sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Neguinha, histórias do garimpo

Neguinha, histórias do garimpo

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Se escutamos o termo “buscador de ouro” nossa mente possivelmente voará ao Velho Oeste, ao longínquo Oeste norte-americano de que tantos filmes temos visto, e imaginará homens com bateias tentando tirar alguma “pepita” de ouro da areia de um rio. Porém essa imagem não é propriamente exclusiva dali, senão que aconteceu em outros lugares do planeta, e de fato ainda ocorre, sem mudar quase nada, no norte do Brasil e ao sul da Venezuela.

Durante os anos 80 e 90 a pequena cidade de Boa Vista (a capital do estado nortista brasileiro de Roraima) era um dos grandes centros mundiais de extração de ouro e diamantes e em suas ruas, os pequenos negócios encarregados de sua compra existiam por centenas. As cifras são difíceis de assimilar, imagine que nos tempos de maior atividade era possível, em um único dia, ver em seu pequeno aeroporto até 600 aterrisagens e decolagens de pequenos aviões que levavam pessoas e mantimentos ao garimpo e traziam o encontrado, uma grande quantidade de ouro e diamantes.

Anúncio de um dos estabelecimentos que ainda se dedicam ao comércio de ouro e diamantes na cidade de Boa Vista.
As condições em que viviam aqueles que realizavam esta atividade eram terrivelmente duras. O trabalho era esgotante e tinham que dormir em barracas de campanha no meio da selva a centenas de quilômetros de qualquer localidade, vulneráveis às doenças e em um território sem lei.

A maioria das minas estavam localizadas em território yanomami. Afortunadamente no ano 1.991 o Governo Federal brasileiro as homologou como Terra Indígena e proibiu o garimpo, o que aliviou em grande parte a situação dos índios, que vinham sofrendo as enfermidades trazidas pelo homem branco e contra as quais não tem defesas naturais, e uma crescente contaminação cultural com o pior de nosso mundo, o álcool, a prostituição, etc.

Quando a atividade mineira acabou alguns dos milhares de garimpeiros ficaram ao redor de Boa Vista, onde viviam suas mulheres e filhos, porém muitos, sem vislumbrar outro futuro e picados pelo mosquito do “pode ser que amanhã eu encontre a pepita de ouro que me tire da miséria” partiram para Venezuela, onde continuam em sua busca sem fim.

Assim é o ouro quando se encontra na natureza.
Em Boa Vista conhecemos Neguinha, uma mulher alegre e cheia de energia que viveu no garimpo durante 5 anos. Neguinha não se nega de contar-nos sua história, a única condição é que não coloquemos sua imagem.
De onde você veio?

Como a grande maioria dos garimpeiros, venho de uma família pobre do nordeste do país. Éramos gente do Maranhão, Ceará, Piauí, Pará, Rondônia,... Ali a situação era muito difícil. Então te encontravas com alguém que tinha ido às minas e regressava com muito dinheiro, suficiente para comprar gado, casa, terras, montar um comércio... Isso te fazia pensar que tú podes conseguir o mesmo. Por isso quis ir ali, para ver si realmente era certo o que diziam.
Nem todos os que iam voltavam assim, o normal era que quem saía não regressava nunca. Recordo uma brincadeira que se contava em minha cidade naqueles anos: “Um burro estava coçando as costas na parede de uma casa e sem querer toca com a pata na porta, “toc toc toc”, a dona da casa diz lá de dentro: “pode entrar, meu marido está no garimpo”.

A perspectiva de enriquecer de um dia para outro fez que muitos homens, inclusive pais de família com filhos, deixaram suas casas e se foram. Uns poucos voltaram ricos porém a grande maioria ficou no garimpo e não voltou. Ali os homens se encontravam com um mundo de prostituição, droga, e também ambição, inveja e morte. Conheço uma história de dois cunhados que foram juntos às minas, um dia um encontrou uma pepita de ouro que pesava um quilo e meio. Seu cunhado o matou e voltou a casa com o ouro. Acredito que ainda hoje sua mulher não sabe que foi ele quem matou seu irmão.

Porém nem tudo era perverso, também houve muitas histórias de companheirismo, de pequenos grupos que colocaram tudo o que tinham para tirar de avião um companheiro enfermo, de gente que carregou um amigo caminhando durante dias para salvar-lhe a vida,... como em todos os lugares tem gente boa e má.

Em teu caso, como foi a decisão de ir ao garimpo?

Briguei com meu companheiro e nesse momento chegaram duas amigas que voltavam das minas. Me convidaram e não duvidei, peguei uma bolsa, meti a roupa que tinha e me fui, saí sem um tostão.

Como foi o começo?

Comecei no estado do Pará trabalhando como cozinheira. A atividade nas minas começava muito cedo, me levantava às 4 da manhã para fazer fogo. Depois passava o dia cozinhando, preparando arroz, feijão e carne de sol.

Pensava que conseguiria dinheiro fácil, porém foi uma desilusão. A vida era muito dura, peguei muitas malárias, contei 38, e alguma hepatite. Nunca ninguém me bateu nem me machucou de alguma maneira. Só recordo de um bêbado que tentou me obrigar a dormir com ele uma noite. Subi em uma árvore da selva e não desci até a manhã seguinte. Os gritos dos macacos me salvaram porque me assustavam tanto que não podia dormir e assim não caí da árvore. O homem me pediu perdão de manhã e nunca voltou a acontecer nada. As mulheres vão ao garimpo trabalhar como cozinheiras ou prostitutas, estas últimas chegavam ao acampamento, montavam umas barracas de pano provisórias, faziam seu trabalho, cobravam e se mandavam.

