sábado, 6 de fevereiro de 2016

A Pororoca do rio Araguari.



  A Pororoca do rio Araguari.


O explorador francês Jacques Cousteau não foi o primeiro a registrar a Pororoca, mas sem dúvida foi quem a tornou mundialmente famosa. Suas imagens aéreas, feitas de um helicóptero, mostraram a grandeza e magnitude desse fenômeno natural.


Vinte e cinco anos depois, nossa missão era captar essa mesma onda, esse mesmo fenômeno. E assim como poucas outras coisas na Amazônia, quase nada mudou. A dificuldade de chegar ao local continua a mesma. É claro que há hoje em dia muito mais conhecimento. Qualquer rápida busca na Internet permite encontrar uma infinidade de informações.

Foi buscando essas informações, quando ainda preparava a logística para essa expedição, que conheci o rio Araguari. Um rio importante da bacia amazônica que, ao contrário de quase todos os outros, tem sua foz no Oceano Atlântico e não no rio Amazonas. Ele nasce nas montanhas que fazem divisa com a Guiana Francesa e cruza boa parte do estado do Amapá de leste para oeste. É na “boca” do rio com o mar que nasce a Pororoca. Esse fenômeno também acontece em outros rios do Pará e do Maranhão.

Escolhemos a lua cheia do mês de abril para encontrar a onda. Na verdade, a Pororoca acontece durante as luas novas e cheias. No entanto, nos meses de março, abril e maio o fenômeno é mais intenso graças à proximidade com o equinócio, que é quando o sol está alinhado ao Equador. É também quando a variação entre as marés baixa e cheia está maior. A Pororoca é um fenômeno que definitivamente depende da maré.

O ponto de partida foi Macapá, capital do Amapá. A cidade tem aproximadamente 300 mil habitantes, é agradável e não tem muitos edifícios. Da orla da cidade se avista os transatlânticos entrando e saindo do Brasil. É também um bom lugar para se observar a variação da maré. Na cheia, a água salgada encosta no muro. Na baixa, formam-se praias de lama de centenas de metros de extensão.

Nossa equipe era formada por seis pessoas, entre o câmera, engenheiro de som, assistente, e fotógrafa. Como chegamos um dia antes do previsto, aproveitei para elaborar a logística da filmagem, levando em consideração uma tomada tanto do ar (de helicóptero) como da água (de voadeira). Quatro dos integrantes da equipe deixaram Macapá por volta das 18h e foram de carro até uma cidade chamada Cutias do Araguari, já no rio Araguari. De lá, desceriam o rio de barco até uma fazenda próxima do local onde acontece a Pororoca. Eles seriam guiados por seu Dinaldo, morador e proprietário da fazenda que nos serviu de base, além de sua família. O câmera e eu combinamos de os encontrar no dia seguinte, uma vez que saíriamos de helicóptero de Macapá.

A forte chuva que me acordou às 5h da manhã era sinal de que nosso vôo estaria comprometido. Mesmo assim, fomos ao aeroporto, onde encontramos o comandante do helicóptero. Decolamos, mas dez minutos depois retornamos por causa do mau tempo.

O quebra-cabeça da logística recomeçou. Às 9h da manhã, recebemos a chamada por um telefone via satélite informando que os integrantes que saíram no dia anterior não haviam chegado à fazenda. Ou seja, já tinham perdido a Pororoca do dia, que estava prevista para acontecer por volta das 8h da manhã. Só nos restava um dia para filmá-la e seria muito arriscado contar novamente com o helicóptero. Ter a equipe pronta no local, mas a câmera sentada num quarto de hotel em Macapá seria uma tragédia.

A decisão foi alugar um pequeno avião, um Cesnna 206, e aproveitar o bom tempo da hora do almoço para chegar até o rio Araguari. Da pista onde aterrizamos até a fazenda do Sr. Dinaldo eram outras quatro horas.

Aproveitamos o avião para sobrevoar a foz do rio e estudar as condições. Percorremos toda a extensão do caminho que a onda percorre. É praticamente uma linha reta. A onda acaba na primeira grande curva do rio. Uns 30 quilômetros depois.

