sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Garimpo e a Contaminação do Rio Madeira por Mercúrio


O Garimpo e a Contaminação do Rio Madeira por Mercúrio



A utilização do mercúrio no processo de amalgamação do ouro já era conhecido pelos fenícios e cartagenenses em 2.700 anos a.C. Caius Plinius em sua História Natural em 50 d.C descrevia a teoria de mineração do ouro e prata como um processo de amalgamação similar ao utilizado hoje nas minas de ouro.
Em 1980, a nova corrida do ouro na América Latina levou milhões de pessoas a ingressarem na atividade artesanal de ouro, o garimpo, como uma forma de fugir da completa marginalização social. Desde então, a crescente utilização do mercúrio na formação do amálgama - liga de Au-Hg -, e sua emissão para os diferentes compartimentos ambientais tem sido fonte de preocupação da comunidade científica em todo o mundo, devido aos efeitos danosos que esse metal provoca no meio ambiente e ao seu potencial tóxico à saúde humana. Esses efeitos nocivos ainda não foram completamente avaliados, tornando difícil a adoção de medidas de prevenção e controle.
Existem cerca de 2.000 pontos de garimpo distribuídos em todas as latitudes do território nacional, compondo um cenário no qual destacam-se dois personagens: de um lado, cerca de 400.000 operários garimpeiros, de outro, o empresário-garimpeiro, beneficiário preferencial da riqueza que o garimpo produz.
O uso descontrolado do mercúrio nos garimpos de ouro representa um grande problema ambiental, cuja magnitude ainda não é totalmente conhecida. Os estudos científicos disponíveis até o momento referem-se mais à Região amazônica e buscam avaliar, em sua maior parte, os impactos sobre o meio ambiente. Bem menos numerosos, são os estudos que avaliam o impacto na saúde .
Neste contexto, estaremos abordando os danos causados pelo uso do mercúrio nas atividades do garimpo de Araras no Rio Madeira.

2. Problemas na exploração do garimpo

2.1 O garimpo e o mercúrio
O garimpeiro, para aumentar a recuperação das finas partículas de ouro, usa o mercúrio na sua forma líquida. Este metal líquido tem a propriedade de capturar os grãos de ouro formando um amálgama. Na realidade é este mesmo amálgama que foi usado até pouquíssimo tempo atrás, nas obturações e próteses dentárias. Ou seja a maioria dos cidadãos de meia idade carregam uma fonte de mercúrio em sua boca.
No garimpo a operação com o mercúrio consiste em colocar grandes quantidades deste metal líquido nas caixas (sluice boxes) em posições estratégicas onde o ouro estará sendo também concentrado. O fluxo da água faz o ouro entrar em contato com o mercúrio sendo imediatamente aprisionado.
O processo é, em geral, muito rudimentar e causa grandes perdas de mercúrio que é transportado pelas águas para os rejeitos onde se infiltra. O amálgama que não foi perdido na garimpagem é, após alguns dias, processado pelo garimpeiro com o intuito de recuperar o ouro e parte do mercúrio metálico. Este processo é a maior fonte de contaminação dos garimpeiros pois nele é usado o maçarico, que vaporiza o mercúrio deixando somente o ouro na sua forma sólida. Os vapores de mercúrio, pela inexistência de equipamentos de proteção, máscaras e capelas, eram, parcialmente inalados pelos garimpeiros
2.2 Como o mercúrio chega ao homem
Existe duas maneiras do mercúrio chegar até o homem: ocupacional e ambiental. A primeira é a mais conhecida e está ligada ao ambiente do trabalho, como a mineração e indústria, geralmente associada aos garimpo de ouro ou as fábricas de clorosoda e de lâmpadas fluorescentes. Trata-se de uma contaminação pelas vias respiratórias, que atinge o pulmão e o trato respiratório, podendo ser identificado e quantificado pela dosimetria do mercúrio na urina.
A contaminação ambiental por sua vez é provocada pela dieta alimentar comumente pela ingestão de peixes mariscos de água doce ou salgada e é afetada diretamente a corrente sangüínea, provocando problemas no sistema nervoso central. Sua comprovação é feita facilmente pela determinação do mercúrio em amostras do cabelo ou do sangue. A substância simples e o sais de mercúrio são os principais responsáveis pela contaminação ocupacional, enquanto os compostos orgânicos de mercúrio, preponderantemente, o metilmercúrio, são responsáveis pela contaminação ambiental. Uma característica comum às duas formas de mercúrio é que ambas podem atravessar a barreira placentária afetando seriamente o feto.
2.3 O garimpo de Araras e o Rio Madeira
O ouro foi descoberto no leito do Rio Madeira em meados dos anos 80, junto com a cassiterita, os principais produtos de Rondônia, atraindo garimpeiros de todo o Brasil. Estima-se que em 1987 haviam cerca de 600 dragas e 450 balsas extraindo ouro do rio. Eram processos extrativos rudimentares, admitindo-se perdas em torno de 50%. O trabalho nas balsas era extremamente perigoso, pois obrigava um mergulhador operar a "maraca", o terminal do mangote de sucção, conduzindo-a no fundo do rio para fazer o desmonte em profundidades de até 15m.
Como era grande a evasão (pelo menos 50%), são imprecisas as estimativas de produção. Admite-se que no ano de 1987 tenha sido da ordem de 8.000 ton. Já no início dos anos 90 entrou em declínio, estando praticamente interrompidas as atividades no garimpo de Araras. Este ciclo gerou muita riqueza, sendo porém quase nulos os benefícios duradouros produzidos.