Cobrabas um salário?

O salário das cozinheiras era fixo, uma grama de ouro por dia, 30 gramas por mês porém não dava para muito porque ali tudo chegava de avião e era muito caro. Um pacote de cigarro custava 1 grama de ouro e eu fumava dois pacotes por dia, ou seja 2 gramas. Para pagar mendigava entre os companheiros e também ia ao rio e garimpava, tirava algo de ouro.

Havia tanto ouro?

Uma noite dormi na barraca com 5 quilos. O dono chegaria de avião às 8 da manhã, me chamava todo o tempo pelo rádio para ver se estava acordada. Minha vida com aqueles 5 quilos de ouro não valia nada, tinha um revólver porém os garimpeiros que o tinha tirado sabiam que eu tinha e também estavam armados, ali todo mundo estava armado.

Como se organiza o trabalho?

Normalmente se trabalha em uma equipe de 4 pessoas mais uma cozinheira. Os homens trabalham com uma máquina que vai limpando o fundo do rio. Do ouro que se tira, 30% se divide entre os 4 garimpeiros e o resto é para o dono da máquina, que é quem realmente se enriquece. Ser garimpeiro é muito sofrido, o trabalho é duro e ao final tem que pagar tudo, o avião, o diesel para a máquina, a comida,… Isso sem contar com os mosquitos, a malária, os perigos,…

Como chega o garimpeiro até as minas? Encontra trabalho facilmente?

Normalmente chega de avião. Vai porque escutou alguma “fofoca”, algum rumor de que tem ouro no lugar. Chega, coloca sua rede em algum lado e espera que surja uma vaga, que outro garimpeiro se vá. Ninguém lhe convida, ele tem que chegar e esperar que surja a oportunidade. Serão poucos dias, dois ou três. Tem quem leve sua bateia (espécie de peneira) e vão trabalhando em solitário, normalmente são estes que descobrem novas minas porque vão a lugares ainda não explorados, quando o encontram voltam à currutela (o povoado onde tem diversos serviços como um bar-armazém), tomam umas cachaças, se embebedam e soltam o rumor.

Nem sempre um rumor é real, já ocorreu de que a gente chega a um lugar no que não tem nada e depois não tem dinheiro para pagar o vôo de volta. A situação se complica e passará muita fome.

Havia indígenas nas áreas em que voce esteve? Como era a relação com eles?

Sim, os yanomami. Normalmente tínhamos uma relação de troca, eles nos davam farinha, beijú, pimenta,... e nós facas, ferramentas,…

Para ser sincera, quando os conheci pela primeira vez pensava que não eram como nós, que não eram pessoas. Não podia entender sua cultura, não choravam, queimavam seus mortos e comiam as cinzas, realizavam infanticídio,... para mim não eram gente. Porém em uma ocasião chegaram com seus filhos nos braços, doentes de gripe, chorando e implorando desesperados que levássemos seus filhos a Boa Vista no “guru-guru”, no avião, para salvar-lhes a vida. O branco lhes tinha levado as doenças. Ali entendi que éramos iguais.

Por quê deixou o mundo do garimpo?

No ano 1.992, quando a área yanomami foi homologada como Terra Indígena a polícia federal entrou no garimpo para desmantelá-lo. Eu, com anos de trabalho, tinha podido ter uma maquinaria e tinha uma equipe trabalhando para mim. Então chegaram onde estávamos e destruíram aquilo em segundos. Meteram pedras no motor e o ligaram, cortaram as mangueiras com machado, queimaram os barracos,… não ficou nada. Quando se foram nem sequer nos tiraram dali. Éramos nove pessoas e não tínhamos comida. Demoramos 22 dias para chegar a algum lugar descendo em uma balsa pelo rio. Pescávamos e parávamos na margem do rio para fazer fogo e cozinhar. As vezes os peixes vinham cheios de vermes porém com a fome que tínhamos os comíamos igual.

Naquele momento me chateei muito, porém hoje podem me oferecer 3 quilos de ouro para ir que não aceito. Tenho consciência do mal que fizemos, da destruição que causamos, do lixo que ficou, não quero mais isso. Quando cheguei a Boa Vista me ajoelhei e prometi nunca mais voltar ao garimpo, ainda que fosse na porta de minha casa, e assim tem sido, já se passaram 15 anos.

O quê aconteceu com outros garimpeiros quando se fechou a área yanomami?

Muitos se foram a área de Raposa Serra do Sol, porém eram minas de diamantes e não sabiam trabalhar bem com eles, perdiam dinheiro e se foram em seguida para Venezuela. Acredito que lá agora tem mais garimpeiros brasileiros que venezuelanos.

Qual é a situação atual do garimpo?

Diminuiu muito, porém não desapareceu. Não tem vigilância de organismos federais, só os indígenas estão fiscalizando. O garimpeiro encontra a maneira de chegar, seja andando, seja de canoa ou avião. As vezes os indígenas se zangam com os garimpeiros e ocorre algum enfrentamento. Depois as coisas se tranquilizam durante um tempo até que os garimpeiros voltem.

Desde o aeroporto já não se pode voar sem autorização, os aviões clandestinos saem de pistas no lavrado (no cerrado), porém tem radares e se é detectado o piloto tem que dar milhares de explicações, pode perder o avião e inclusive ir para a cadeia.

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