Num rasante sobre a fazenda do Sr. Dinaldo, jogamos uma garrafa de 600ml vazia para nossa equipe. Dentro uma mensagem, que dizia que os encontraríamos lá, chegando numa voadeira. Essa estratégia de comunicação eu havia aprendido no livro “Surfando na selva”, de Serginho Laus. Funcionou super bem.

Como erramos a entrada do Igarapé Novo, que dá acesso à fazenda, demoramos o dobro do tempo previsto e já era de noite quando chegamos.

Essa região do rio Araguari lembra muito o Pantanal do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. Imensas áreas alagadas e uma enormidade de espécies de pássaros. A diferença é a influência do oceano próximo e os trechos de floresta amazônica. O Amapá é o estado que tem a cobertura florestal mais bem preservada do Brasil. São 17 unidades de conservação que ocupam cercar de 70% do território do estado.

No dia seguinte, por volta das 6:15h da manhã, consegui falar com o aeroporto em Macapá e o helicóptero já havia decolado. Três integrantes de nossa equipe saíram imediatamente de voadeira para a foz do Araguari e assim encontrar a Pororoca ainda em seu começo.

O helicóptero apareceu no momento exato. Foi emocionante quando o barulho quebrou o silêncio da manhã ensolarada.

Era pilotado pelo comandante Coimbra. Chico, o mecânico, o acompanhava trazendo 100 litros de querosene para o vôo de volta a Macapá. Já em solo, retiramos as duas portas da aeronave e instalamos os equipamentos de vídeo e de foto. Cada um apontado para um lado. Mark, nosso cameraman, sentado do lado direito, o mesmo do piloto. Carrie, nossa fotógrafa, do lado esquerdo. Fui na posição do co-piloto com o objetivo de traduzir as instruções que Mark me passava pelo rádio interno do helicóptero.

Amarramos os cintos e decolamos em direção a foz. O sol nascia no horizonte e atrapalhava nossa visão. Depois de 5 minutos já avistamos uma enorme linha que ia de margem à margem no rio Araguari. Era a Pororoca que há poucos minutos havia começado. A maré começava a subir até que num dado momento rompia o equilíbrio e as águas do mar avançavam rio acima formando a onda.

Mantivemos uma altura de 1000 pés, perto de 300 metros, para registrar a onda em toda a sua extensão. O sol batia bem na cara e atrapalhava bastante. Logo em seguida, avistamos a voadeira com o restante da nossa equipe literalmente fugindo da enorme massa d´água. Em seu começo a onda pode atingir uns três metros de altura dependendo da profundidade e formato da bancada de areia do leito do rio.

Uma vez registrado lá de cima, descemos quase ao nível do rio e acompanhamos a onda por uns 40 minutos. Algumas vezes tão próximos que a água movimentada pela força das hélices respingava em todos nós. Voávamos como “cowboys”. O barulho era enorme. A adrenalina a milhão. Nosso piloto habilmente dominava o helicóptero. Não economizava rasantes e manobras.

A experiência foi deslumbrante. A onda variava entre uma massa de espuma até uma parede lisinha de dois metros de face. Suficiente para “fazer a cabeça” de qualquer surfista que por lá se aventurar.

Já com pouco querosene voltamos para a fazenda deixando a onda para trás. Ela ainda percorreria outros 15 quilômetros.

De Manaus a Tefé.


  De Manaus a Tefé.


Passar pelo encontro das águas dos rios Negro e Solimões tem nome próprio e é destino turístico dos que visitam Manaus pela primeira vez. O “Encontro das Águas” é impressionante e belo. Quem sai de Manaus de barco com destino a Tefé tem que passar pelo encontro para entrar no rio Solimões. A água dos dois rios é completamente diferente. A do rio Negro é acida e escura, enquanto a do Solimões é rica em nutrientes e é marrom, da cor de um “todyinho”.

Nosso destino era a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. No dia da partida, acordei cedo. Era a primeira vez que iria navegar pelas águas marrons do rio Solimões. O plano era zarpar do píer do hotel Tropical em Manaus às sete da manhã. No entanto, durante o abastecimento da noite anterior, a tripulação notou um problema na sala de motor do barco, e quando solucionado já passava das três da tarde.