3. Impactos ambientais na exploração do garimpo

3.1 Contaminação dos rios através do mercúrio
Após sua utilização na extração de ouro, o mercúrio residual é descartado nas margens e nos leitos dos rios, no solo, ou é lançado na atmosfera durante o processo de queima do amálgama. Estando disponível no meio ambiente, este mercúrio pode transformar-se no metilmercúrio. A metilação do mercúrio é o passo mais importante para sua entrada na cadeia alimentar de organismos aquáticos, maiores bioconcentradores deste metal.
Hoje sabe-se que a velocidade de metilação realizada pelas bactérias é em função de vários fatores como o baixo pH da água, alta concentração de matéria orgânica dissolvida e baixo teor de material particulado, situação fácil de ser encontrada no Rio Madeira. O pH do Rio Madeira por exemplo, é particularmente baixo, chega a 3,8.
Cerca de 3,0 mil toneladas de mercúrio utilizado nos garimpos de ouro da Amazônia, ao longo dos vinte anos vem sofrendo oxidação e metilação nas condições propícias das águas e sedimentos dos rios.
Existe pesquisas realizadas na Amazônia abordando a contaminação da população ribeirinha por mercúrio em sua maioria no artigo Barbosa et al. (1997).
Em um período de tres anos foram analisados amostras de cabelo de 270 ribeirinhos do Rio Madeira, utilizando a espectrometria de absorção atômica com vapor frio. O teor médio do mercúrio no cabelo destes indivíduos foi 17,2 microgramas por grama de cabelo (µg/g), com valor máximo obtido 303 microgramas. Foram analisados também cabelo de 51 pessoas na região com mais baixo consumo de peixe (controle). Para essas pessoas, o teor médio foi de 4,1 microgramas, nível que pode ser considerado normal.
As populações ribeirinhas da Amazônia brasileira estão constantemente ameaçadas devido a ingestão de peixes contaminados, que provocam deficiências mentais e neurológicas. O Rio Madeira no final da década de 80 estava contaminado por 78 toneladas de mercúrio.
Tabela 1: Teores médios de mercúrio nos peixes piscívoros
Local
N
µg/g
Rio Madeira
370
850
Rio Madeira
154
665
Rio Madeira
251
634

N = Número de amostras analisadas
A poluição do Rio Madeira e de seus afluentes, devido ao uso de mercúrio na extração de ouro, está exterminando várias espécies de peixes, segundo pesquisadores do curso de geografia da Universidade Federal de Rondônia -UNIR. Com isso, a população de Porto Velho é obrigada a comer pescado de cativeiro - e, em alguns casos, os comerciantes são compelidos a importarem o produto para atender o mercado consumidor da capital rondoniense.

