira do barraco é objeto de respeito, salvo se ela não se der respeito.

4– Dos negócios:
- Tudo no garimpo se resume a água, espaço e ouro; tais elementos regem a atividade garimpeira invariavelmente;
- Não existe recibo em garimpo. O acerto oral com ou sem testemunhas tem força de lei;
- Financiamentos realizados à semelhança dos bancos, não utilizam juros; pagamentos são feitos em ouro e o recebimento também. O interesse do financista consiste na necessidade em conseguir ouro para o seu negócio.
- O sistema financeiro posto em prática no garimpo não utiliza prazos; o pagamento é feito quando o tomador do empréstimo conseguiu extrair o seu ouro;
- Quando um tomador de empréstimo não consegue devolver o capital devido, graças a uma adversidade, pode receber um novo empréstimo. Se persistir a adversidade, seus bens tais como pista, barrancos, direitos, entre outros, serão entregues ao financiador.
As divisões dos ganhos (percentagens de produção) segue pontualmente o acertado
          A pena de desobediência a um acordo oral é a mais terrível do garimpo, resulta no desprezo geral que leva invariavelmente o acusado à falência lenta que é pior do que a morte.

5. – Os velórios:

Os velórios são importantes, pois são cerimônias que mantem o homem do garimpo afastado da condição mais primitiva e também tem regras:
O morto tem dono, e o dono é o patrão dele que será obrigado a pagar as despesas do velório que são basicamente uma grande quantidade de cachaça e velas além de pagar os trabalhadores para o transporte e o enterro.
Com a pressão das autoridades policiais, enterros passaram a ser feito nas cidades circundando o garimpo, o que obrigou os donos dos mortos a pagar por frete de avião.
  
6. – Dos justiçamentos:

          O tribunal só tem um juiz, o dono do serviço, e geralmente o carrasco é o próprio juiz, já que mandar fazer é considerado ato de covardia.
A sentença é pública, pois mantem a coesão do garimpo e a noção de cumplicidade ou co-autoria.
          Diversas cláusulas deste código natural estão em contradição flagrante com a lei oficial da nação e aparentemente necessita para se manter de um isolamento geográfico.
           Na realidade, não existe nenhuma “república livre” na Amazônia, em toda essa vasta região, segue-se mais ou menos a lei do garimpo com o beneplácito das autoridades governamentais que se integraram emocionalmente à vida do ouro.
        Existe desde a penetração das estradas, um abrandamento deste código e uma mistura com a Lei brasileira, cada qual usando a que melhor lhe convier.
        A demora conhecida da justiça oficial é um entrave para a migração completa de uma lei para a outra.

        Outra dificuldade é o total desconhecimento por parte dos juízes locais da lei mineraria (Código de mineração) que é a lei que mais penetrou nos garimpos.