Ariaú-Açu é o nome do barco que usamos para essa e todas as outras expedições que realizamos. Medindo mais de 100 pés, o barco tem quatro conveses sendo que no último há um heliporto. É veloz e tem um calado de apenas 1,80 metros, ideal para os rios da Amazônia.

O barco é de propriedade do Dr. Francisco Ritta Bernardino, mais conhecido por Dr. Ritta. Inspirado pelo lendário explorador Jacques Cousteau na década de 80, ele construiu um “lugar onde turistas pudessem apreciar a beleza, grandiosidade e importância da Amazônia”. Esse lugar é o Ariau Amazon Towers, maior e mais visitado hotel de selva da Amazônia. Por ter sido um dos primeiros e estar localizado próximo à Manaus o negócio deu tão certo que hoje Dr. Ritta é provavelmente o mais bem-sucedido empreendedor da Amazônia brasileira.

O dia já ia terminando quando finalmente cruzamos o “Encontro das águas”. José tinha as mãos firmes agarradas ao timão e os olhos fixos no horizonte. Ele era o nosso “prático”, ou seja, a pessoa que conhece bem o rio e que auxilia o capitão na condução da embarcação. Não há navegação de grande porte na Amazônia sem a presença de um prático. Principalmente na época da seca quando as águas dos rios estão muito baixas e qualquer descuido significa topar num banco de areia ou pedregal.

A idéia era navegar dia e noite para poupar tempo, mas nessa primeira noite José preferiu atracar em frente à cidade de Manacapuru. Num tom sóbrio esse homem de 1,90m de altura, impecavelmente vestido de branco como na marinha, me disse:

- Aqui tem muita pedra e eu só me garanto de dia.

Mais alguns dias e percebemos que José não tinha lá tanta experiência e era bem covardão. Em toda vila ele queria dar uma paradinha alegando que queria encontrar algum médico ou remédio. Maciel, o nosso capitão só cedeu nessa primeira noite, depois não paramos mais, navegando 24 horas por dia.

No começo é tudo novidade e você não quer desgrudar os olhos da margem. Depois fica monótono e com o calor fica tudo mais monótono e a preguiça é dominante. A vontade é balançar o dia todo na rede.

No terceiro dia, passamos por Coari. Ali bem próximo, a Petrobrás administra a província petrolífera de Urucu e tem atividades de extração de petróleo e gás natural. Esse último ainda a ser extraído. No dia 2 de junho de 2006, o presidente Luís Inácio Lula da Silva inaugurou oficialmente o início das obras de um gasoduto que levará essa forma de energia até Manaus, capital do Amazonas. Jornais regionais anunciaram o ato como o começo da era do gás natural . Em ato simbólico o presidente acompanhou a solda entre dois tubos para conduzir o gás, que tem em média 19 polegadas de diâmetro. As obras, como todas desse porte na floresta, contou com trabalhos de batalhões de engenharia do Exército. Nesse dia da “inauguração”, 279 dos 670 km de gasoduto já estavam finalizados, segundo a Petrobrás.

Na noite do terceiro dia, chegamos ao nosso destino. Foram sessenta horas de navegação.

Rodovia das Contradições.

 Rodovia das Contradições.


A BR-163 é a estrada que liga Cuiabá, capital do Mato Grosso, a Santarém, segunda maior cidade do estado Pará e cotada como futura capital do ainda inexistente estado do Tapajós. Não é a toa que o apelido da estrada é Cuiabá-Santarém. Santarém está na margem direita do rio Tapajós, estrategicamente localizada em sua confluência com o rio Amazonas. No total, a estrada tem aproximadamente 1800 km.

Percorri duas vezes o trecho de 354 km entre Santarém-Itaituba. Aqui, como em todo território Paraense, a estrada ainda não está asfaltada. Como era época da seca, mês de outubro, a estrada estava transitável. É verdade, porém, que em alguns trechos chegava a ter dó do carro que dirigia: uma Toyota Hilux (alugada em Santarém).