4. Impactos socioculturais
4.1 Influências do garimpo sobre as populações ribeirinhas
Na atividade garimpeira, distingue-se o papel do dono do maquinário e equipamentos necessários à extração mineral e o "pequeno garimpeiro", aquele que participa apenas com o seu trabalho e aufere a menor parcela dos lucros do garimpo.
Longe se vai o tempo em que o garimpeiro se equipava apenas da bateia para exercer suas atividades. Hoje em dia, a atividade garimpeira é quase empresarial e exige a mobilização de grandes recursos. Ao longo dos rios, utilizam-se balsas, motores, mangueiras que espalham jatos d’água de alta pressão. Para a "segurança", os garimpeiros armam-se com revólveres, pistolas e até metralhadoras.
Não há como deixar de se distinguir, portanto, o empresário do garimpo com aquele pequeno garimpeiro, sem recursos e sem instrução, que se torna seu sócio "minoritário" percebendo de vinte a trinta por cento do produto de seu trabalho.
Com o garimpo, os impactos na saúde humana vão além da contaminação por mercúrio, e, surgem doenças causadas pelas péssimas condições de trabalho e espalham-se doenças infecto-contagiosas - hepatite, cólera, leishmaniose, hanseníase, tuberculose, e doenças sexualmente transmíssiveis, em relação às quais o Estado não tem condições de prestar assistência médica e sanitária eficaz.
Argumenta-se que os garimpeiros também são vítimas dessas doenças e que as epidemias são mais sérias em virtude da omissão dos órgãos responsáveis, notadamente a Fundação Nacional de Saúde. Não é caso, porém, de se atribuir "culpa" aos garimpeiros, mas simplesmente de se constatar uma realidade: as invasões de garimpeiros geram sérios problemas de saúde pública, de difícil controle, dada a parca presença dos órgãos sanitários.
A contaminação por mercúrio, no meio ambiente, traz conseqüências direta na vida daquelas populações ribeirinhas, inclusive indígenas, que têm na pesca e na caça importantes meios de sobrevivência. Comprometidas suas fontes de alimentação, passam a depender, muitas vezes, de "dádivas" fornecidas pelos próprios garimpeiros, reduzindo-os à situação de pedintes.
Por outro lado, o contato indiscriminado entre garimpeiros e ribeirinhos acarreta, como conseqüências, a difusão do alcoolismo. Por vezes, o álcool é dolosamente distribuído.
Aliado a outros fatores, como o crescimento desordenado das comunidades, o garimpo colabora com o alto índice de prostituição e de gravidez precoce, favorecendo inclusive a evasãp escolar.
A tensão da difícil vida no garimpo, aliada ao baixo nível educacional e cultural de garimpeiros e a ausência de maior presença por parte de autoridades policiais, gera um ambiente propício para a multiplicação de conflitos sangrentos entre os próprios garimpeiros.
A medida em que a população ribeirinha, através destes contatos, vai adquirindo valores da cidade e novos padrões de consumo, tenderá a migrar para os centros urbanos maiores, pois passará a considerar insuficientes os recursos a que tem acesso na sua região. A não ser que melhorassem as condições de vida destas pessoas, mediante a adoção de estratégias de ação para o desenvolvimento sociocultural e econômico destas comunidades.