A estrada foi aberta em 1972 dentro dos programas federais de integração nacional, os mesmos que trouxeram os imigrantes que hoje habitam essa região. O lado Mato-Grossense com 772 km está asfaltado em toda sua extensão.

Até o município de Belterra (beaultiful land) o asfalto ilude o viajante inexperiente. No trevo da cidade tem uma antiga máquina de esteira. O “monumento”, bastante castigado, é símbolo de uma das épocas de otimismo da região. Foi quando Henry Ford decidiu implementar um cultivo racional de seringueiras para abastecer o volumoso mercado de borracha natural.

Nesse dia, 15 de outubro, dia da República, era até divertido dirigir por Belterra. As casinhas construídas na época de Ford ainda estão bem conservadas e em funcionamento. Nem parece que estamos no Brasil. É claro que mudaram de função. Uma delas, na antiga Vila dos Americanos, serve como sede da EMBRAPA. Há muitas pesquisas sobre o solo, água e fauna dessa região, que são riquíssimos.

Como era feriado aqui no Brasil, achei conveniente pegar uma praia.

O rio Tapajós com suas limpas e puras águas azuis forma praias quilométricas durante os meses de seca. Apesar do município vizinho de Alter do Chão levar a fama, Belterra guarda praias de indescritível beleza e água doce.

Depois de apenas uma Cerpa gelada, cerveja tipicamente Paraense, quase me convenci de que seria melhor dormir por ali e seguir caminho só no dia seguinte. “Mas trabalho é trabalho até no feriado”, pensei para me convencer a voltar à caminhonete. Já passava do meio-dia e acreditava que chegaria a Itaituba ainda naquele dia.


Entre Belterra e Rurópolis talvez esteja o pior trecho da rodovia. Crateras enormes aparecem a cada cem metros, mas como não chovia há meses, devagar se passava bem. Durante esses 180 km de sofrimento ao volante, a paisagem à direita é deslumbrante. Uma enorme floresta se ergue majestosa, é a Floresta Nacional do Tapajós, ou, FLONA Tapajós.

Criada em 1974, essa unidade de conservação tem 545 mil hectares. Inúmeras placas ao longo da estrada mostram que a FLONA Tapajós é utilizada como base para pesquisas do LBA ( Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia).

Floresta Nacional (FLONA):
área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e que tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável, sendo permitida a permanência de população tradicional existente quando da sua criação.


Não resisti ao ver uma porteira aberta e entrei alguns quilômetros FLONA adentro. Não é em todo lugar que se tem uma estradinha em meio a uma floresta exuberante. Com o carro desligado tive a sensação de estar num corredor de floresta. Árvores gigantescas em cada lado da estrada e muitos pássaros e pios. Um casal de araras quebrou minha contemplação e resolvi voltar para a estrada antes que alguém me visse lá dentro.

Por volta do km 110 parei antes de uma ponte para conferir o mapa e a caminhonete pifou. Virava a chave e sequer uma luzinha no painel acendia. Comecei a me imaginar no lugar dos caminhoneiros que não tem outra opção a não ser viajar por estrada solitária e contraditória.

Por um lado o asfaltamento permitirá um maior acesso a essa rica região e diminuirá custos com transporte das mercadorias industrializadas que vem de Manaus para o Sudeste do país. Em relação aos benefícios para a produção agrícola do Centro-Oeste, o seguinte trecho extraído do documentário Amazônia Revelada é contundente:

- A soja do norte do Mato Grosso roda alguns milhares de quilômetros para o Sul e é embarcada nos enfartados portos de Santos ou Paranaguá, para depois navegar outros tantos mil quilômetros para o Norte e finalmente chegar à mesma latitude. Há décadas esse produtor a dois passos do rio Amazonas sonha com a possibilidade de atender pelas portas da frente, muito mais próxima dos consumidores europeus e asiáticos.

Menos evidentes, ao menos no curto prazo, são os custos ambientais. Num estudo intitulado “A pavimentação da BR-163 e os desafios a sustentabilidade”, pesquisadores de várias organizações calculam os custos ambientais do asfaltamento na ordem de 1,5 bilhões de dólares num cenário sem governança, ou seja, sem ações efetivas do governo federal. Esse mesmo estudo cita ainda que no lado mato-grossense que já está asfaltado, 54% das áreas florestais a cinqüenta quilômetros da estrada foram desmatados. No Pará esse número é de apenas 3%, mas crescendo exponencialmente.

Tive mesmo que abandonar a idéia de chegar a Itaituba e aceitar o fato de dormir na caminhonete na beira da estrada. Poucos veículos passaram por mim naquela noite. Na manhã seguinte encontrei um boteco-beira-de-estrada e um sujeito resolveu “olhar minha situação”. Na primeira tentativa o carro funcionou misteriosamente, envergonhado segui caminho. Pouco depois encontrei um eletricista que apertou os cabos da bateria. Devido às trepidações eles estavam mal conectados o que explica a falta de partida do dia anterior.

Em Rurópolis, cidade de entroncamento entre a Rodovia Transamazônica e a BR-163, há uma placa em frente ao hotel Médice que data de 1974 e retrata o espírito da época em que essas estradas eram abertas:

- A Amazônia de hoje é o inacreditável lugar onde aparecem de mãos dadas a fantasia e o real; o épico e o impossível, a epopéia e a lenda.

Inacreditavelmente e em pleno séc.XXI a frase ainda faz sentido. Basta lembrar que para a maioria de nós brasileiros a imagem da Amazônia não é diferente das descrições que os portugueses faziam do Brasil na época do descobrimento.

Para chegar a Itaituba é ainda preciso cruzar de balsa o rio Tapajós. A cidade que já viveu seu apogeu na década de 80 por conta do ouro, hoje tem na pecuária sua fonte de sustento. Mas me pareceu decadente. Nos portos a única mercadoria que vi aguardando para ser transportada era madeira. Legal ou não, não pude descobrir. É bem possível que esse cenário se altere quando a BR-163 for mesmo asfaltada.

O Garimpo não é mais como antigamente.

O Garimpo não é mais como antigamente.


O ouro levou muita gente para a Amazônia. A ilusão de riqueza imediata fez com que muitos se aventurassem nos mais diferentes garimpos dessa imensa região. O rio Madeira foi palco de muitas dessas empreitadas que fizeram a fortuna de poucos e custou a vida de muitos outros. Toneladas desse precioso minério foram extraídas de seu leito principalmente durante a década de oitenta.

Há aproximadamente 20 km ao norte da vila de Jaci Paraná, na Rondônia, logo acima das corredeiras do Jirau, tem um pequeno assentamento chamado ‘2 irmãos’. De lá saem as voadeiras que levam os garimpeiros para as Dragas que restaram da febre do ouro que ocorreu na região há duas décadas. É provável que restem entre 80 e 100 dragas trabalhando acima da corredeira do Jirau até a fronteira com a Bolívia. São poucos os brasileiros que extraem ouro Bolívia a dentro. Também não se vê bolivianos garimpando em águas brasileiras.

Logo que cheguei ao barranco do assentamento conheci um tal Cabeção. Olhos bem azuis espremidos num rosto enorme, arredondado e queimado do sol. Totalmente bêbado ele disse para me juntar a um grupo de “meninas” para um passeio pelas dragas.

A prostituição é praticamente uma atividade complementar ao garimpo. Elas estavam em três e chegaram numa sexta-feira para trabalhar durante o fim de semana. O programa é feito nas próprias dragas ou em algum flutuante próximo. A que mais chamava atenção era a “Xuxa”, morena com cabelos até a cintura totalmente tingidos de loiro.
Enquanto passávamos pelas dragas, “Xuxa” ia distribuindo beijinhos aos homens exaltados que gritavam e acenavam num episódio bizarro.

Além de cabeção, as três meninas e eu, estava em nossa voadeira um sujeito apelidado de baixinho. No dia anterior ele havia encontrado algum ouro. Alegre de pinga e cerveja não conseguia se decidir com qual das três ele queria ficar, a cada minuto beijava e babava numa delas.

Num certo momento, cabeção levantou sua camiseta e mostrou orgulhoso o cabo de seu 38 enfiado entre as calças.

- Meu Deus! Que é isso? Perguntou uma delas.