5. Soluções propositivas
5.1 Redução dos impactos ambientais / Controle no uso do mercúrio
Existem algumas propostas relacionadas ao controle e remediação da poluição do mercúrio. No entanto, à questão do mercúrio passa antes por um processo de educação ambiental de todos os agentes envolvidos: garimpeiros, pescadores, índios, ribeirinhos e principalmente pela ação fiscalizadora da sociedade. A recuperação das áreas contaminadas por mercúrio em Minamata (Japão), foi obtida com medidas drásticas, como pesadas multas para a empresa poluidora, proibição de pesca, compensação financeira para os pescadores e dragagem.
Enumeramos a seguir algumas propostas para o controle e remediação da poluição do mercúrio.
  • Uso de retorta e capela nas casas de queima de amálgama;
  • Maior eficiência no processo de garimpagem; calha mal adequada;
  • Criação de centrais de bateamento;
  • Reprocessamento dos rejeitos com alta concentração de mercúrio;
  • Recuperação das áreas degradadas;
  • Cumprimento da Lei 7805, de 18 de julho de 1988 que regula o regime de permissão de lavra garimpeira que incentiva a criação de associações de garimpeiros
  • Formação de centrais de queima de amálgama;
  • Educação ambiental e recomendação para ingestão de peixes de baixo nível trófico;
  • Monitoramento da contaminação nos diversos compartimentos ambientais.
5.2 Redução dos impactos socioculturais / Ação ordenada na atividade de garimpo
O garimpo, por ser um estágio da produção mineral com fortes repercussões sociais, econômicas e ambientais, e pelo fato de congregar um contingente populacional expressivo, sobretudo na Região Norte do País, merece atenção especial da política mineral, que deverá buscar sua transformação paulatina em mineração organizada, promovendo seus padrões técnicos e ambientais, sem descuidar dos impactos sociais decorrentes de tal transição.
Assim, a ação ordenada do Governo na atividade de garimpo deverá ser desenvolvida a partir de algumas idéias-chave e recomendações:
  • A abordagem uniforme e sistemática do problema, ancorada em uma explícita política de governo que focalize com prioridade o operário garimpeiro.
  • A revisão e aperfeiçoamento da legislação que rege a garimpagem.
  • Desenvolvimento de mecanismos para o correto aproveitamento do potencial empreendedor do garimpeiro, através da sua conversão em minerador, na forma da lei.
  • Consolidar as reservas garimpeiras existentes e regularizar as atividades extrativas em curso.
  • Atuar imediatamente sobre novos focos garimpeiros, impedindo sua expansão desordenada e decidindo rapidamente sobre a conveniência de sua organização ou fechamento.
  • Acompanhar a organização das cooperativas de garimpeiros, evitando o surgimento de organizações não-representativas ou o desvirtuamento das suas atividades.
  • Intervir rápida e ordenadamente no equacionamento de problemas emergenciais (exemplos recentes: invasão da área Ianomami, em Roraima; problemas fronteiriços com a Venezuela e outros países vizinhos; Serra Pelada; Bom Futuro, na Rondônia).
  • Identificar alternativas sociais para garimpeiros e ribeirinhos, como retorno ao Estado de origem, assentamento agrícola, alternativas de emprego, assistência social.
  • Buscar alternativas tecnológicas para a melhoria das condições da lavra, com ênfase para a segurança e o controle ambiental.

6. Considerações finais

Nos últimos anos, a produção garimpeira vem mostrando fortes sinais de decadência, em função tanto do esgotamento quanto da queda nos teores das jazidas aluvionares e superficiais, além das fortes pressões ambientais e de iniciativas do Governo em coibir a ilegalidade e clandestinidade, muito comuns na atividade.
Pode-se dizer que, da exploração do ouro, a maior herança é o seu passivo ambiental: erosão do leito e das margens do rio, contaminação das águas e da cadeia alimentar pelo mercúrio, poluição por óleo, combustíveis e rejeitos lançados na água e por equipamentos abandonados, sedimentação do canal navegável, etc. Nos denominados garimpos do Arara e Periquitos, as crateras abertas por desmonte hidráulico chegaram a comprometer a BR-425, que vai até Guajará Mirim. No local foram encontrados fósseis de mastodontes e tatu-gigante, entre outros. Esta bacia está sendo destruída, e seus fósseis contrabandeados.
Embora o garimpo de Araras tenha terminado, anos vão se passar até que se dê a recuperação plena da flora de fundo e dos peixes que, por acaso, tenham sofrido efeitos teratogênicos ou mutagênicos.

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