- Tu tá no garimpo minha família. Ta achando o que? Respondeu cabeção.

Baixinho pra não ficar fora do diálogo perguntou:

- Mataram o Nascimento é?

- Sei não rapaz...

- Também, diz que ele tava roubando mais do que onça.

- Há! Então boiou por aí...

Em cada draga trabalham cinco pessoas 24 horas por dia em turnos separados. Enquanto em algumas só há homens em outras trabalham toda uma família. Uma draga é basicamente uma balsa de dois andares. Serve de casa, tem quarto e cozinha no andar de cima. A mobilidade permite procurar novos lugares ao longo do rio sempre que necessário.

No “térreo” da draga tudo o que se vê é para a extração do ouro. Tem um grosso tubo que suga a areia do fundo do rio e a joga numa grande peneira. É nessa areia que está o pozinho de ouro que uma vez misturado com o azougue, ou mercúrio, fica mais pesado e vai para o fundo da peneira. Depois se queima o azougue e, quando há sorte, conseguem formar algumas pepitas.

Perto do garimpo quase não há circulação de dinheiro, tudo é trocado por “gramas”, de diesel à alimentação. Quando é necessário comprar mantimentos para mais tempo eles cruzam a fronteira e fazem a compra na Bolívia. Lá também se troca por ouro.

O dono de umas dessas dragas me disse que por mês consegue tirar até 1,5 kg de ouro, sendo que naquele dia a grama valia 40 reais. Depois de dividir com os outros já não sobra muito. Resignado ele completou:

- Mas já não é mais como antigamente quando agente ganhava muito dinheiro. Muitos gastavam tudo em Porto Velho, mas outros compraram fazendas e imóveis e até hoje vivem muito bem.

Quando uma draga acha um bom local de ouro, o segredo dura pouco e muitas outras vêm tentar a sorte no mesmo lugar. Juntam-se umas as outras e formam o que chamam de “fofoca”. Nesse dia vi uma fofoca de mais de 20 dragas. Quando o ouro se esgota, elas se separam e vão tentar a sorte por si só.

Ganhei dinheiro com ouro, mas só sobrou uma correntinha", diz garimpeiro

"Ganhei dinheiro com ouro, mas só sobrou uma correntinha", diz garimpeiro

  • Risomar e o que restou dos anos de garimpo
    Risomar e o que restou dos anos de garimpo
Aos 50 anos, o garimpeiro Risomar Oliveira Cabral, nascido e criado no Médio Tapajós, no Pará, tem a aparência surrada pelas longas temporadas na floresta e uma casa em Itaituba – o que restou de 35 anos nas lavras do oeste paraense. Nem família ele conseguiu segurar, já que vida no garimpo "é errante".
"Não prestei para mais nada. Até ganhei dinheiro quando o ouro de aluvião dava mais, só que gastei tudo nas corrutelas (pequenas vilas que se formam próximas das áreas de garimpo, onde há prostituição e jogatina). Me sobrou essa corrente de ouro aqui", mostra o trabalhador, que atua na área do Chapéu do Sol – ao sul de Itaituba e dentro da terra indígena Sawré Mauybu, da etnia munduruku.
Quando encontrou a reportagem, Cabral carregava 10,8 gramas de ouro – resultado de quase três meses no mato. Pela cotação oficial das DTVMs, valiam R$ 1.425. O garimpeiro, entretanto, repassou a coleta por R$ 300 e mais "umas cervejas" na vila São Luiz do Tapajós, a meio caminho entre o garimpo e Itaituba. Culpa da baixa qualidade do ouro, segundo ele.
"Em um mês, quem maneja sozinho tira dois gramas, três gramas. Há 30 anos eu conseguia 30 gramas em 15 dias. Mas não sei fazer mais nada, então o jeito é continuar aqui", diz o garimpeiro.
Em um mês, quem maneja sozinho tira dois gramas, três gramas. Há 30 anos eu conseguia 30 gramas em 15 dias
Risomar Oliveira Cabral, garimpeiro

De acordo com o geógrafo Maurício Torres, professor colaborador da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), o garimpo industrial de grande escala vem substituindo gradativamente o trabalho manual feito por ribeirinhos, aquele que garantia o sustento de Riosmar. Segundo ele, o garimpo Chapéu do Sol, na região do Jamanxim, reúne entre 300 e 400 trabalhadores dentro da floresta nacional Itaituba 2.
"É um garimpo grande e impactante, bancado por capital internacional. O garimpeiro tradicional, que era dono do seu trabalho, está tendo de ceder a esse modelo pela invasão das áreas", diz. Nos garimpos industriais o método de extração utiliza escavadeiras de grande porte – conhecidas como PCs – que retiram em poucos minutos uma área de terra que um trabalhador braçal levaria semanas para abrir.
O DNPM, que deveria licenciar e fiscalizar a ação dos garimpos, não tem representação em Itaituba – o escritório do órgão na cidade deverá ser desativado até o fim do ano. Segundo a superintendente interina do DNPM no Pará, Adriana Pantoja, o órgão realiza apenas ações pontuais de fiscalização. "A região é muito conflagrada, quem passa em algum concurso e é lotado em Itaituba logo pede transferência para outro local porque tem medo de ficar", diz a interina.
A Secretaria de Meio Ambiente de Itaituba, responsável por licenciar e fiscalizar lavras de até 500 hectares, tem três fiscais para monitorar uma reserva aurífera estimada em 98 mil km² – a maior do mundo em extensão.
Quem passa em concurso e é lotado em Itaituba logo pede transferência porque tem medo de ficar
Adriana Pantoja, superintendente interina do DNPM no Pará
 
"Meu amigo, eu poderia estar sentado agora em uma mesa de mármore, ter 15 carros na secretaria, computadores moderníssimos e toda estrutura necessária se eu multasse quem estiver fora da lei. É fácil, está todo mundo fora da lei. Mas eu não faço isso porque, se fizer, vou estar criminalizando a profissão do garimpeiro", diz o secretário de Meio Ambiente da cidade, Hilário Vasconcelos.

Contraste

A extração de ouro que sustenta a economia formal e informal de Itaituba é a mesma que coloca quase metade da população da cidade (48 mil pessoas) abaixo da linha da pobreza, segundo o Sistema de Informações de Indicadores Sociais do Pará.
Em contraponto às caminhonetes de luxo que circulam pelos bares e restaurantes da orla e que representam 30% da frota local, a zona urbana nem sequer tem rede de esgoto. Os dejetos correm por valões a céu aberto antes de serem despejados nas águas verdes do Tapajós.
Segundo o Siab (Sistema de Informação da Atenção Básica) do Ministério da Saúde, apenas 4,1% dos domicílios de Itaituba tem acesso a rede de esgoto – no Brasil, esse índice é de 42%; no estado do Pará, 58%. A população também enfrenta problemas no abastecimento regular de água. O Siab estima que a rede abranja 9,5% dos domicílios. Quase 90% da população usa poço ou nascente.

Flávio Ilha/UOL
Urubus passeiam por rua na região central de Itaituba (PA): só 4,1% dos domicílios têm esgoto
A prefeita Eliene Nunes (PSD), que é alvo de uma ação civil do Ministério Público por crimes ambientais, reconhece a falta de saneamento e de água na cidade, mas atribui o problema a "gestões anteriores".
De acordo com Eliene, a União prometeu liberar R$ 2,8 milhões em 2013 para a elaboração de projetos do sistema de esgotamento sanitário da área central de Itaituba. Para a rede de água, os recursos prometidos chegam a R$ 11 milhões. A cidade também não um sistema público de transporte coletivo. "Nosso governo está fazendo o que os outros não fizeram e alguns ainda falam que são obras federais. Então, por que os outros não foram buscar?", defende-se a prefeita, que responde a um inédito pedido de afastamento, na Câmara de Vareadores, por improbidade administrativa.

Índios mundurucus lutam contra o garimpo ilegal em suas terras15 fotos

Índios guerreiros da tribo mundurucu chegam na vila de Katin, no final de um dia de procura de minas de ouro ilegais e mineiros perto do rio Kadiriri, um afluente do Tapajós e rios da Amazônia Lunae Parracho/Reuters